A VIDA DOS LIVROS
de 23 a 29 de Janeiro de 2012
«História do Pensamento Filosófico Português», dirigida por Pedro Calafate (Caminho, 1999) é uma obra coletiva na qual os autores procedem em cinco volumes (dois dos quais desdobrados) à análise dos diferentes períodos e autores da Filosofia em Portugal. Hoje procederemos a uma apreciação sucinta do primeiro volume correspondente à Idade Média.
UMA ENCRUZILHADA DE DIFERENÇAS
Falar da cultura portuguesa é cuidar de um campo de múltiplas influências, de uma encruzilhada de contributos diversos. Por exemplo, na Idade Média, se nos referirmos a dois dos autores mais influentes e de maior prestígio além-fronteiras, temos de salientar que Santo António de Lisboa e Pedro Hispano exerceram o seu magistério intelectual fora de Portugal, ainda que tenham aqui feito a sua formação, sempre assumindo uma especial ligação ao rincão ocidental peninsular. O primeiro foi discípulo dos cónegos regrantes de Santo Agostinho de Santa Cruz de Coimbra e o segundo da escola capitular de Lisboa. Estes são exemplos do caráter aberto da nossa cultura, desde as suas origens, e o período medieval é especialmente ilustrativo desse facto. Se é verdade que ambos se projetaram naturalmente com dimensão universal, o certo é que as suas origens não foram despiciendas na vida e na influência que tiveram. A história medieval anterior à nacionalidade começa, aliás, por revelar um ambiente bastante rico no pensamento filosófico e teológico, avultando as figuras de Potâmio de Lisboa, intervindo na controvérsia ariana, o bracarense Paulo Orósio, no pelagianismo, Prisciliano e, sobretudo S. Martinho de Dume, além da indispensável alusão às referências fundamentais no Gharb Al-Ândalus. Orósio teve um papel muito importante no seu tempo, ao elaborar, a pedido de Santo Agostinho, uma muito difundidas análise histórica na perspetiva cristã, na linha da «História contra os Pagãos», onde se rebatia a responsabilidade dos cristãos na queda de Roma. Sobre Prisciliano, há que lembrar que atribuía natureza divina à alma humana, defendia uma plena igualdade dos fiéis e ligava um certo panteísmo ao fatalismo astrológico, tendo uma grande difusão popular. S. Martinho de Dume, bispo de Braga, teve uma influência decisiva, sobretudo a partir do Concílio de Toledo III (589). Escreveu o «Livro das Quatro Virtudes (ou Fórmula da Vida Honesta)» de influência estoica, sobretudo de Séneca. A obra dedicada ao rei dos suevos faz parte da corrente «espelho dos príncipes», singularizando-se por se tratar de um influente livro de edificação para leigos, centrado na prudência, na magnanimidade, na temperança e na justiça. Refira-se ainda «Da Instrução dos Rústicos», obra também pedagógica para as populações rurais e de menor formação, com elevado interesse etnológico para Entre-Douro-e-Minho. Saliente-se que a riqueza da obra espiritual de S. Martinho é posta em relevo por destacados historiadores europeus. A compreensão das raízes portuguesas exige ainda a ponderação da influência da civilização islâmica, quer diretamente quer através de Moçárabes e Judeus. Como afirmou Jaime Cortesão, a vocação mercantil e marítima dos Árabes projetou-se nos caminhos que viriam a ser trilhados pelos nossos antepassados. Autores como Ibn Al-Sid, de Silves, onde se nota o diálogo entre o número e a poesia, Ibn Kasi, da mesma cidade, místico sufi, ou Ibn Mucama, de Alcabidexe, poeta da natureza, tiveram influência decisiva no panorama cultural peninsular.
O CICLO FRANCISCANO
Foi rápida a expansão do franciscanismo em Portugal nos séculos XIII e XIV, sendo de destacar a figura de Santo António de Lisboa. Além de ser o autor carismático dos «Sermões», conjunto muito rico de reflexões teológicas, filosóficas e morais, o português projeta a sua sólida formação obtida em Coimbra num sentido do otimismo antropológico, da abertura ao outro, da pobreza e da crítica contundente ao mundanismo e à corrupção. S. Francisco de Assis compreendeu muito bem a importância do contributo de Frei António, uma vez que colmatava algumas fragilidades da nova Ordem no plano teológico. O exemplo é notável, uma vez que serve para demonstrar a riqueza do panorama português, graças ao rico diálogo intelectual mediterrânico. Fernando Martins, o futuro Santo António, era natural de Lisboa, começou por ser cónego regrante de Santo Agostinho, primeiro em S. Vicente de Fora e depois em Santa Cruz de Coimbra. Os crúzios vinham perdendo o prestígio que tinham tido, designadamente no tempo de S. Teotónio. Eram sólidos intelectualmente, mas não satisfaziam espiritualmente o jovem. Então conheceu os franciscanos do eremitério dos Olivais (Coimbra). O exemplo dos mártires de Marrocos levou Fernando a mudar de rumo e a trocar a veste branca pelo burel. Depressa o encontraremos no Capítulo de 1221 de Assis (ou das Esteiras) e depois como pregador e professor de Teologia. Os «Sermões» são, pode dizer-se, a «primeira teorização erudita e profundamente espiritualizada da vivência de S. Francisco de Assis». Como salienta Maria Cândida Pacheco: «Poderá (…) afirmar-se, em relação ao pensamento cosmológico antoniano, um sentido de naturalismo e de otimismo claro que afasta pessimismos platónicos e maniqueizantes. Afinal, todos os seres, na sua diversidade e na sua especificidade, têm o seu estatuto e o seu lugar próprios e constituem-se como «perfeições» na sua ordem, projetando, embora, uma hierarquia de complexificações». Presenciamos, assim, o anúncio de um tempo e de uma atitude novos que permitirão a abertura ao conhecimento de outros mundos e de outras realidades.
DE PEDRO HISPANO A D. DUARTE
Segundo L.M. de Rijk, Pedro Hispano Portucalensis, Pedro Julião ou o Papa João XXI foram uma e a mesma pessoa, com uma obra vasta e notabilíssima. Há quem tenha dúvidas. No entanto, é verosímil esta ligação. De facto, este português que chegou fugazmente ao papado foi uma pessoa com qualidades excecionais, mesmo que não tenha escrito tudo o que se lhe atribui. Para João Ferreira: foi «provavelmente o primeiro Escolástico latino que (…) deu uma certa extensão e aplicação à doutrina das duas faces» (uma força interior de intencionalidade que impele a alma para além de si mesma, em ânsias de atingir o mundo exterior). Quanto à obra lógica de Pedro Hispano, analisada por José Francisco Meirinhos, a verdade é que a mesma «constituiu o mais importante manual de ensino da Lógica ao longo de mais de trezentos anos em toda a Europa». Não é, aliás, possível estudar os silogismos, sem lembrar o pensador. Não esqueçamos que Dante o imortalizou no segundo círculo do Paraíso: «e Pedro Hispano, o qual lá em baixo brilha nos seus doze libelos» (Comédia, III, XII, 134-135). Se Pedro Hispano é uma referência que transcende o caso português, já o rei D. Duarte representa o que José Gama considera ser a representação da «importância da sensibilidade das paixões e das virtudes», como «uma das notas originais da antropologia subjacente à sua reflexão crítica com dimensão filosófica». «O sentido do coração e a justa medida das coisas adquirem um relevo muito particular nesse quadro interpretativo do homem português ou do seu perfil idealizado pelo rei-filósofo». O «Leal Conselheiro» é, assim, uma obra que define, num registo ético-político, a um tempo, uma atitude diferente assente no sentido crítico e na auto-reflexão, mas também reclama o sangue novo de uma geração que deseja mobilizar a grei num sentido transformador. O infante D. Pedro, em «Virtuosa Benfeitoria» e na «Carta de Bruges», assume, por isso, plenamente o segundo dos termos, em nome da sociedade nova e do tempo diferente que se apresentava no horizonte. Importaria agir de acordo com as melhores experiências de fora. E a descrição tensa dos acontecimentos, na literatura viva de Fernão Lopes, torna-se representação de um impulso que pretende realizar em ato a justiça que apenas estava delineada em potência. A ética e a política encontram-se. São temas fortes, sobretudo compreensíveis numa sociedade que se reorganizava em termos integralmente novos.
Guilherme d’Oliveira Martins