A VIDA DOS LIVROS
de 19 a 25 de Dezembro de 2011
Stéphane Hessel e Edgar Morin acabam de publicar «Le Chemin de l’Espérance» (Fayard, 2011), onde nos apresentam um alerta para os dias de hoje. A política, a economia, a sociedade e a cultura precisam de uma tomada de consciência cidadã no sentido da liberdade, da justiça, da igualdade, da solidariedade e da responsabilidade. Fala-se muito de indignação, e essa foi a palavra usada por Hessel, no entanto os dois autores, nonagenários mas de uma lucidez exemplar, propõem-nos uma nova esperança, assente na vontade emancipadora e da recusa da indiferença. O mesmo tem feito Eduardo Lourenço, agora justamente galardoado com o Prémio Pessoa!
Audrey Cerdan, Rue 89.
FALAR COM EDGAR MORIN
Foi há dias, em Paris, nas novas instalações da Fundação Calouste Gulbenkian, em La Tour Maubourg. Conversámos sobre o futuro da Europa. O convidado era Edgar Morin, e partilhei o diálogo com José Mariano Gago. Edgar Morin é um velho amigo de Portugal e recorda o momento, no início dos anos sessenta, em que, com Jean-Marie Domenach e nas proximidades do Congresso para a Liberdade da Cultura, de Pierre Emmanuel, começou a ter um contacto fraterno, que nunca mais seria interrompido, com António Alçada Baptista e o grupo de «O Tempo e o Modo». Depois das desconfianças dos anos quarenta e cinquenta relativamente a uma Europa de tecnocratas com conotações americanas, vieram novas circunstâncias. A Europa tornou-se oportunidade de aprofundar a democracia. A evolução a leste originou muitas perplexidades e dúvidas, a sul do velho continente havia uma opinião pública que se abria e se preparava para a democracia, depois, o choque petrolífero produziu uma nova consciência ecológica e obrigou a mudar de ideias e estratégias. Com Roselyne Chenu, braço direito de Pierre Emmanuel, presente no auditório de Paris, o pensador recordou esses encontros distantes, envolvendo oposicionistas ibéricos, tão diferentes como José Bergamín, Gil Robles, Dionísio Ridruejo ou Ruíz-Gimenez. Os jovens João Bénard da Costa e Helena Vaz da Silva tornaram-se facilmente referências de inovação e inconformismo e são lembrados com saudade. José Vidal-Beneyto vem à baila, como entusiasta de um projeto europeu, capaz de incorporar a história antiga do Mediterrâneo e a evolução moderna, desde às guerras civis às novas exigências da ciência, da educação e da cultura. É a memória de grandes amigos comuns que há pouco nos deixaram, mas cuja lição está bem presente. E como será possível falar hoje de Europa sem lembrar esses contactos, de diálogo e de afeto, de uma geração para quem estavam ainda bem vivos os efeitos dramáticos da Guerra e a exigência da construção da paz e da democracia, através da liberdade de homens e mulheres de cultura?
CRISE SEM ILUSÕES
Hoje, a crise europeia é profunda e não admite ilusões. Morin não pode deixar de exprimir o seu pessimismo. Mas considera que não há saída pacífica e justa sem o aprofundamento dos elos europeus. A crise financeira que vivemos deve-se ao facto de a civilização do poder se ter sobreposto a uma civilização do diálogo. A ilusão, o imediatismo, o consumo exacerbado, o produtivismo, a indiferença ética, tudo isso contribuiu para chegarmos onde estamos. Em lugar de uma cultura de criação, impôs-se a especulação, a lógica de casino e a busca de ganhos sem sustentabilidade – enquanto outros poupavam nós gastávamos. A noção de um progresso sem interrupção nem limites gerou o fanatismo do mercado e a incompreensão sobre o facto de a humanidade ter de lidar com a consciência dos limites. Afinal, como o escritor diz na sua obra «La Voie. Pour l’Avenir de l’Humanité» (Fayard, 2011), celebrizada por Stéphane Hessel, há que compreender que existem elementos contraditórios que têm de ser articulados e tidos em consideração hoje: a mundialização e a desmundialização; o crescimento e o decrescimento; o desenvolvimento e o envolvimento; a conservação e a transformação. Edgar Morin fala-nos, por isso, de metamorfose como um processo complexo abrangendo a política, a sociedade, a economia e a cultura, em que vários fatores se influenciam, obrigando à compreensão da diversidade. Morin propõe, assim, a ideia de metamorfose, improvável mas possível, como alternativa à desintegração provável. A natureza está cheia de exemplos de metamorfoses – por exemplo, a lagarta encerra-se na crisálida, num processo de autoreconstrução. A noção de metamorfose é, deste modo, mais rica que a de revolução, uma vez que preserva a radicalidade transformadora, ligando-a à conservação da vida e à herança das culturas. Sendo impossível travar a tendência que conduz aos desastres, devemos pensar que as grandes transformações começam com uma inovação, uma nova mensagem marginal, modesta, tantas vezes invisível… Se a mundialização está na ordem do dia, não podemos esquecer que o local e o tribal existem como elementos, a um tempo, de coesão e de fragmentação, de proximidade e de distância. O crescimento económico torna-se insuficiente e perigoso, uma vez que desvaloriza a proteção dos recursos disponíveis e a sua renovação. O desenvolvimento humano tem de ser integrado e capaz de ligar a coesão, a confiança, o capital social e a solidariedade. Conservação e transformação vivem ligadas uma à outra, o que obriga à criatividade e ao «conhecimento do conhecimento», como impulsionadores da compreensão.
O PROVÁVEL E O IMPROVÁVEL
O escritor considera que a catástrofe pode estar no horizonte, mas acredita em que é possível inverter o curso dos acontecimentos. E recorda dois exemplos marcantes de tempos muito diferentes. A resistência vitoriosa por duas vezes da pequena cidade de Atenas perante o poder formidável dos persas, cinco séculos antes da nossa era, foi altamente improvável, mas permitiu o nascimento da democracia e da filosofia. Do mesmo modo, foram tão inesperados como improváveis o atraso e o congelamento da ofensiva alemã em Moscovo no Outono de 1941 e depois a contraofensiva vitoriosa de Jukov em 5 de Dezembro, seguida no dia 8 pelo ataque a Pearl Harbour que fez entrar os Estados Unidos na Guerra. A História reserva-nos inúmeros exemplos que nos permitem alimentar esperanças, desde que haja capacidade de autocrítica e mobilização de vontades, em torno de objetivos inteligentes e justos. Terêncio é chamado – temos de entender que nada do que é humano nos pode ser estranho. E quando alguém pergunta o que é a identidade europeia, Edgar Morin recorda a sua ideia de uma «comunidade de destino», capaz de congregar a consciência das diferenças e a importância do outro. Prefiro usar a expressão comunidade plural (e democrática) de destinos e valores. E se falo de «comunidade», dou-lhe o sentido de pessoa em comum (gesamtperson, de que falava Landsberg). A cultura é o que diferencia e a civilização é o que difunde a criatividade humana. A identidade corresponde, assim, à exigência de um caminho comum e partilhado. Impõe-se perceber que, na expressão de Denis de Rougemont ou de Daniel Bell, o Estado atual é grande e pequeno demais para responder aos problemas contemporâneos. Quando surge, por fim, a pergunta sobre o que caracteriza uma ética europeia, na linha de Montaigne, E. Morin responde que o universalismo e a capacidade autocrítica são as características europeias fundamentais. Precisamos, no fundo, de uma Europa criativa e imperfeita, aberta ao mundo, universalista e cultora da crítica, capaz de incorporar um caminho que possa favorecer a ideia fecunda de metamorfose!
Guilherme d’Oliveira Martins