A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

A primeira «Gramática de Linguagem Portuguesa» é da autoria de Fernão de Oliveira (1507-1581) e data de 1536. Estamos perante uma tentativa original e pioneira de propor uma norma para a língua portuguesa, não seguindo o modelo das gramáticas do seu tempo. Procura definir a linguagem como uma “figura de entendimento”, aludindo ao modo de falar dos portugueses. A gramática é constituída por 50 capítulos e trata de formas gramaticais, da fonética, da lexicologia, etimologia e sintaxe. Quatro anos depois, João de Barros (1496-1570), o grande cronista, publicaria a sua «Gramática da Língua Portuguesa» (1540), juntamente com o «Diálogo em louvor da nossa linguagem». As duas obras revelam uma surpreendente complementaridade, destacando-se a minúcia e o rigor de Fernão de Oliveira relativamente ao uso da linguagem e a segurança de João de Barros no tocante à análise teórica da língua, da sua formação e desenvolvimento.

A VIDA DOS LIVROS
de 26 de Março a 1 de Abril de 2012


A primeira «Gramática de Linguagem Portuguesa» é da autoria de Fernão de Oliveira (1507-1581) e data de 1536. Estamos perante uma tentativa original e pioneira de propor uma norma para a língua portuguesa, não seguindo o modelo das gramáticas do seu tempo. Procura definir a linguagem como uma “figura de entendimento”, aludindo ao modo de falar dos portugueses. A gramática é constituída por 50 capítulos e trata de formas gramaticais, da fonética, da lexicologia, etimologia e sintaxe. Quatro anos depois, João de Barros (1496-1570), o grande cronista, publicaria a sua «Gramática da Língua Portuguesa» (1540), juntamente com o «Diálogo em louvor da nossa linguagem». As duas obras revelam uma surpreendente complementaridade, destacando-se a minúcia e o rigor de Fernão de Oliveira relativamente ao uso da linguagem e a segurança de João de Barros no tocante à análise teórica da língua, da sua formação e desenvolvimento.


 


O GÉNIO DA LÍNGUA
«O génio da língua é a essência espiritual emanada dos seus vocábulos intraduzíveis que se pode sintetizar numa expressão mais ou menos definida» – Teixeira de Pascoaes disse-o, pensando na saudade, por certo, no desejo sensual e alegre e na lembrança espiritual e dolorida, mas ao lermo-lo, temos de ir mais além. Quando fala de palavras intraduzíveis o poeta refere o que faz parte do que é próprio e genuíno de cada língua, e é por isso mesmo que a língua tem um valor próprio, da maior importância, no património imaterial da cultura. Ao depararmos com a magia das palavras na obra de um grande poeta, verificamos que os sentimentos, sendo intraduzíveis, vão ao encontro de palavras únicas para se exprimirem e se fazerem entender. Por isso Sophia dizia: «Gosto de ouvir o português do Brasil / Onde as palavras recuperam sua substância total / Concretas como frutos nítidas como pássaros / Gosto de ouvir a palavra com suas sílabas todas / Sem perder um quinto de vogal / Quando Helena Lanari dizia “Coqueiro” / O coqueiro ficava muito mais vegetal». Aqui está a magia do que se não se traduz, mas sente-se.


A TERCEIRA LÍNGUA EUROPEIA
O português é a terceira língua europeia mais falada no mundo, graças à difusão operada pelos portugueses das caravelas e à unidade linguística do Brasil. É uma língua de várias culturas, que, como língua viva, comporta muitas diferenças, mundo afora, na pronúncia, na sintaxe e no vocabulário. Apesar da dispersão significativa, tem conseguido manter uma coesão apreciável, que permite a ligação de uma identidade complexa, baseada no diálogo e na compreensão. E saliente-se que o fenómeno dos crioulos não constitui uma exceção, mas um modo de enriquecimento, uma vez que prolongam as línguas nacionais dos países de língua oficial portuguesa. Quando se fala de lusofonia, importa, antes de mais, referir que, se a língua portuguesa é de origem europeia, a verdade é que ganhou uma riqueza universal. A lusofonia há muito que deixou de ser eurocêntrica, para se tornar multipolar, enquanto partilha fecunda de várias culturas e de diversas influências. A língua portuguesa é, assim, partilhada por diferentes culturas, que se encontram e se completam na sua profunda diversidade. Leia-se, por exemplo, Mia Couto e o seu «queixa-andar» e veja-se como, apesar das muitas diferenças, há pontos fortes de união. Encontre-se Pepetela, Germano de Almeida, Craveirinha, José Eduardo Agualusa, António Candido ou Rubem Fonseca. Aí está tudo!


A COESÃO DA LÍNGUA
A coesão essencial da língua portuguesa não pode, pois, fazer esquecer a diversidade interna e externa. Olhando a faixa oeste da Península Ibérica, onde nasceu o galaico-português, encontramos três grupos de dialetos ou falares diferenciados, mas muito próximos – galego, português setentrional e português centro-meridional, segundo a formulação de Lindley Cintra. Estamos a falar da distinção com o falar das classes cultas do eixo Coimbra-Lisboa, que define a norma dominante da língua. E aqui importa referir que a Universidade (desde o século XIII) marcou decisivamente essa norma. Afinal, D. Dinis, ao criar o Reino, ligou as decisões da língua, do Estudo Geral e da fronteira. A diferenciação dos três grupos referidos faz-se pelo sistema das sibilantes. Nos dialetos galegos não há sibilantes sonoras (z) e não há a fricativa palatal sonora (o nosso j), mas a surda (x). Nos dialetos portugueses setentrionais há as sibilantes ápico-alveolares idênticas às do castelhano e ao padrão (surdas – em seis; sonoras – em rosa). Nos falares meridionais apenas aparecem as sibilantes predorso-dentais, que caracterizam a língua padrão – surdas (como em cinco ou caça) e sonoras (como em rosa e fazer). Além das características técnicas, há as especificidades regionais: os bês e os vês – Garrett dizia «nós os do Porto podemos trocar os bês pelos vês, mas nunca a liberdade pela tirania». Galegos e setentrionais usam dizer binho e abó, enquanto os meridionais pronunciam a consoante vê como lábio-dental. Já o ch é dito no padrão como fricativa (chave) e como africada palatal nos dialetos galegos e nortenhos (tchave). Quanto aos ditongos, à pronúncia meridional (ôro, ferrêro) contrapõe-se a diferenciação galega e setentrional (ouro, ferreiro), com uma particularidade no falar de Lisboa (que diz ferr?iro). Lembrem-se os ditongos reforçados na região do Porto e Entre-Douro-e-Minho (pworto); a alteração dos timbres das vogais na Beira Baixa, Alto Alentejo e Barlavento algarvio (müla, pöca) e a queda da última vogal átona (tüd, por tudo). Por outro lado, há diferenças vocabulares assinaláveis: ervilhas no norte e centro, griséus no Algarve; aloquete, a norte de Coimbra, cadeado, a sul; mais palavras de origem árabe a sul; palavras arcaicas a norte – como mugir em vez de ordenhar, espiga por maçaroca, anho por cordeiro. São fatores históricos que pesam, mas do que razões linguísticas.


LÍNGUA UNIVERSAL
Nas ilhas atlânticas, há um prolongamento dos dialetos centro-meridionais. A colonização do século XV partiu dessas regiões. Há exceções em S. Miguel e na Madeira. No primeiro caso acentuam-se as tendências na alteração dos timbres das vogais e na queda da última vogal átona, e ao contrário da língua padrão o ditongo ej torna-se e. Na Madeira, o u e o i tónicos tornam-se ditongados, e a consoante l precedida de um i palataliza-se (:v?yla, por vila). E se nos atemos apenas ao continente europeu, poderíamos distinguir no Brasil duas zonas linguísticas, a Norte e a Sul, separadas por uma fronteira que se estende da foz do rio Mucuri entre os Estados do Espírito Santo e da Bahia até à cidade de Mato Grosso.
Em África, na Ásia e na Oceânia, além do português como língua oficial (com muitas especificidades vocabulares), as variedades crioulas resultam do contacto do sistema da língua portuguesa com os sistemas indígenas. Porventura, podem derivar todos os crioulos dos papiares, as línguas francas do português do século XVI, que serviram de modo de comunicação entre as populações locais e os navegadores, mercadores e missionários, nas costas de África, Arábia, Pérsia, Índia, Malásia, Indonésia, China e Japão. Os crioulos são línguas derivadas do português. Baltazar Lopes da Silva, para o crioulo de Cabo Verde, foi por certo o mais fecundo escritor e estudioso do tema. E a diversidade é fantástica, os crioulos: de Cabo Verde: de Barlavento (Santo Antão, São Vicente, São Nicolau, Sal e Boavista), de Sotavento (Santiago, Maio, Fogo e Brava); do Golfo da Guiné (S. Tomé, Príncipe e Ano Bom, na Guiné Equatorial); os continentais (Guiné-Bissau e Casamansa); da Ásia (papiar cristan de Malaca, patuá di Macau, Sri-Lanka, Chaul, Korlai, Tellicherry, Cananor e Cochim); de Java (Tugu). Perante esta panóplia de extraordinária riqueza, a que temos de somar os vocábulos portugueses incorporados em diversas línguas nacionais (desde o bahasa indonésio ao japonês), percebemos que há potencialidades por aproveitar, numa economia para as pessoas. 


Guilherme d’Oliveira Martins

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