A VIDA DOS LIVROS
de 30 de Abril a 6 de Maio de 2012
«Corpo e Transcendência» de Anselmo Borges recentemente reeditado pela Almedina (coleção «O Tempo e a Norma», 2011; a 1ª edição é da Fundação Engº António de Almeida, 2003) é uma obra desafiante que põe em diálogo a existência humana em carne e osso e a importância do espírito. Encontramos, aliás, um tema que tanto ocupou Miguel de Unamuno, no «Sentimento Trágico da Vida», e o nosso António Alçada Baptista, em especial em «Peregrinação Interior» – sobre a compreensão da importância da corporalidade na vida pessoal, em contraste com a lógica do pecado essencialmente ligado à carne. De facto, o mistério da Encarnação cristã obriga a olhar com especial atenção a ligação incindível entre corpo e espírito.
EXPERIÊNCIAS NUCLEARES DO TEMA RELIGIOSO
Para Gianni Vattimo há três experiências nucleares que estão na base do renascer contemporâneo do interesse religioso: «a experiência da morte de pessoas queridas com quem tinha pensado percorrer um caminho muito mais longo»; depois a questão da religião tem a ver com a fisiologia da maturação e do envelhecimento; e finalmente, precisamente os limites temporais da realização humana têm como consequência «avivar a esperança» de que a coincidência entre a existência de facto e o seu significado, que «não parece realizável no tempo histórico e no decurso de uma vida humana média, possa realizar-se num tempo diferente». No fundo, o fenómeno religioso leva-nos à interrogação sobre os limites. E que é a inteligência senão essa capacidade de compreender a fronteira para além da qual a razão fica limitada, não podendo fazer mais do que duvidar, interrogar-se ou ter fé e esperança. Longe da ideia de que os limites apelam à irracionalidade, estamos diante do cruzamento exigente e inexorável da razão e da fé. Não estamos nem no domínio da demonstração, nem no campo da certeza, mas sim perante a exigência de aceitar que a incompreensão existe e apela à transcendência – que o cristianismo consagra na aproximação ao próximo ou «ao outro através do não outro, Deus». Pedro Laín Entralgo fala-nos de um corpo vivo num determinado momento histórico, que «trata de entender-se a si mesmo». E assim distingue cinco momentos: «o que sou como resultado de um ato criador (eu e a cosmogénese); o que sou como resultado de uma evolução biológica (eu e a filogénese); o que sou como resultado de um desenvolvimento embriológico (eu e a ontogénese); o que sou como resultado de um devir histórico (eu e a história); o que sou como resultado de um processo biográfico (eu e a minha personalidade)». Deste modo, há um fio condutor que é animado pela esperança e que permite «manter um diálogo sempre aberto e introduzir uma intenção fraternal nos mais ásperos debates» (no dizer de Ricoeur). E estamos, nessa esperança que nos supera, ante um elemento escatológico que unifica e eterniza.
AMOR E MORTE, FACES DA MESMA MOEDA
O percurso dos textos de Anselmo Borges começa exatamente nesse «corpo que espera», continuando: no homem como corpo-pessoa-no-mundo-com-os-outros que interroga o crime económico; nos temas da morte e da eutanásia; do ateísmo, da ética e da mística (dizendo Simone Weil que «Deus é o bem», pelo que «nenhuma revelação no momento da morte pode provocar desgosto» ou arrependimento); na questão de Deus em Fernando Pessoa; no diálogo inter-religioso; no tema do ministério ordenado; – terminando num notabilíssimo ensaio sobre «o tempo para além do tempo». Afinal, como afirma Hannah Arendt: «A questão da natureza do homem não é menos teológica que a questão de Deus». Daí que a pobreza cristã não seja o esquecimento dos bens terrenos e da propriedade, mas sim a lembrança da liberdade e da dignidade – «não sejais escravos de vós próprios». Por outro lado, é a consciência de ser mortal que me força a pensar, colocando-me em estado de constante e inquieta interrogação e abertura ao mistério. Como disse Gabriel Marcel: «Amar um ser é dizer-lhe: tu não morrerás». E Montaigne ensinou-nos que o pensamento é a permanente aprendizagem da morte. Contudo, nos dias de hoje, encontramos, a cada passo, a tentação da indiferença ou a recusa da compreensão da morte, como se, esquecendo o tema, fosse possível resolver o mistério. A sociedade em que vivemos dominada pela tecnociência pratica paradoxalmente o excesso terapêutico e ao mesmo tempo defende a eutanásia ativa, que tem como modelo a realização técnica da morte. O tema é difícil e melindroso e os abusos dos dois termos da contradição deixam-nos perplexos. E Anselmo Borges (que trata do tema com extremo cuidado) pergunta: «Não será precisamente neste paradoxo que se manifesta de modo claro a crise de uma sociedade poderosíssima nos meios, mas sem finalidade humana?». E, se Camus pergunta se é possível ser-se santo sem Deus, o que está em causa é a procura incessante do bem e da dignidade humana, onde quer que se encontrem, sem preconceitos, indo ao encontro de todas as pessoas, quem quer que sejam e onde quer que se encontrem, crentes e não crentes.
O MISTÉRIO INSONDÁVEL DO TEMPO
A obra é extremamente rica abrangendo um conjunto de temas e reflexões que nos levam da mística à ética, da esperança ao amor. O ensaio sobre o tempo é, assim, um magnífico culminar, pondo em contacto tudo quanto ao longo da obra encontramos numa busca fecunda de um humanismo universalista. Como disse Agostinho de Hipona: «Se ninguém me perguntar, eu sei o que é o tempo; mas se alguém me puser a questão e eu tiver de responder, já não sei o que é o tempo. De facto, o passado já não é, o futuro ainda não é, e o presente quando queremos captá-lo já lá não está». A partir daqui pensamos todos os mistérios que nos abalam. Kant afirmou que o tempo é a «intuição pura». E Pascal, ao falar de toda a eternidade que o antecedeu e de toda a eternidade que se seguirá, afirmou: «Só vejo infinidades por todo o lado, que me encerram como um átomo e uma sombra que dura só um instante sem regresso. Tudo o que sei é que vou morrer em breve; mas o que mais ignoro é esta própria morte que não poderei evitar». E Leslek Kolakowski recorda-nos: «Deus não pode criar uma evidência empírica da sua existência que pareça irrefutável ou mesmo sumamente plausível em termos científicos», pois, para isso, teria de fazer «um milagre lógico em vez do físico». Eis por que motivo fé e razão se completam naturalmente, em domínios diferentes. E o certo é que, desde os gregos, que o tempo é naturalmente ambíguo – entre Cronos que devora os seus próprios filhos, sendo uma divindade mecânica, repetitiva e efémera; e Kairos, filho de Cronos, mas referido à liberdade, à duração e à eternidade. E estamos, deste modo, algures entre o físico e o metafísico…, entendendo a relação fecunda entre corpo e transcendência.
Guilherme d’Oliveira Martins