A VIDA DOS LIVROS
de 23 a 29 de Julho de 2012
Ruben A. é um dos autores portugueses da segunda metade do século XX que melhor apresenta um assinalável sentido de modernidade, quer pela diversidade de temas e procedimentos de escrita, quer por uma subtil mas segura ligação entre o sentido crítico e um muito intenso culto da ironia. Recusando a integração numa escola, sente-se nele a melhor influência do humor anglo-saxónico e de uma busca séria e profunda de um sentido de pensamento. O escritor não se leva muito a sério, antes quer levar mesmo a sério a busca fragmentária de si mesmo. Dir-se-á, assim, que o espírito se sente nestas paragens no seu significado mais rico e amplo, como o olhar da vida com a melhor ironia e como a busca mais séria da dignidade.
UM TEMPO COMPLEXO E INSEGURO
«Desintegro-me. Custou-me sempre participar do coletivo. Apoquenta-me a minha narrativa, sobretudo pela veracidade mordaz de que se revestem todos os meus atos. Tento disfarçar com imagens. Puxo as sargetas da alma, guindastro pelas roldanas do meu vaivém um peso de sentimentos misturados com banalidades do dia-a-dia. Não vou à praça fazer compras. Recuso-me terminantemente a tomar uma laranjada, ou um elétrico. Deixo que as pessoas olhem para mim, de caras com a minha imagem estampada, bem visível à vista desarmada». O texto de Ruben é de 1966 (Livraria Portugal) e intitula-se significativamente «O Outro que era Eu», sendo indicado como o paradigma de uma escrita preocupada com a dimensão humana nos dias de hoje e com o entendimento de que o lidar com os enigmas pessoais corresponde a uma tarefa fascinante, mas muito incerta quanto à compreensão do que é apreensível e não tanto na tentativa de compreender os outros. «Do oposto a tudo que era eu, que tanto me fez sofrer, durante anos, meses, séculos, eu passei à integração definitiva, total, absoluta dentro do próprio ser, processo que o consideraria como o início para novas descobertas». O que está em causa é a integração humana, a relação complexa entre os diferentes protagonistas… «O Outro que era Eu» leva-nos ao âmago da sociedade de hoje e de todas as suas dificuldades. Aqui notamos, com especial ênfase, como a modernidade é feita de pluralismos e de desdobramentos, e de uma procura incessante entre a autonomia e a comunidade, entre a fragmentação e a integração.
A HISTÓRIA VISTA COMO PRAÇA DE ENCONTROS
Melhor do que ninguém, o saudoso Doutor Luís de Sousa Rebelo, muito experiente (com o saber todo de experiências feita), veio dizê-lo. No ensino da língua ainda para mais num leitorado tradicionalmente difícil, exemplo de inteligência crítica e de intuição literária, Ruben A. descobriu, na sua verve onírica, mas certeira, o fundo português, contraditório, paradoxal, entre a inserção cosmopolita e a tentação provinciana, entre o não se levar muito a sério e o formalismo mais inútil e caricato, sinal de decaimento, por contraponto a todos quantos também não se levam muito a sério e desejam confrontar-se com os horizontes largos e o sentido formalista de uma ancestralidade inútil e inexistente. Isso mesmo é evidente na extraordinária «Torre da Barbela», fantástica metáfora, à nossa história mercê de um alucinante método, de tornar o diacrónico sincrónico. «Não há dúvida, meu caro Ruben, V. logrou apresentar neste seu romance uma alegoria viva e bem sangrada no cerne do real da mentalidade portuguesa, sonolenta e fidalga em pleno século XX». Daí tratar-se de um romance que merece um lugar à parte da produção literária portuguesa dos últimos cinquenta anos». Para Sousa Rebelo: «a obra as supera (as eventuais reservas) na grandeza semi-épica da narrativa, na pintura muito bela da paisagem, dos costumes graciosos da gente e da terra e no calor muito humano, até em certo travo de angústia, que nos envolve irremissívelmente no destino das personagens. Ora isto é a pedra de toque de uma obra de arte, de uma grande obra de arte». O tempo, depois de algumas perplexidades, talvez não tenha ainda reconhecido plenamente, como deveria, a força da narrativa, mas fica-nos plenamente o reconhecimento de que se trata de uma psicanálise mítica, feita com um sentido forte e despretensioso, na qual podemos, a um tempo, reconhecer a genialidade do autor e da obra, ao conceber «A Torre da Barbela» como uma história que tem todos os ingredientes autênticos, ainda que a mistura propositada no «puzzle» nos permita revelar toda a sua complexidade e o paradoxo.
UMA CENTELHA DE GENIALIDADE
Com um toque de genialidade e de inesperado, Ruben A. é capaz de juntar o talento artístico com uma rara capacidade de procurar perceber como a desconstrução romanesca pode permitir compreender melhor o que não é visível no início de tudo. Os volumes de «O Mundo à Minha Procura» são, é preciso dizê-lo, peças referenciais da literatura europeia contemporânea. E os leitores de Ruben A. tiveram a suprema ventura de poderem ter um grande escritor a decidir-se escrever memórias, quando aparentemente estaria imediatamente livre para além da tarefa ingente de fazer memórias críticas na flor da idade. Com efeito, poder contar com o fio condutor da autoria do próprio autor, com uma soma de talentos multifacetados, com a capacidade de compreender o mundo da vida, melhor do que ninguém, a partir de testemunhos coevos – tudo isso serve para demonstrar que temos a herança de alguém que tendo sido também investigador histórico (leia-se o que de fundamental que escreveu sobre D. Pedro V), pôde tornar-se na literatura portuguesa um ensaísta, um memorialista e um romancista de grande valia. O tempo se encarregará de o tornar cada vez mais evidente!
Guilherme d’Oliveira Martins