A VIDA DOS LIVROS
De 20 a 26 de Fevereiro de 2012
«Pierres Blanches – Problèmes du Personnalisme», de Paul-Louis Landsberg, com introdução de Olivier Mongin, atual diretor da revista «Esprit» (Félin, 2007), é a reedição da obra póstuma do pensador alemão, publicada em 1952, pelas edições Du Seuil, com prefácio de Jean Lacroix. Então só o subtítulo atual figurava na identificação da obra, que reunia um conjunto de ensaios publicados sobretudo na revista de Emmanuel Mounier.
UM FECUNDO ENCONTRO EM PARIS. – Não podemos nem compreender a evolução do pensamento de Emmanuel Mounier (1905-1950) sem estudarmos o pensamento de Paul-Louis Landsberg (1901-1944) nem perceber o papel de Landsberg na filosofia europeia sem estudarmos e seguirmos a história da revista «Esprit», sobretudo depois de 1934. De facto, Mounier e Landsberg constituem a partir desse momento um «tandem» fundamental no pensamento de inspiração cristã, com repercussões muito para além dessas fronteiras. Quando Mounier lançou o ambicioso projeto da revista «Esprit» em outubro de 1932, há 80 anos, o panorama da história europeia era de grande incerteza. Viviam-se os efeitos da «Grande Depressão», a sombra negra da guerra e dos tratados de Versalhes fazia-se sentir, o desprestígio da política era evidente. Tudo se associava no sentido de uma estranha ameaça em que os nacionalismos agressivos se ligavam aos ressentimentos alimentados por uma perigosa associação do «salve-se quem puder», dos protecionismos e de uma violência social descontrolada, com tensões que se acumulavam. Três episódios vão marcar decisivamente a evolução do pensamento de Mounier e do grupo de intelectuais que o rodeavam – a invasão da Etiópia pela Itália fascista (1934), a Frente Popular francesa (1936) e o início da guerra de Espanha. Em 1932, a revista «Esprit» vai nascer ligada ao movimento «Troisième Force» (de Izard e Deléage), sob as fortes dúvidas de Jacques Maritain, que desejaria uma revista católica e de católicos. Mounier aceita num primeiro momento associar-se ao movimento político, mas opta por um projeto pioneiro baseado na cooperação entre cristãos e não cristãos. No entanto, quanto à «Terceira Força», depressa a revista se autonomizará dela, afirmando-se como um projeto cultural com intervenção política, não confundível com um partido.
O ACONTECIMENTO NOSSO MESTRE INTERIOR. – Como afirma Guy Coq «a linha seguida por Mounier nestes anos cruciais de antes da guerra organiza-se em torno da viva consciência da escalada de um perigo mortal na Europa». Diz então Mounier: «Sinto um sofrimento cada vez mais vivo por ver o nosso cristianismo solidarizar-se com o que designarei um pouco mais tarde de “desordem estabelecida” e de vontade de fazer rotura». Numa carta que escreve a Jean-Marie Domenach afirma: «o acontecimento será o nosso mestre interior». De facto, Mounier considera-se essencialmente testemunha do seu tempo. E este testemunho põe a tónica na relação entre o pensamento e a história, o que é mais importante do que uma apreciação puramente conjuntural das tomadas de posição em face das circunstâncias. Estamos perante o valor da imperfeição como um sinal da ação humana, o que é muito mais importante do que a consideração de modelos ou receitas fechados. Se lermos os textos de Mounier (sobretudo depois de conhecer Landsberg) percebemos bem que correr riscos (o sujar as mãos) é fundamental para procurar a justiça animada pela verdade. Péguy ou Maritain falam dos polos profético e político – E. Mounier e P.L. Landsberg procuram fazer do compromisso (engagement) a ligação entre o respeito da «eminente dignidade humana» e a realização das ações necessárias à justiça, à verdade e à dignidade, a partir dos «sinais dos tempos», de que falará João XXIII.
OS VALORES FEITOS PESSOAS. – Mounier concebe a pessoa humana como superação de si-mesma – «ela é o movimento do ser para o ser». O tema dos valores espirituais torna-se, por isso, crucial perante o drama histórico que prenuncia o recrudescer da guerra. Landsberg e Mounier demarcam-se da ideia de Max Scheler, segundo a qual os valores são realidades absolutas. Não é possível subordinar a pessoa a um abstrato impessoal. E assim trabalham o vínculo entre a pessoa e o valor, a partir do cristianismo: «o personalismo cristão vai até ao fim; todos os valores se reagrupam para o cristianismo, sob o apelo singular de uma Pessoa suprema». Deste modo, consideram os valores espirituais compreendidos ora como resposta cristã, ora como sinal filosófico, orientado pelo crivo da razão. Os valores não são, assim, ideias gerais ou desenraizadas – «são fonte inesgotável e viva de determinações, exuberância, apelo irradiante: como tal revelam uma como que singularidade expansiva e uma proximidade com o ser pessoal, mais primitiva do que o seu deslizar para a generalidade». Assim, há uma viragem metafísica em Mounier com a chegada de Landsberg. Conhecedor da experiência e dos perigos alemães, bem como das ameaças e riscos que se manifestam em Espanha, onde esteve exilado nem Barcelona, o pensador introduz um conjunto de preocupações novas, que vão revelar-se fundamentais. Leia-se o capítulo «Réflexions sur l’engagement personnel», e logo se perceberá. Há uma especificidade da política, distinta da dimensão espiritual. E as noções de acontecimento e de compromisso vão assentar num diálogo intenso entre a pessoa e os valores. E os dois pensadores recusam separar o corpo e o espírito – do mesmo modo que não aceitam encarar a realidade histórica que os cerca sem uma filosofia do compromisso, que significa um pensamento de ação. Note-se que, por isso, a revista «O Tempo e o Modo» de António Alçada Baptista e de João Bénard da Costa (1963) afirma-se como de pensamento e ação. «O compromisso pode revestir diversas formas: é humano, ético, político, espiritual, segundo a dimensão da ação que domina. Mas nenhuma das formas pode ser pensada de modo totalmente independente por referência às outras». E a verdade é que a coerência de Landsberg leva a que, depois da tomada de consciência sobre a situação dramática em que então se vivia, numa caminhada inexorável, o filósofo sofra até às últimas consequências o seu compromisso, indo até ao sacrifício supremo da morte, no Campo de concentração de Oranienburg.
UMA MEMÓRIA VIVA. – Jean Lacroix recorda o muito que Landsberg poderia ter dado à Europa do pós-guerra se tivesse sobrevivido. Mounier esperá-lo-á em vão. «A minha pessoa e em mim a presença e a unidade de uma vocação intemporal (…) chama a superar-me indefinidamente e opera, através da matéria que a refrata, uma unificação sempre imperfeita, sempre recomeçada, de elementos que em mim se agitam». Se o compromisso e o acontecimento se tornaram centrais nesta reflexão, devemos ainda acrescentar a capacidade de fazer frente aos acontecimentos, a ideia de afrontamento: «a pessoa expõe-se, exprime-se, faz face a, é rosto». E, de facto, a palavra grega mais próxima da noção de pessoa é «prosopon»: aquele que olha de frente, a máscara que identifica o ator no teatro grego. Ora, a partir da ideia de «afrontamento», chegamos áquilo que Unamuno designava por «agonia», a luta pessoal emancipadora, a partir da consideração dos valores espirituais. «A pessoa toma consciência de si própria, não no êxtase, mas na luta de força». Afinal, «o amor é luta; a vida é luta contra a morte; a vida espiritual é luta contra a inércia material e o sono vital». Quantas vezes António Alçada Baptista nesses termos no otimismo trágico? No fundo, alguém só atinge a plena maturidade, no momento em que «opta por fidelidades que valem mais do que a vida».
Guilherme d’Oliveira Martins