A VIDA DOS LIVROS
de 28 de Maio a 3 de Junho de 2012
Na semana em que se realiza em Lisboa o Congresso Europeu do Património, organizado pela Europa Nostra e pelo CNC, recordamos três obras clássicas dedicadas ao Património, à memória e à respetiva preservação. Falamos de «A Ilustre Casa de Ramires» de Eça de Queiroz (Chardron, 1900), de «Brideshead Revisited – Sacred & Prophan memories of Captain Charles Ryder» («Regresso a Brideshead») de Evelyn Waugh (Chapman and Hall, 1945) e de «Au Plaisir de Dieu» de Jean d’Ormesson (Gallimard, 1974).
Howard Castle (UK)
«O FIDALGO DA TORRE»
As três obras são profundamente diversas, até pelas épocas diferentes em que foram concebidas e escritas, de qualquer modo apresentam características comuns que merecem realce e que têm a ver com o facto de haver uma saga familiar que é inserida em vários períodos históricos, nos quais se pretende analisar as especificidades culturais e a ligação à memória e a um património ancestral. Gonçalo Mendes Ramires é de uma linhagem antiga, que permite seguir a vida histórica de Portugal. Ocupa-se em escrever uma novela histórica, «A Torre de D. Ramires», ele, «o fidalgo da Torre», instalado na pequena aldeia de Santa Ireneia, vizinha da Vila Clara, no termo de Oliveira. Dir-se-ia que há um apelo do tempo, num momento em que o tédio parece prevalecer. A não ação parece ser a paradoxal característica desta personagem. A recordação de antanho procura compensar a ausência de motivação contemporânea. É o tradicional problema português, em que o mito histórico invade a circunstância atual, com resultado incerto e algo perverso… Será cada qual digno de seu passado? E Gonçalo parte para África, sucedâneo do império antigo e regressa. É então que o romancista o retrata, como se ele fosse o símbolo de Portugal. «Os fogachos e entusiasmos, que acabam logo em fumo, e juntamente muita persistência, muito aferro quando se fila à sua ideia… A generosidade, o desleixo, a constante trapalhada nos negócios e sentimentos de muita honra, uns escrúpulos quase pueris, não é verdade?… A imaginação que o leva sempre a exagerar até à mentira, e ao mesmo tempo um espírito prático, sempre atento à realidade útil. A viveza, a facilidade em compreender, em apanhar… A esperança constante nalgum milagre, no velho milagre de Ourique, que sanará todas as dificuldades… a vaidade, o gosto de arrebicar, de luzir, e uma simplicidade tão grande, que dá na rua o braço a um mendigo… Um fundo de melancolia, apesar de tão palrador, tão sociável. A desconfiança terrível de si mesmo, que o acobarda, o encolhe, até que um dia se decide, e aparece um herói, que tudo arrasa… Até aquela antiguidade de raça, aqui pegada à sua velha Torre, há mil anos… Até aquele arranque para África». Gonçalo surge neste romance como um paradigma simbolista, finissecular, ambígua representação de uma decadência que aspira genuinamente a superar a pura descrença. Nesse sentido é dos romances mais complexos de Eça, a requerer uma leitura incompatível com a simplificação nacionalista, que muitas vezes se ouve. Por isso, salientamos o carácter pioneiro da consideração da importância do património cultural, numa aceção dinâmica e não conservacionista.
A PRESENÇA FORTE DE UMA LEMBRANÇA
«Regresso a Brideshead» é um retrato de Inglaterra na primeira metade do século XX. A partir do romance de uma casa e da história de uma família. Sente-se a guerra europeia, as contradições da industrialização e da tradição, o anglicanismo e o catolicismo, a crise da velha nobreza, a decadência das casas antigas e do que significavam, mas também as reminiscências da honra, da dignidade e também do dogmatismo em ligação com a esperança. Contudo, a Graça divina vai emergindo subtilmente, uma vez que a esperança, a honra e a dignidade não permitem a indiferença. Há, aliás, um diálogo entre Charles e Cordelia, a irmã mais nova de Sebastian, em que Waugh traz uma citação célebre de Chesterton (bem sentida por ele mesmo) retirada de um dos contos mais conhecidos do Padre Brown, sobre pescadores de almas: «Apanhei-o com um anzol invisível e uma invisível linha tão comprida que posso deixá-lo vaguear até aos confins do mundo e, mesmo assim, trazê-lo de volta só com uma sacudidela do meu dedo». E essa ligação é teológica, tendo também a ver com a relação vital e rica entre pedras vivas e pedras mortas e entre o passado, o presente e o futuro. A amizade entre Charles Ryder e Sebastian Flyte é feita da procura de compreensão do «outro» com todas as dificuldades e resistências de aproximação e de distância. O romance é, assim, entretecido por um profundo afeto por uma casa histórica e pelas pessoas que a habitam. E Evelyn Waugh diz no prefácio à edição de 1959 que, em 1944, quando escreveu a obra, estava longe de supor que as casas de campo inglesas ganhassem a importância que obteriam como exemplos vivos de história e de identidade. Pode, aliás, dizer-se que o escritor foi dos contribuiu decisivamente, para que essa atenção patrimonial, de modo que as casas não fossem vítimas de um cruel esquecimento, como tinha acontecido com os conventos no século XVI. No fundo as casas têm alma e são pontos de encontro entre a história e a vida.
«AU PLAISIR DE DIEU»
«C’est le banal qu’il faut montrer, parce que c’est ce qu’on ne voit plus, à force d’habitude et de familiarité». Jean d’Ormesson, como Waugh, faz uma viagem à história centrada na relação entre uma família e a sua propriedade rural, detida ancestralmente. O berço da tribo era o Castelo de Plessis-lez-Vaudreuil, que resumia uma longa história desde as cruzadas até aos nossos dias. Os acontecimentos do século XX precipitam a mutação e a decadência – a modernização, a indústria, a emergência da burguesia, a guerra, a resistência, o amor, o dinheiro, os debates dilacerantes, Pétain e De Gaulle, a tradição, as mudanças políticas, Maurras e Karl Marx… Tudo se mistura num torvelinho de contradições. A vida quotidiana penetra nas grandes questões. As transformações profundas geram o drama e a ameaça da decadência. Ressalvadas as distâncias, são os mesmos temas que encontramos em Brideshead – com um maior distanciamento aqui relativamente às tradições. Daí que Jean d’Ormesson dedique o seu livro a seu pai, apresentado como liberal, jansenista e republicano – atributos correspondentes a camadas diferenciadas da história e da vida. Malraux disse, aliás, um dia: «que livros valem a pena ser escritos, para além das Memórias?». E aqui sente-se isso exatamente. Sostène reporta-se à noite dos tempos, a Éléazar nascido no século XI. Séculos e séculos de serviço «au plaisir de Dieu». É o esteio da família, o ponto de encontro das diversas lembranças e recordações, a partir de um tempo em que a cultura dos campos domina, como um relógio regularíssimo. «Nasci num mundo que olhava para trás. O passado contava mais que o futuro. O meu avô era um velho bom muito direito que vivia da recordação. A sua mãe tinha dançado nas Tulherias com o duque de Nemours, com o príncipe de Joinville, com o duque de Aumale, e a minha avó em Compiègne com o príncipe imperial». O tempo foi-se acelerando e as pessoas deixaram de ter tempo. O silêncio foi sendo ocupado pelo ruído, os ritmos tradicionais pela marcação forte dos compassos… E foi-se tomando consciência de que seria necessário restaurar as ardósias dos telhados, certos de que a alma das casas é afetada pela doença que leva à sua destruição física. É preciso preservá-la, ligando pedras vivas e pedras mortas, enquanto lugar de acolhimento e de ternura, de força e de consistência! Falar de património, não é falar de castelos no ar, mas de amores e desamores, de vontades e caminhos – de pessoas!
Guilherme d’Oliveira Martins