A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

Comemora-se este ano o quinto centenário do início da publicação das Ordenações Manuelinas (1512), constituídas por cinco livros como as Ordenações Afonsinas, que visaram ultrapassar «a confusão e repugnância de algumas ordenações por Reis nossos antecessores feitas, assi das que estavam incorporadas como das extravagantes, donde recresciam aos julgadores muitas dúvidas e debates, e às partes seguia grande perda». Houve, assim, que «reformar estas ordenações e fazer nova compilação, tirando todo o sobejo e superfluo, e adendo no minguado, suprimindo os defeitos, concordando as contrariedades, declarando o escuro e difícil de maneira que assim dos letrados como de todos se possa bem e perfeitamente entender».

A VIDA DOS LIVROS
de 19 a 25 de Março de 2012



Comemora-se este ano o quinto centenário do início da publicação das Ordenações Manuelinas (1512), constituídas por cinco livros como as Ordenações Afonsinas, que visaram ultrapassar «a confusão e repugnância de algumas ordenações por Reis nossos antecessores feitas, assi das que estavam incorporadas como das extravagantes, donde recresciam aos julgadores muitas dúvidas e debates, e às partes seguia grande perda». Houve, assim, que «reformar estas ordenações e fazer nova compilação, tirando todo o sobejo e superfluo, e adendo no minguado, suprimindo os defeitos, concordando as contrariedades, declarando o escuro e difícil de maneira que assim dos letrados como de todos se possa bem e perfeitamente entender».


 


UM IMPORTANTE INSTRUMENTO JURÍDICO
Sem entrarmos no debate atualíssimo sobre as edições iniciais das Ordenações (face à recente descoberta de um novo «sistema» anterior a 1521), a verdade é que a promulgação de importantes documentos em matéria fazendária – o Regimento dos Contadores das Comarcas (1514) e sobretudo o Regimento dos Vedores da Fazenda (1516) – obrigou à reforma definitiva das Ordenações de 1521. Lembre-se que o reinado de D. Manuel se caracteriza por uma tendência de uniformização institucional, que completa a centralização operada por D. João II. As novas Ordenações não são, deste modo, uma nova compilação, na esteira da anterior. Estamos perante um novo método, mais moderno, em que, embora partindo-se de legislação pré-existente, se faz uma nova apresentação como se tratasse de legislação nova, em nome da clareza e de uma centralização racionalizadora. Nesta linha, por exemplo, quanto à matéria de tributação, há uma profunda revisão do sistema de forais, no sentido da redução das providências que regiam a administração e a autonomia de cada município, prevalecendo uma relação atualizada das prestações devidas à coroa ou aos seus donatários. Os forais reformados (1497-1520) apresentam, assim, significativa diversidade – apesar de preservarem as garantias locais relativamente à limitação de agravar receitas afetas aos donatários, sob pena de perda de jurisdição. O importante Regimento dos Vedores da Fazenda (17 de Outubro de 1516) dotou a coroa de novos e importantes instrumentos de controlo. Estamos perante um documento paradigmático da intenção reformadora de D. Manuel. Por isso mesmo, já não se encontra no «sistema» de 1521, antes tendo prevalecido a ideia de que deveria haver umas Ordenações da Fazenda. Por um lado, o Regimento define claramente as atribuições dos oficiais que cumpriam as tarefas de recebimento e pagamento na esfera local, ou seja, os almoxarifes e os recebedores e, por outro, articula estas funções com as daqueles que as enquadravam nas circunscrições intermédias – os contadores das comarcas. Em nome da clarificação racional, a antiga Vedoria da Fazenda viu desdobradas as suas funções em três (Reino, África e Contos da Índia). Não há um vedor-mor, mas sim três vedorias, que constituem tribunais distintos. A cada vedoria correspondiam: a administração da Fazenda (recolha de rendas, inspeção das contas dos almoxarifes e contadores, administração particular dos bens do monarca e preparação do despacho régio para os assuntos de «graça»), a jurisdição voluntária (arrendamentos e aforamentos) e a jurisdição contenciosa (apreciação em apelação ou agravo, das sentenças dos almoxarifes, provedores e erros de ofício em que fossem parte os rendeiros da coroa). Em articulação com as vedorias, a «Casa dos Contos do Reino» estava encarregada da contabilidade e assentamento das contas e tombos, sendo o núcleo central de controlo das receitas e despesas e também do arquivo da administração financeira. O Contador-mor era coadjuvado por três contadores, que procediam à fiscalização contabilística das 13 contadorias espalhadas pelo reino, passando, a partir de 1514 e de 1516, a um número mais alargado de oficiais, procedendo-se a uma fiscalização mais apertada sobre a administração local, relativamente à qual havia dificuldades na respetiva prestação de contas. Com efeito, havia muitas queixas dos povos sobre esta matéria, o que obrigou o Rei a dar especial atenção ao regime dos Vedores da Fazenda, no sentido de um maior controlo central, ainda que sem os resultados, à primeira vista esperados.


AS MUDANÇAS NA CASA DOS CONTOS
Em 1560 verificar-se-ia a fusão da Casa dos Contos do Reino com a Casa dos Contos de Lisboa, encarregada esta até então da fiscalização das contas dos oficiais de recebimento que operavam na capital e na sua comarca. Deste modo, a centralização correspondeu à necessidade de contrariar a fragmentação da tesouraria e dos recursos disponíveis. O regime das vedorias funcionaria até à reforma da Fazenda portuguesa de 1591, já na vigência da união pessoal, com a criação do Conselho da Fazenda, que concentra a coordenação e superintendência dos assuntos da fazenda, e leva à extinção dos três tribunais acoplados às vedorias, passando a haver só um, e quatro repartições administrativas, que respeitavam às alfândegas, aos arsenais, à Casa da Índia e à Casa dos Contos, superintendendo nos almoxarifados e comarcas. Em 1604, seria criada a Junta dos Contos com a missão de proceder às execuções fiscais das dívidas à Fazenda real. Apesar de haver uma intenção claramente unificadora, o regime de pluralidade orçamental, característico da administração financeira, desde meados do século XIV, não foi, no essencial posto em causa – as receitas fiscais da monarquia eram arrecadadas e despendidas nas diferentes repartições territoriais (almoxarifados) sob a coordenação dos vedores da fazenda, sem uma unificação da gestão das receitas. No entanto, os recebimentos vinculados à Fazenda real e arrecadados na Ásia em nada revertiam para os cofres centrais do Reino, e os capitais que saíam dos cofres do reino eram para aquisição de cargas do retorno da Carreira da Índia – havendo, pois, dissociação entre os fluxos financeiros do Estado da Índia e da exploração da rota do Cabo. Considerando os direitos alfandegários cobrados em Goa, Malaca, Ormuz e Diu estamos perante cerca de 60 por cento do total dos encaixes da Fazenda real no final do século XVI. O contributo financeiro do Império assenta, pois, na circulação de bens dos vários espaços para o reino que canalizam réditos para as alfândegas e em direitos de propriedade (cerca de 25% do total em fins do século XVI), explorados diretamente pela coroa ou através de contratos de arrendamento (ouro da Mina, pimenta, escravos, pau-brasil).


UM ESTADO FISCAL QUE TARDA…
Pelo que fica dito, o Império prolongou no tempo a existência de um «Estado patrimonial». De facto, as rendas ultramarinas adiaram a transformação num «Estado fiscal». Por exemplo, a incorporação na Coroa da administração perpétua dos mestrados das Ordens militares de Cristo, de Avis e de Santiago da Espada (1551) reforçou essa mesma tendência, mercê das comendas das ordens, dos direitos foraleiros e dos dízimos eclesiásticos. De qualquer modo, sente-se a tendência para a criação de um Estado fiscal, centralizado, com racionalização da tesouraria (mas não unidade). O modelo descentralizado é comum aos dispositivos de governo das finanças públicas nas monarquias europeias e foi transposto para diferentes espaços do império, sempre que a Coroa se assumiu como entidade fiscal – nos arquipélagos atlânticos, na América do Sul e no Estado da Índia. Ao longo do século XVI encontramos, porém, uma tensão entre a necessidade de haver um controlo centralizado dos recursos em circulação por parte do Estado, até pelos riscos corridos por este, e a multiplicação de polos de ação, envolvendo a capacidade dos mercadores de gerarem riqueza. No entanto, a multiplicação de polos de ação influentes e o efeito dos «fumos da Índia», mais do que uma imediata insustentabilidade, vai gerar a incapacidade prática de gerir com eficiência e justiça, e de chegar a toda a parte num império de tão grande dimensão. 


Guilherme d’Oliveira Martins

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