A VIDA DOS LIVROS
de 9 a 15 de Abril de 2012
Prepara-se em boa hora a publicação da obra completa do Padre António Vieira. Saudando a iniciativa, recordamos a edição que tantos de nós lemos e consultámos: os três volumes de «Sermões», no âmbito das «Obras Escolhidas», na coleção «Clássicos Sá da Costa», com prefácios e notas de António Sérgio e Hernâni Cidade. A primeira edição destes tomos foi de 1954 e a última, ainda está disponível, foi lançada em 2008, no ano do centenário do nascimento do «Imperador da Língua». Podemos através desta edição contactar com o orador sagrado de exceção, lendo os seus sermões mais conhecidos e celebrizados, com notas pedagógicas, que permitem uma boa compreensão das circunstâncias e do contexto em que foram ditos.
ORADOR PORTENTOSO
O Padre António Vieira é das figuras mais apaixonantes da cultura portuguesa. Não é, por isso, possível compreendê-lo através de quaisquer simplificações. Há sempre no seu pensamento e na sua escrita um lado misterioso e insondável que ultrapassa todas as aparências. Orador portentoso soube sempre usar a palavra com subtileza e força, como um meio de persuasão e de sedução – como ninguém mais foi capaz na nossa língua. Pode dizer-se que estamos perante uma síntese fecunda do espírito barroco – ligação entre a clareza do verbo, a compreensão da diversidade do mundo e a curiosíssima articulação dos adornos, orientados para dar eficácia às ideias. E o seu carisma chega aos nossos dias. Ninguém fica indiferente às suas palavras, quatro séculos passados. Quantas mudanças, e no entanto persiste a atualidade da atitude, das palavras e da necessidade de mobilizar todos os seres humanos em torno do objetivo de tornar a vida e a sociedade mais justas. Como hoje se vê, conhecendo-se a «Clavis Prophetarum» (na tradução de Arnaldo Espírito Santo) há aí um pensamento de Vieira, que supera o excecional domínio do estilo, com uma reflexão teológica e política da maior profundidade, orientada para a criação de condições humanas de legitimidade e justiça – corolário do mistério da Encarnação de Jesus Cristo.
O debate em torno do «sebastianismo» é inesgotável, mas o certo é que Vieira não considerava a espera circunstancial de D. Sebastião como a questão fundamental. Mais do que o mito importava-lhe o exercício do desígnio de um povo. Como afirmou A. M. Machado Pires, em «D. Sebastião e o Encoberto»: a «essência do sebastianismo não estava na figura do rei (que lhe deu nome), mas nos anelos que há de realizar». O Encoberto não seria assim o monarca desaparecido nas areias de Alcácer Quibir, mas um rei com os atributos anunciados décadas atrás por Gonçalo Anes Bandarra, o sapateiro de Trancoso, capaz de libertar os povos das misérias, da tirania e do erro. D. João de Castro, em 1587, daria, aliás, conta dessa esperança no seu «Da quinta e última Monarquia futura com muitas outras cousas admiráveis dos nossos tempos». Durante o período da monarquia dual, as ideias sebastianistas expandiram-se compreensivelmente, e com maior intensidade nos anos finais (nos tempos de Olivares e do período decisivo da guerra dos 30 anos). Afinal, mais do que uma «Corte na Aldeia» era necessário um rei que consumasse a independência. Existia, assim, um desígnio político claro que tinha de ser compreendido na circunstância histórica, muito mais do que na busca de razões culturais ou até étnicas. O jesuíta deve, porém, ser visto e entendido no cruzamento de diversas influências e ações de fundo messiânico judaico, a começar no Livro de Daniel (2 – 31-35) e a continuar no profetismo de Santo Isidoro e de Frei Gil de Santarém, no ciclo bretão (de Merlim e do Rei Artur), na Idade do Espírito Santo do monge calabrês Joaquim de Flora e dos franciscanos espirituais, na influência de sefarditas e cristãos-novos e no Bandarra («Todos terão um amor / Gentios como pagãos / Os judeus serão cristãos / Sem jamais haver error»).
QUE MESSIANISMO?
Para J. Lúcio de Azevedo (in «A Evolução do Sebastianismo», 1918) a origem do messianismo português estaria ligada a um patriotismo sagrado – «nascido na dor, nutrindo-se da esperança, ele é na história o que é na poesia a saudade, uma afeição inseparável da alma portuguesa». Já Maria José Ferro Tavares («O Messianismo na obra do Padre A. Vieira», 1999) afirma que «a história era a mestra do futuro da humanidade e tinha, por isso, uma função pragmática. Completavam-na nessa função as profecias: “Se quereis ver o futuro, lede as histórias, e olhai o passado: se quereis ver o passado, lede as profecias, e olhai para o futuro”, escreveria Vieira». António Sérgio consideraria o messianismo difundido pelo visionário de Trancoso um fenómeno nascido entre os cristãos novos – o bandarrismo «foi uma das causas ou fatores da imaginação portuguesa da decadência, graças ao encontro de ideias alheias com factos históricos supervenientes: um fenómeno social e intelectual, portanto, independente da raça em que se manifestou». Por seu turno, Machado Pires põe a tónica na interpretação histórica dos acontecimentos: trata-se de um esforço de sobrevivência política impulsionado por um instinto de conservação nacional, uma superação das horas de vexame e tirania». No fundo, as razões são várias. E o mais interessante e curioso é que Vieira, com grande argúcia, vai procurar compreender esses diversos elementos – centrando-se na ideia bíblica da segunda vinda de Cristo e na transposição da vocação de Portugal como a de um segundo «povo eleito». Contudo, ao falar na «Clavis» do Quinto Império o Padre Vieira dá-lhe um sentido universalista, não o ligando sequer a um poder nacional – em nome de «uma perspetiva verdadeiramente ecuménica e menos particularista», centrada na «indistinção» («não há grego nem judeu») e numa leitura de que «o império de Cristo não é só temporal, senão também temporal», como Pedro Calafate salienta («História do Pensamento Filosófico Português», vol. II, 2001).
UM ESPÍRITO ABERTO
Sabe-se que o Santo Ofício acusou os escritos do Padre Vieira pelos «laivos de judaísmo», todavia o que há é uma síntese entre o messianismo ambiente da transição dos séculos XVI para XVII e a situação política europeia da última guerra religiosa. Assim é que o clérigo jesuíta, depois de 1640, faz coincidir o «Encoberto» ou o «Desejado» com a figura de D. João IV, «herdeiro das esperanças de Ourique». A questão política é crucial para Vieira, o que se vê desde logo no sermão de S. Sebastião de 1634, onde parte da invasão holandesa da Bahia (1624), considerada como uma violação de um direito humano e divino – os hereges holandeses destruindo e profanando templos, perante os portugueses «verdadeiros soldados de Cristo». E em 1640 (maio ou junho) na Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, em Salvador, dirá o «Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra a Holanda», onde se dirige ao próprio Deus: «Prouvera a vossa Divina Majestade que nunca saíramos de Portugal, nem fiáramos nossas vidas às ondas e aos ventos, nem conhecêramos ou puséramos os pés em terras estranhas. Ganhá-las para as não lograr, desgraça foi e não ventura…». Vieira usa o efeito da palavra para compreender e fazer-se compreender, para agir e fazer agir, para transformar ideias em factos, e para tornar factos em espírito. Como afirma Valmir Francisco Murano: «O messianismo vieirense foi tecido com os fios oferecidos pelo tempo em que viveu e pelo ambiente no qual respirou, como português, católico e filho da Companhia de Jesus. Sem dúvida, as Trovas ofereceram-lhe os moldes nos quais fundiu o seu edifício messiânico» («Padre António Vieira – Retórica e Utopia», Florianópolis, 2003, p.49).
Guilherme d’Oliveira Martins