A VIDA DOS LIVROS
de 9 a 15 de Janeiro de 2012
«Deus e o Sentido da Existência» de Anselmo Borges (Gradiva, 2011) é constituído por um conjunto de textos, escritos pelo autor em várias circunstâncias, arrumados de um modo coerente e pedagógico, segundo os seguintes capítulos: crentes e ateus – o elogio da pergunta; animalidade e humanidade; sociedade, ética e religião; Deus da religião e o Deus da filosofia; Deus e o sentido último; e o jogo da esperança do mundo. O autor é padre da Sociedade Missionária da Boa Nova, docente de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e um erudito com formação sólida em Ciências Sociais, Filosofia e Teologia. O tratamento dos temas a que há muito nos habituou é extremamente atraente, uma vez que procede a uma rica ligação entre a linguagem, a etimologia e a busca de um diálogo efetivo entre saberes, autores e diferentes horizontes culturais e espirituais.
Concílio Vaticano II
O QUE ESTÁ PARA ALÉM DAS NUVENS
O livro é antecedido por um prefácio, da autoria de Lídia Jorge, que é uma apresentação do tema e do autor, a partir da necessidade de compreender que o diálogo entre a razão e a fé é fundamental na sociedade contemporânea como modo de superar as tentações do fanatismo, da irracionalidade, da fragmentação social e do triunfalismo absolutista. O vazio religioso e a indiferença têm tido, com efeito, os resultados contrários àquilo que alguns julgaram ser a tendência para a religião favorecer excessos e contrariar a crítica e a ciência. E a escritora vê em Anselmo Borges «uma mensagem integradora, fraterna, inclusiva, através da qual o texto convida os leitores a viverem acima da vida, acima daquela vida sem outro sentido que não seja seguir o instinto de se auto-satisfazer e possuir». Há, assim, a preocupação do autor, que a prefaciadora salienta, de procurar e de encontrar diversos círculos integradores, a propósito do fenómeno religioso: o dos questionadores; o dos que procuram explicação para o que está escondido atrás do mundo; o dos que pensam que por detrás da cortina da natureza há um mistério; o dos crentes num Deus, que não esquecem ateus e agnósticos; o dos que creem num Deus criador, bom e misericordioso, cuja argumentação não se dirige apenas aos crentes, mas a todos os que apelam ao poder da bondade, da Ética, da Moral e da Poética; e ainda o dos místicos e o dos que vivem na Terra como se fosse num Além»… Temos de compreender as diversas atitudes possíveis, olhando as diferenças não como fatores de exclusão, mas como elementos de enriquecimento mútuo. A religião significa, de facto, etimologicamente, algo que não apenas é suscetível de ligação (religare), mas também de reponderação (relegere). E Lídia Jorge usa uma forma muito bela e significativa: «no estrito plano da vida íntima, este livro ajuda a compreender que nos questionemos, pela manhã, por que motivo nos surpreende a chuva, e quando mal damos por nós estamos a perguntar em voz alta se além das nuvens existirá alguém que nos ama».
NÃO ESQUECER O ESPÍRITO
Nesta linha de pensamento, Leszek Kolakowski afirmou, pouco tempo antes de morrer: «não conto com a morte da religião nem de Deus. O país mais desenvolvido do mundo, os Estados Unidos, não é de modo nenhum o mais secularizado. A secularização, longe de conduzir inexoravelmente à morte da religião, levou à busca de novas formas de vida religiosa. Nunca se chegou à vitória iminente do reino da razão. Nem só de razão vive o Homem». Daí a importância da tomada de consciência dos limites. Não podemos crescer incessantemente, numa espiral infinita de avidez. «A sobrevivência da nossa herança religiosa é condição para a sobrevivência da civilização». Por isso, precisamos de instrumentos de solidariedade e de coesão, para além dos instintos, dos interesses imediatos e da violência. E tudo isto é especialmente evidente e importante nos dias que correm, quando vivemos um tempo axial, segundo a expressão de Jaspers, em que presenciamos as revoluções económica (da aldeia global, de McLuhan), cibernética, genética e ecológica. No entanto, a lógica de que tudo tem um preço conduziu-nos por um perigoso caminho, no qual a crise financeira, de que tanto se fala e cujos efeitos sentimos duramente, é uma crise de valores e uma crise moral. A dignidade humana é inegociável, os direitos e os deveres fundamentais são incindíveis, o imediatismo e a indiferença conduzem ao desastre. «Uma política sem consciência tende para o crime» – como afirmou Helmut Schmidt, acrescentando, na linha de uma ética da responsabilidade: «o esquecimento de que o Homem não é para a economia, mas a economia para o Homem fez com que a especulação financeira desembocasse no ‘capitalismo de rapina’». Do mesmo modo, o antigo chanceler alemão (como, aliás, também Vaclav Havel), preocupado com a necessidade de encarar «a Religião na Responsabilidade», defendeu a necessidade de um verdadeiro diálogo, a partir de uma atitude de sincera abertura e de partilha de projetos e orientações. O que hoje esperamos da Igreja (diz Schmidt) é «cuidado e consolação, compaixão com os fracos e pobres, solidariedade com o nosso vizinho doente». E se temos de falar de presença e de capacidade de resposta, chegamos à ideia fundamental de reconhecimento. «Ao contrário de uma árvore ou de uma estrela, não nos basta existir; precisamos de existir para alguém que nos devolva a nós mesmos, a nossa dignidade e valor». E eis-nos perante: (a) uma esfera da intimidade, em que funciona o princípio de amor; (b) uma esfera de coletividade, em que funciona a solidariedade, tendo como objetivo encontrar uma solução baseada no bem comum; e (c) uma esfera das relações jurídicas, visando salvaguardar o princípio da igualdade e pôr em causa a discriminação e o privilégio. Ora, sem o reconhecimento a partir da nossa relação com os outros e da compreensão das diferenças, não podemos construir uma sociedade assente na liberdade, na responsabilidade, na igualdade, no respeito mútuo e na proximidade… E o certo é que o cristianismo abriu tantas destas portas, a partir da controversa capacidade de encontrar o nosso próximo onde menos se espera…
A CONSTRUÇÃO DA PAZ
Hans Küng, que merece ser ouvido pelo genuíno empenhamento que tem tido na construção de uma cultura de paz, baseada no respeito e na interação das pessoas e das comunidades e instituições, afirmou com muita clareza: «Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões sem critérios éticos globais. Não haverá sobrevivência do nosso planeta sem um ethos global, um ethos mundial». Eis por que razão não devemos viver voltados para o passado, sujeitos a imagens estereotipadas (por exemplo, quanto à mulher ou quanto à responsabilidade cidadã), vencidos pela arrogância institucional ou centrados no eurocentrismo… O que diria e faria hoje Jesus Cristo se nos viesse visitar? Sentimos sempre o peso do exemplo dado por Dostoievski nos «Irmãos Karamasov». Heiner Geissler, antigo ministro federal alemão, escreveu em «O Que Diria Jesus Hoje?»: «Quem transforma o valor da bolsa e a cotação das ações de uma empresa em algo absoluto e quem atribui importância, em termos económicos, apenas aos interesses do capital, faz parte das pessoas que, como diz Jesus, possuem muito dinheiro e para as quais será difícil entrar no reino de Deus». Num tempo em que muitos dos alertas feitos passam despercebidos, apesar da sua força e pertinência, temos de entender que só a consciência dos limites nos permitirá exercer a liberdade e a crítica, a responsabilidade e a justiça se entendermos o paradoxo de Walter Benjamin: a História não pode ser pensada sem Deus – «É que mesmo que fosse possível no futuro alcançar uma sociedade humanamente plenamente realizada, ela não poderia ser feliz, porque ou pensava nas vítimas do passado e não seria feliz, ou não pensava nelas e não seria verdadeiramente humana»… E aqui chegados temos de compreender a metafísica da Esperança de Charles Péguy ou de Ernst Bloch – como capacidade de ser e agir!
Guilherme d’Oliveira Martins