A VIDA DOS LIVROS
de 21 a 27 de Maio de 2012
«O Delfim» de José Cardoso Pires (Moraes Editores, 1968) é uma das obras que celebrizou o seu autor, por muitos considerado como influenciado pelo neorrealismo, mas, de facto, insuscetível de ser catalogado numa qualquer escola ou num grupo. Profundamente atento ao seu tempo, conheceu muito bem a literatura norte-americana e o surrealismo, entendendo como poucos, a importância da narrativa cinematográfica. Daí haver uma natural empatia entre autor e realizador, na obra homónima de Fernando Lopes (com a mediação de Vasco Pulido Valente). Dir-se-ia, assim, que «O Delfim» é o resultado de um diálogo biunívoco e natural entre a literatura e o cinema que leva a uma simbiose reveladora da qualidade de ambos os autores – na leitura de uma história impossível de resistência à mudança.
Fotograma de «O Delfim», de Fernando Lopes.
O CINEMA COMO GERAÇÃO
Cheguei até Fernando Lopes através dos meus bons amigos da geração de «O Tempo e o Modo» (que não sendo minha, segui com estima muito especial, através de pessoas como António Alçada Baptista, ele mesmo um centro irradiante de «grandes amizades») nesse misto de interrogação, de dúvida e de otimismo trágico, que foi marca indelével dessa maneira de pensar. Depois encontrei uma das suas netas, a Sofia, no Centro Nacional de Cultura, julgo que não poderia ter havido sítio melhor, e isso foi motivo para falarmos várias vezes de sementeiras de futuro, de perplexidades e da necessidade de termos os olhos bem abertos e atentos, onde a indiferença vai tendo tanta força. Olhando a sua presença, devo começar quase pelo princípio. O caso de «Belarmino» (1965) é muito especial. É um dos emblemas do chamado cinema novo, com um lugar único, que vai muito para além da circunstância ou de um cânone. Lembre-se, aliás, um memorável dossiê de «O Tempo e o Modo». Com exagero houve quem dissesse que esse foi o contributo de Fernando Lopes para a história do nosso cinema. Não, houve muito mais.
O AMOR DA LITERATURA
Ele amou profundamente a literatura, o cinema e a televisão, e sobretudo o mundo das pessoas – e deixou um testemunho vivo através de tudo o que fez, e do exemplo prático, indo ao encontro da realidade e da vida. Por isso, «Belarmino» é um caso aparte. Paulo Rocha disse: «Enquanto Fernando Lopes for vivo ninguém vai conseguir parar o cinema português». E Alberto Seixas Santos liga-o indelevelmente a «Verdes Anos», do próprio Paulo Rocha. É a matéria-prima da literatura e da narrativa que está em causa. Estamos diante de um documento fidelíssimo da circunstância que retrata, que nos leva a conhecer uma pessoa autêntica, de carne e osso, um lutador popular que passaria despercebido se não tivesse chamado a atenção de Fernando Lopes, do seu inequívoco talento artístico e intuição humana. Que é um filme senão um modo de prender o tempo? Alexandre O’Neill, no ano seguinte à apresentação do filme, escreveu o poema «Amigos pensados: Belarmino», em homenagem aos vários encontros boémios no mundo da Lisboa dos anos cinquenta e sessenta. E pode dizer-se que foi O’Neill quem melhor captou o sentido desse filme, que recorda muito mais do que «Rocco e os seus irmãos», uma vez que a estética e a conceção de Fernando Lopes não se podem resumir a um respeito de escola, qualquer que seja, mais ou menos neo-realista. Há abertura a novas perspetivas, e sobretudo a procura da vida que não se encerra em cânones pré-definidos. Se não fosse assim não poderíamos dizer que é neste poema de «Feira Cabisbaixa», ao lado dos exemplos de Tereno, Eulália e Alice, que se procede a uma fidelíssima interpretação do que verdadeiramente estava em causa neste documentário inexcedível, que, em boa verdade, é muito mais do que isso, entre a fotografia de Augusto Cabrita, a música de Manuel Jorge Veloso, a entrevista de Baptista Bastos, e o genial suceder de imagens, no aproveitamento belíssimo de uma coreografia esplêndida. Quando O’Neill viu o filme apaixonou-se logo por ele. Viu aí a profunda atenção aos dramas humanos e ao que na realidade nos conduz a ultrapassar o real, procurando compreendê-lo. Gerou-se então uma amizade entre Fernando e Alexandre, digna do que o poeta designou, em sua casa, como «cabine dos irmãos Marx», espécie de refúgio para tantos e inusitados amigos pensados. E o certo é que odas estas palavras são ponderadas, uma vez que, passados os anos, Belarmino Fragoso continua na nossa memória não como uma personagem, mas como autêntico símbolo de uma sociedade em transição, do encerramento para a abertura. «Tiveste jeito, como qualquer de nós,/e foste campeão, como qualquer de nós./Que é a poesia mais que o boxe, não me dizes?/Também na poesia não se janta nada,/mas nem por isso somos infelizes./Campeões com jeito/é nossa vocação, nosso trejeito./Esperam de 1 a 10 que a gente, oxalá, não se levante/- e a gente levanta-se, pois pudera, sempre./Mas do miudame levámos cada soco!/Achas que foi pouco?/Belarmino:/Quando ao tapete nos levar/A mofina,/Tu ficarás sem murro,/Eu ficarei sem rima,/Pugilista e poeta, campeões com jeito/E amadores da má vida».
«BELARMINO» COMO REFERÊNCIA
Porém, «Belarmino», referência histórica insuperável, não teve sucesso comercial, e veio, graças a uma convergência de amizades, «Uma Abelha na Chuva» (1972), no dizer de João Bénard da Costa «adaptação libérrima de um romance de Carlos Oliveira», que «reviu o neo-realismo à luz do romantismo e inovou tanto pelos lados da mise-en-scène quanto pelos da montagem». E a marca crítica e inovadora de Fernando Lopes ficou de novo evidenciada, como foi prenunciado no filme inicial. Conhecemos o seu percurso e a sua vida. Os seus amigos têm-no recordado e sentimos que ele nos fez usufruir dos melhores resultados da criatividade, da arte e do talento – como na inesquecível experiência da RTP-2, nos seus tempos mais gloriosos, que temos de continuar a lembrar, pelo espírito livre, aberto, inovador e desassossegado. Olhando o percurso vêm-nos à mente alguns flashes. A «Crónica dos Bons Malandros» (1984), sob o tema de Mário Zambujal (com quem recordei Fernando, como se ali estivesse, à porta das Galveias), ilustra um tema bizarro, passado ali a dois passos, na Gulbenkian, protagonizado por uma quadrilha cansada de vulgares assaltos. Mas mais do que isso: dá-nos conta de quem era este singular cineasta, que sobretudo amava a vida e o inesperado dela. Quantas vezes invocou esse desejo íntimo de se deixar atrair pela aventura em busca de um bom momento. E era desses momentos bons que a vida dele se foi compondo, como nos dizia sempre o seu sorriso melancólico. «O Fio do Horizonte» (1993), com base num texto de António Tabucchi, foi o filme que Fernando Lopes mais terá gostado de fazer. Aí reencontramos, de novo, a procura da existência. Spino, anátomo-patologista da morgue de Lisboa, depara-se com o corpo de um jovem que o atrai estranhamente. João Bénard encontrou aí Borges e Pessoa, numa «história de duplos e de um vivo que encontra o morto que é ele». José Cardoso Pires deu, por outro lado, o enredo e a tensão dramática de «O Delfim» (2002). É, de novo, o país entre o fechamento e a abertura que está na ribalta – o tema da transição surge apresentado com naturalidade e subtileza, como se houvesse dois registos: o do tempo que permanece e o dos constrangimentos que levam à mudança. Este é o tema recorrente de Fernando Lopes, sempre ciente de que deveria dar testemunho crítico relativamente a uma sociedade que parecia não mudar nos seus fundamentos e que sofreu um profundo abalo telúrico com repercussões de largo prazo. Um incidente, como é regra nos romances de Cardoso Pires, é o revelador de tudo. «Tomás Manuel domina os cães com pulso forte, tem-nos colados a ele. Tremem os três, presos ao chão. Dois mastins e um homem que acende cigarros uns nos outros e que mostra às dunas um rosto devastado…».
Guilherme d’Oliveira Martins