A VIDA DOS LIVROS
de 14 a 20 de Maio de 2012
«Daqui houve nome Portugal» é uma antologia emblemática da literatura relativa à cidade do Porto, da autoria de Eugénio de Andrade (2ª edição, Asa, 2000), da iniciativa de José da Cruz Santos, no ano de 1968. É sem dúvida «o mais belo retrato das pedras e das gentes do Porto». Merece estar sempre presente na nossa memória.
O CARÁTER DA CIDADE INVICTA
Eugénio de Andrade diz que “a cidade o que tem, sobretudo, é carácter – um carácter que faz do cidadão do Porto o mais belo estilo de se ser português”. Tem razão. A síntese é feliz e adequada, merecendo ser compreendida. E Sampaio Bruno, mestre de várias gerações de pensadores (como Leonardo ou José Marinho), afirmava que “no Porto, o pão tem de ser laboriosamente conquistado dos lucros do comércio”. Isto, enquanto Raul Brandão falava do Porto “filho do rio e do mar” e Jaime Cortesão recordava os portuenses que conquistaram “as suas liberdades palmo a palmo, em luta armada com os seus bispos, de quem a cidade fora senhorio feudal, e com os turbulentos fidalgos de Entre Douro e Minho…”. Desta forma se criou no Porto uma “verdadeira república urbana, como as suas congéneres da Flandres e da Itália”, distinguindo-se destas “pelo profundo sentimento de comunhão com que compartilhava as aspirações e os riscos da pátria maior”. Aí “burgueses e mesteirais organizaram-se como classe e conquistaram as garantias de liberdade, sem as quais o trabalho se torna servidão e a vida perde dignidade”. E nessa luta ancestral, lembre-se o Arco de Sant’Ana, escrito por Garrett no Convento dos Grilos, após o desembarque do Mindelo, no cerco heroico que culminaria com a vitória da causa liberal em Évora Monte. Aí se ilustra, com laivos de metáfora, a insurreição popular contra um bispo barregão, no tempo do rei D. Pedro I. E em ambos os casos venceu a causa emancipadora. É este o burgo medieval que Garrett descreve, que dará lugar à “cidade comercial, civilizadamente cosmopolita” desenhada por Ramalho Ortigão.
CIDADE DE CAMILO
Mas estamos ainda perante a “cidade de Camilo”, segundo Teixeira de Pascoaes. Lá está a janela do cárcere na Cadeia da Relação, lembrando Ana Plácido e a escrita inspirada e intensa do Amor de Perdição. E não disse Nemésio que o Porto era “a raiz territorial e étnica que deu crescimento ao país”? Afinal, a cidade não nos deixa indiferentes e foi sempre marcante na história portuguesa. Eugénio de Andrade lembra, por isso, três figuras que se tornaram, cada uma à sua maneira, símbolos da cidade – Fernão Lopes, Almeida Garrett e Camilo. E se se fala do cronista de 1383, temos de ir ao Mestre de Aviz e a D. Filipa de Lencastre, ao Infante D. Henrique e a um tempo fundador na afirmação dos “fatores democráticos na formação de Portugal”. Do mesmo modo, ao lembrarmos Almeida Garrett, temos de recordar (aqui por contraponto a Camilo Castelo Branco) a causa liberal, desde pelo menos 24 de Agosto de 1820, a liderança de D. Pedro IV, o labor legislativo de Mouzinho da Silveira, o patriotismo dos irmãos Passos e a consolidação do constitucionalismo. E de Camilo fica o enorme talento, a sua vida aventurosa e a magnífica capacidade de nos dar as imagens marcantes de um período de heroísmo e de traição – numa sociedade rebelde contra os privilégios, mas ciosa das suas tradições. Mas há ainda Júlio Dinis de «Uma Família Inglesa», que retrata a cidade laboriosa e comercial, os jantares do Águia d’Ouro, os serões de Manuel Quintino, a agitação da Bolsa do Porto, o Teatro de S. João, onde se encontram Carlos Whitestone e Cecília…
PORTO, DIFERENTE DE TUDO
Por mim, poderia dizer, como Rodrigues Miguéis: “alfacinha, tenho um fraco pelo Porto”. Porquê? Pela liberdade, pela história e por sentir aqui as minhas origens. Lá está à beira da rua da Boavista, nas Águas Férreas, uma das casas das minhas raízes – as mesmas raízes que me levaram a representar, com orgulho e honra, de 1991 a 2005, o povo do Porto na Assembleia da República. De facto, o Porto é diferente de tudo. Sente-se-lhe a alma. Sente-se-lhe o inconformismo. Torga referiu-se-lhe como “velha e livre cidade”, com “uma saudável consciência gregária, uma solidez de processos de conduta e relação” – a “única grande cidade castiçamente nossa”. E Ruben A. não podia dizer melhor da sua cidade ao proclamar, como exemplo vivo do que é ser-se do Porto – “que ensina ao homem os seus deveres cívicos e que lhe tributa direitos que não despreza por forma alguma, cidade extraordinária de consciência política no que de mais nobre tem esta palavra em ligação com o valor humano da pessoa integrada nas defesas da comuna”. E como esquecer o Porto de Agustina Bessa Luís, que invoca “uma paixão e um selo de resistência”. Toda a cidade tem “uma alma de muralha” – muralha, que infunde em nós uma doce tristeza europeia, um orgulho de atividade, um desenho de pompas escravas, um sonho económico, uma impraticável fé de liberdade”. A muralha fernandina lá está para atestar o carácter invicto da cidade – no Caminho Novo em Miragaia ou nos Guindais – mas também a torre medieval do solar dos Terenas e Monfalins, talvez morada do lendário Pedro Sem, na rua da Boa Nova, perto do Palácio de Cristal… Mas como não falar da Torre dos Clérigos do italiano Nicolau Nasoni? E como não lembrar o velhinho Palácio de Cristal, de inspiração britânica, cuja primeira pedra foi lançada por D. Pedro V, e que foi infelizmente demolido nos anos quarenta do século XX para dar lugar ao atual Pavilhão dos Desportos, que agora convive com a importante Biblioteca Municipal de Almeida Garrett? No velho Palácio fotografaram-se os célebres Cinco – Antero de Quental, Oliveira Martins, Eça de Queirós, Ramalho Ortigão e Guerra Junqueiro – num dia em que Eça pagou com um leque representando cinco cães uma aposta perdida ao bilhar com a sua noiva D. Emília de Castro. «Quem muito ladra, pouco aprende» (Antero); «Escritor que ladra, não morde» (Oliveira Martins); «Dentada de crítico, cura-se com pelo do mesmo crítico» (Ramalho); «Cão lírico ladra à lua; cão filósofo aboca o melhor osso» (Eça); «Cão de letras, cachorro» (Junqueiro)… E se falo de autores, tenho de referir livros e uma peregrinação imprescindível à Livraria Lello, na rua das Carmelitas, lugar mágico para acolher livros, ideias e pessoas – o que não permite esquecer as visitas para viciados à Académica, à Leitura ou à Modo de Ler… Mas o Porto moderno e cosmopolita de hoje passa necessariamente pela Casa de Serralves (que foi propriedade dos industriais conde de Vizela e conde de Riba de Ave) e pelo Museu de Arte Contemporânea – com arquitetura de Marques da Silva a Siza Vieira. E aí sente-se que o Porto se mantém fiel às “saudades do futuro”. Como diria ainda Garrett: «Nós os do Porto, podemos trocar os bês pelos vês, mas nunca trocamos a liberdade pela tirania». Que melhor síntese poderemos encontrar?
Guilherme d’Oliveira Martins