A VIDA DOS LIVROS
De 14 a 20 de Abril de 2008
“O Padre António Vieira e as Mulheres – O Mito Barroco do Universo Feminino” (Campo das Letras, 2008) da autoria de José Eduardo Franco e de Maria Isabel Morán Cabanas analisa, de um modo contrastante e com sereno rigor, as representações da mulher nos “Sermões” do pregador seiscentista. A um tempo, encontramos não só considerações nitidamente influenciadas pelo espírito do tempo, mas também, para além delas, observações que nos fazem pensar, e que colocam o Padre António Vieira numa atitude que se demarca dos lugares comuns da sua época e que projecta um entendimento que vai ao encontro do valor universal da dignidade da pessoa humana.
“Susana e os Velhos”, 1610, Artemisia Gentileschi (1593-c. 1653), Colecção Schönborn, Pommersfelden.
UMA SUCESSÃO DE TEMAS
Se olharmos a enumeração dos temas da obra, podemos facilmente ver que o sermonista procura, antes de mais, uma identificação com os destinatários da sua oratória. Nesse sentido, a lista das referências fundamentais é naturalmente previsível e está de acordo com a mentalidade do tempo, que atribuía à mulher um papel pouco relevante e subalterno. Não é aí, pois, que se exprimem inovação e sentido profético. Os autores procedem, contudo, a uma análise circunstanciada dos sermões, segundo um roteiro temático que abrange um conjunto de temas, que permite entender como era vista a mulher na época barroca e de que modo o Padre Vieira abordava esse elenco de questões: a mulher como possibilidade dos extremos, a visão estática da mulher versus a visão dinâmica do homem, a penitência e a oração como caminhos de perfectibilidade, os caminhos da perdição feminina, a inexorável força da vaidade, as vivências do amor físico ou amor-paixão, o domínio da insensatez sobre a prudência, as formas e as figuras de prestígio feminino, a maternidade e o casamento, o retrato da mulher heroína, a mulher coragem, a valorização escatológica da mulher e os casos de mulheres singulares no caminho da santificação. A misoginia faz-se sentir, bem como o entendimento da inferioridade da mulher. José Eduardo Franco e de Maria Isabel Morán Cabanas tratam dos temas a partir critérios de isenção e objectividade, não caindo na tentação de adoçar as considerações e os entendimentos ditados pelo momento em que Vieira falava. Tom Earle, o prefaciador da obra, afirma, aliás, que “no presente estudo, Vieira já não é o rebelde, promotor de um quinto império para Portugal, apesar das dúvidas da Inquisição, nem o protector dos direitos dos desprotegidos, em que se incluíam, além dos cristãos-novos, os índios do Brasil, explorados cruelmente pelos fazendeiros portugueses. Pelo contrário, é um simples sacerdote e pregador, não propriamente convencional, mas certamente um escritor cuja obra pode ser compreendida dentro dos parâmetros que regiam a oratória sagrada do século XVII”. Longe da figura do rebelde, o que aqui encontramos é o homem do seu tempo, com as limitações inerentes a esse facto.
O RETRATO CONTRASTADO
“O retrato da mulher-tentação, herdeira directa de Eva, contrapõe-se ao da mulher-redenção, agindo a primeira como pedra de tropeço e vereda da desgraça e equivalendo a segunda a uma porta que se abre para a realização transcendente do indivíduo”. É assim sob o signo do paradoxo que o papel e o destino da mulher são vistos na oratória sacra de Seiscentos. E no entanto o contraste é chocante para um leitor dos nossos dias, uma vez que o pregador olha com suspeição o mundo da mulher como lugar de tentação, de instabilidade, pelos perigos enganadores da sedução e da beleza. É o pessimismo antropológico que pesa, hipervalorizando a culpa e o pecado inerentes à “queda adâmica”, no entanto quando Vieira trata dos casos de mulheres singulares no caminho da santificação tudo parece alterar-se. “O estereotipo da fraqueza não deixa de aparecer”, no entanto o que salta à vista, de modo muito claro e intenso é o “carácter excepcional destas e o seu valor graças ao qual conseguem desafiar e até vencer a própria natureza e as desvantagens ligadas ao sexo com que nascem”. Os sermões sobre Santa Teresa de Jesus (das décadas de quarenta e cinquenta) são bem ilustrativos do contraste e do paradoxo. O misticismo de Teresa de Ávila impressiona especialmente Vieira, a ponto de a apontar como modelo de perfeição cristã, e de invocar a união íntima e pessoal com Deus. E o certo é que o orador sagrado usa de audácias simbólicas, que chegam à invocação do Apocalipse e à inclusão da própria santa carmelita no mistério fundamental da Encarnação. “A sua deificação apoteótica tem lugar no êxtase, expressão da visão beatífica que goza antecipadamente neste mundo, como galardão ou ‘favor’ de Deus”. E para o Padre Vieira esta seria “a culminação do caminho de perfeição”, que o leva a usar elementos retóricos especialmente chamativos, para tornar evidente, para ouvintes e leitores, como lição da homilia, o carácter absolutamente excepcional do exemplo. E se vemos esse método usado para Teresa de Jesus, a reformadora do Carmelo, podemos encontrá-lo ainda na invocação da rainha Santa Isabel – “duas vezes coroada: coroada na Terra e coroada no Céu”. Mas também aqui, para salientar as qualidades de Isabel de Portugal, parte o Padre da desvalorização da condição normal da mulher, invocando o livro dos Provérbios (“a mulher forte, a mulher varonil, a mulher mais que mulher, era uma mulher negociante”). Que pretende Vieira? Num tempo de guerra com Espanha (Restauração), havia que valorizar o carácter dialogante e pacífico da mulher de D. Dinis, mas também que dar ênfase às qualidades cristãs de bondade, gentileza, benignidade, misericórdia e devoção. E, no crescendo elogioso da Rainha Santa, o orador invoca outra Rainha Isabel de Portugal, a filha de D. Manuel I e mulher de Carlos V, cuja morte levaria à santificação de S. Francisco de Borja – “vendo a corrupção daquele cadáver e daquele rosto, que pouco antes era um milagre da natureza, ficou tão penetrado e tão atónito daquela vista, que ela bastou para o fazer santo”.
INTERPRETAR MENTALIDADES
O livro, como afirmam os seus autores, pretende (e consegue) ser, assim, um documento revelador da história social e das mentalidades. Vieira limita-se a exprimir orientações muito semelhantes às que encontramos na literatura da época, na poesia, no teatro e nas artes. Trata-se, pois, de inserir o Padre Vieira no seu tempo, confirmando e relativizando estereótipos comuns sobre o universo feminino (a mulher como agente de perniciosa sedução, o uso dos seus encantos). E os sermões propõem a “fuga do mundo”, a que os seres humanos deveriam aspirar, “interiorizando o que dura e o que projecta para a eternidade”, numa luta secular entre a conversão interior e a entronização dos valores mundanos. Mas os autores colocaram sintomaticamente no pórtico do livro duas citações significativas – uma de Vieira (“A mulher inconstante por condição; o homem inconstante por nascimento; a mulher, como a Lua, por natureza; o homem como o mar, por influência”) e outra de Ana Hatherly (“Na cultura ocidental, judaico-cristã, em termos artísticos, há dois paradigmas de representação da mulher; o da tentadora, que conduz o homem à perdição, e o da salvadora, que o conduz à redenção”). Sobre o entendimento de Vieira, temos a força do tempo e da sua mentalidade (ainda que diga também: “o homem, filho de mulher, é tão vário, tão mutável e tão inconstante, que nunca permanece, nem dura no mesmo estado”), mas dir-se-ia que o ensaio que nos é dado procura ilustrar, com conhecimento e sabedoria, a segunda afirmação. O paradoxo que permanentemente nos é oferecido, ilustrando o mito barroco do universo feminino, decorre do confronto entre os dois entendimentos. Mas é o próprio Vieira o primeiro a reconhecer que as fronteiras se tornam ténues e difíceis de descortinar – entre a natureza e a influência, entre a Lua e o Mar…
Guilherme d’Oliveira Martins