A VIDA DOS LIVROS
De 7 a 13 de Abril de 2008.
“A Escola do Paraíso” de José Rodrigues Miguéis (1901-1980), cuja 1ª edição saiu a lume no ano de 1960 (edição actual da Estampa), é um romance autobiográfico, onde o autor invoca as suas raízes lisboetas. Nasceu na Rua da Saudade, em Alfama, e descreve com mestria o ambiente de um país e de uma cidade (do início do século passado) de contrastes, de incertezas, de disparidades e injustiças. Apesar de cedo ter emigrado para a Bélgica primeiro, e depois para Nova Iorque, Miguéis nunca deixou as fortes recordações das suas origens, que descreve como ninguém e que o levaram a dizer que essa era a maneira “de continuar a viver em Portugal sem lá estar”. Infelizmente, o grande romancista parece esquecido, apesar de a sua obra e o seu exemplo cívico serem dos mais significativos no panorama cultural português do século XX. Com efeito, basta lermos o que escreveu, para percebermos bem que estamos perante um dos nossos autores formal e substancialmente mais ricos.
OBRA-PRIMA
Quer Joel Serrão quer David Mourão-Ferreira não tiveram dúvidas em considerar “Escola do Paraíso” como uma obra-prima, que ao longo de 33 capítulos acompanha um percurso iniciático que nos remete simbolicamente para o “Paraíso” da “Divina Comédia” de Dante. Num romance de carácter inequivocamente recordatório, mesmo com a utilização do presente do indicativo e da terceira pessoa do singular, Rodrigues Miguéis parte do que conhece e do que lhe é próximo, da sua cidade da infância e juventude, invocando a sua memória de então. E se os primeiros textos da sua obra, como “Páscoa Feliz” (1932), podem ser classificáveis na proximidade do neo-realismo, em especial pelas preocupações fortemente sociais do jovem autor, o mesmo não pode dizer-se dos livros da maturidade, em que a personalidade do romancista, então já robustecida, exprime uma originalidade muito própria, bebida no naturalismo e no realismo oitocentistas, com ecos de Camilo e de Eça, a que acresce a posterior, mas não menos intensa, influência de Raul Brandão. De facto, “Escola do Paraíso” não é passível de um rótulo. Juntam-se nele a melhor tradição do século anterior a uma evidente tentativa de ser fiel às pessoas, aos lugares e aos acontecimentos.
LISBOA PARAÍSO
“Por extraordinário que possa parecer, o Paraíso existe e está ao nosso alcance (diz Miguéis): ao cimo da Calçada, quase no encontro de três ruas, mas recolhido e ausente. Desde a Sé, lá em baixo, o labirinto das ruas, a meia-laranja, a íngreme ladeira com os gradeamentos polidos como bronze, os telhados sobrepostos, a capela sempre fechada – tudo isto forma um presépio erguido sobre muros e socalcos de jardins donde se debruçam velhas pimenteiras, trepadeiras e flores mal cuidadas, e se enxergam painéis de antigos azulejos”. Sentimos a cidade dos anos dez e vinte e projectamo-la nos dias de hoje em razão da personalidade e da beleza estruturais. E se as preocupações sociais são evidentes, a verdade é que são caldeadas pela exigência de não ficar pelos lugares comuns e simplificações. Miguéis é, no fundo, um autor muito inteligente, sempre preocupado em ir ao essencial das coisas por caminhos muito rigorosos – articulando a dimensão existencial e psicológica, a compreensão social e a vitalidade romanesca, irónica e dramática. E esta Lisboa Paraíso é singularíssima na beleza intrínseca, mas também na força da saudade, do desejo e da lembrança, vividos pelo escritor num exílio, que não esquece o tempo e o lugar de que há muito está afastado e de onde sabe não poder regressar. “Ninguém tem mais pátria que aquele que a perdeu e a vive como perdida” – dirá Eduardo Lourenço.
OS CONTRASTES DA VIDA
“Saudades para D. Genciana” (1956) e a lembrança da Almirante Reis e de Lisboa Oriental vêm à memória quando lemos “Escola do Paraíso”, em ambos os textos há a mesma recordação forte da cidade de Lisboa. E nos dois casos é a memória que funciona, encontramos uma escrita que nos toca intimamente, ligando razão e sentimento. “No alto do Castelo o sol de oiro e coral resplandecia ainda, mas na rua era o crepúsculo, e na escada reinava a escuridão. Adélia subiu às apalpadelas, procurando apoiar-se na parede salitrosa, e tacteando com as botinas os degraus rangentes, gastos, com receio de resvalar naquele antro”. A um tempo, sente-se a cidade bela e esplendorosa e as casas velhas e decadentes dos bairros pobres. E para quem conhece a alma da cidade, fácil é de perceber o rigor das sentidas e saudosas lembranças de Rodrigues Miguéis. E entendemos muito bem por que razão Gabriel, o protagonista de “Escola do Paraíso”, nada regateia na exigência de ir ao encontro do simpático e do antipático, da bondade e da fealdade. Uma cidade não se limita ao agradável e ao desagradável, nem às alegrias ou às tristezas, tem tudo. A descrição inicial do nascimento é violenta, como são violentas muitas das descrições da cidade. Mãe e cidade encontram-se numa vocação comum de beleza e de drama. “Não se pode ter nascido ali, viver a ver chegar e partir navios todos os dias, com um rasto de lágrimas e o esvoaçar de adeuses no azul, nem ouvir noite e dia estas vozes, sem ficar impregnado de irremediável nostalgia. Tudo isto, o rio imenso, os cais, o mar, os horizontes, se integra nele e ficará para sempre dentro dele como um apelo de longe e uma saudade, anseio de partir e de voltar: quando? E para onde?”. Melancolia, saudade e nostalgia são sentimentos que temos de sentir e partilhar, invocando, por associação de ideias, Cesário Verde e a sua vivência lisboeta. “Nas nossas ruas, ao anoitecer, / Há tal soturnidade, há tal melancolia…”.
UM INCOMPREENSÍVEL ESQUECIMENTO
É estranho, no entanto, verificarmos como José Rodrigues Miguéis quase ficou esquecido na literatura portuguesa contemporânea. Porquê? A distância, os temas, a independência de espírito? No entanto, a pujança e a fidelidade são as características da sua obra. Pujança, no tratamento dos contrastes e na consideração dos sentimentos e das emoções, sem cedências fáceis, e sempre num tom equilibrado entre a memória sentida e reconhecida e um estoicismo capaz de aceitar o drama e a dor sem os iludir. Fidelidade, às raízes e a um culto especial da liberdade, mesmo para além das conveniências circunstanciais. O protagonista Gabriel-criança não oculta o adulto que há potencialmente em si e sabe não poder esconder-se quando fala o romancista (que reencontraremos, aliás, em “O Milagre Segundo Salomé”, de 1975). E o paraíso da recordação infantil corresponde à incerteza e ao drama – a morte do rei D. Carlos, o fim da monarquia, a agitação própria de um momento de profundas transformações. A ideia de desastre coexiste com a necessidade de esperança. E Gabriel é o símbolo da contradição e da perplexidade, da dúvida e do desejo. É a sociedade portuguesa que fica retratada, não apenas no lar de Adélia e Augusto, mas também em tudo o que o rodeia, desde os burgueses bem colocados na vida a tutti quanti. Gabriel (narrador e personagem) adere ao republicanismo com esperança (o paraíso está no futuro!), mas resiste à discricionariedade, à violência das forças policiais e à insensibilidade social. Prefere uma atitude que preserve a autonomia individual e percebe que a sociedade se divide em busca de falsos “milagres” entre análises simplistas e erróneas (“tudo caminha mal: a moeda, as colheitas, os impostos, a chuva, a seca, o parlamentarismo, a balança comercial, o ensino, os tabacos, as pragas de gafanhotos, e outros aspectos crónicos da existência colectiva”, dir-se-á no “Milagre”). Mas “Escola de Paraíso” não é um romance político, mesmo que tenha como pano de fundo acontecimentos de índole política. É uma crítica à raiz dos confrontos da sociedade portuguesa. E Gabriel tenta fugir, fugir para dentro de si mesmo, fugir simbolicamente em direcção incerta. “E para onde ia? Não tinha para onde ir. O paraíso, a idade-de-ouro, o sonho – nada disso existia fora dele. Estava dentro da vida e não podia fugir-lhe. Mas alguma coisa mais do que um homem morrera ali: um tempo, a sua infância”.
Guilherme d’Oliveira Martins