A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

“Diário Português (1941-1945)” de Mircea Eliade (Guerra e Paz, 2008) é um retrato em tempo de guerra, feito a partir de Lisboa, pelo olhar de um dos grandes especialistas da história das religiões do século XX. Mas, mais do que isso, é um ensaio que prenuncia a maturidade de pensamento do seu autor. E se há um olhar marcado pela época e pela evolução política e intelectual da Roménia antes e durante a guerra, o certo é que ele nos permite entender melhor a angústia de Mircea Eliade (1907-1986) perante as perplexidades contrastantes e contraditórias a propósito do que se passa no seu país, na Europa e na sociedade portuguesa no início dos anos quarenta, e o drama pessoal que vive. Sente-se, porém, uma obsessão ligada à consciência da destruição de uma sociedade que Eliade desejaria preservar, mas que vê destruir-se inexoravelmente, o que agrava o seu drama íntimo.

A VIDA DOS LIVROS
De 17 a 23 de Março de 2008.



“Diário Português (1941-1945)” de Mircea Eliade (Guerra e Paz, 2008) é um retrato em tempo de guerra, feito a partir de Lisboa, pelo olhar de um dos grandes especialistas da história das religiões do século XX. Mas, mais do que isso, é um ensaio que prenuncia a maturidade de pensamento do seu autor. E se há um olhar marcado pela época e pela evolução política e intelectual da Roménia antes e durante a guerra, o certo é que ele nos permite entender melhor a angústia de Mircea Eliade (1907-1986) perante as perplexidades contrastantes e contraditórias a propósito do que se passa no seu país, na Europa e na sociedade portuguesa no início dos anos quarenta, e o drama pessoal que vive. Sente-se, porém, uma obsessão ligada à consciência da destruição de uma sociedade que Eliade desejaria preservar, mas que vê destruir-se inexoravelmente, o que agrava o seu drama íntimo.


 


 
UM DIÁRIO INCÓMODO
O “Diário” esteve inédito até 2001, data em que foi editada a tradução castelhana em Barcelona. Tal ficou a dever-se ao facto de nestes textos estar bem presente a simpatia do autor pelo corporativismo, que lhe vinha da militância romena na Guarda de Ferro. Até ao início da presente década prevaleceu o cuidado de deixar na penumbra essa faceta de Eliade, que poderia ofuscar o sucesso do ensaísta e cientista social no pós-guerra. É, no entanto, muito importante a leitura deste “Diário Português” uma vez que, longe de uma visão idílica sobre as atitudes de resistência, permite analisar as dúvidas e as angústias de um intelectual em tempo de guerra. E o caso Mircea Eliade é paradigmático, exercendo ele as funções de adido de imprensa e de adido cultural na Embaixada da Roménia em Lisboa. Nessa qualidade foi um observador privilegiado, revelando, designadamente, perspectivas não oficiais sobre os acontecimentos históricos do Estado Novo e dando uma visão pessoal sobre uma encruzilhada dialéctica de diversas perspectivas e leituras ideológicas… Apesar da resistência em escrever, Eliade consegue exprimir no diário, num registo muito pessoal, a partir das evidentes influências de Kierkegaard e Chestov, o que sente quem, ao mesmo tempo, cai em desgraça no país que representa e vê morrer inesperadamente a mulher que ama. Em lugar de reflexões teóricas sobre a existência deparamo-nos, assim, com um drama pessoal em carne viva.
DIPLOMATA VOLUNTÁRIO
Mircea Eliade foi um diplomata atípico, não profissional, daí uma ambiguidade óbvia entre a actividade individual do homem de cultura e a representação política do Estado romeno. E nota-se que o intelectual se sente cada vez mais distante da defesa da cultura oficial: “É avassaladora a mediocridade da vida cultural e jornalística romena. Depois de ler os jornais e as revistas que recebi da Roménia, só me apetece chorar. Começo a sentir-me sozinho na Roménia” (28-3-42). Ao contrário do que acontecera na sua estada na Índia, em Calcutá, agora Eliade sente-se constrangido e limitado para escrever, em especial para a imprensa romena, onde a censura e o ambiente geral ditam as suas leis. E sente ainda ser alvo de perseguição por parte dos novos poderes que se instalam em Bucareste. Confundido e perplexo rodeado de um muro de silêncio, Mircea Eliade fica sem horizonte, ora com receio da concretização da ameaça soviética, ora perante a hostilidade que sente crescer em seu redor. “Em Paris (confessa), aprendi uma coisa decisiva: que não se pode dar frutos no plano universal das ciências actuando no quadro limitado de uma cultura menor” (25.11.43). Isto mesmo angustia Mircea, que considera finalizada a “fase romena”, o que prenuncia uma nova atitude mais universalista do historiador e do ensaísta no pós-guerra.
EM PORTUGAL COM IDEIA NA ROMÉNIA 
O antigo legionário da Guarda de Ferro, nomeado para a embaixada, é chamado a escrever sobre o pensamento de Salazar (“Salazar e a Contra-revolução em Portugal”), e fá-lo, procurando fazer chegar a Bucareste, uma mensagem crítica, que funcione melhor sob a capa insuspeita do “sistema” português do que vinda de um intelectual romeno. E “Eliade transforma a mensagem mais geral e europeia de Salazar numa mensagem romena para Antonescu, redigida nos termos que esse, aliás, já sabia, mas que, vindos de Salazar, tinham um peso maior do que se viessem da oposição da Roménia” – afirma Sorin Alexandrescu no prefácio da obra. Note-se que Antonescu era um dos políticos influentes da nova ordem romena e Mircea procura defender a abertura do regime do seu país, através do pluralismo, apanágio da revista “Criterion” (da qual tinham feito parte Cioran e Mircea, além de nacionalistas e marxistas), cujo carácter e modo de ser constituíam para si exemplo do que deveria ser uma sociedade romena aberta, moderna e virada para o futuro.
O PAVOR DA INUTILIDADE
“Domina-me novamente o sentimento de inutilidade de qualquer esforço (…). Morrer, sabendo que se deixa atrás um mundo que vai perpetuar os teus pensamentos, morrer com sentido – é uma morte que sempre desejei. Mas apavora-me o vazio que vejo à minha frente: a civilização latino-cristã sucumbindo debaixo da chamada ditadura do proletariado, de facto a ditadura dos mais abjectos elementos eslavos” (23.9.42). Mircea escreve contra a morte, dividido entre a mística e a volúpia, e lembra os antigos mitos romenos, como que procurando reagir. E a ideia de morte pessoal e civilizacional é ilustrada pelo drama do sofrimento e do fim de Nina. Como diz Sorin Alexandrescu, sobrinho de Eliade, o organizador deste volume, lapidarmente: «O “Diário Português” é, realmente, “a verdadeira obra” de Eliade em Portugal. Ele escreve, de um certo modo como Proust, a sua obra-prima desse período como uma expressão do desespero de a não poder escrever. O medo do fracasso, e o seu contrário, a crise de egolatria, assinalavam precisamente esse nascimento pela morte, a separação física da obra da sua carne, um trabalho de parto que Eliade vive em antecipação da sua futura teoria sobre a solidariedade entre a vida e a morte».

QUE SOCIEDADE PORTUGUESA?
As apreciações nem sempre são lisonjeiras. “Portugal parece-me cada vez mais triste. Prestes a morrer. É um passado sem glória” (3.10.43). “Nada odeio mais neste Portugal do que os gritos dos vendedores de jornais à tarde. Qual será a catástrofe que vão anunciar hoje? Pergunto-me. Não se consegue escapar em lado nenhum a esses vendedores que apregoam os três jornais com a mesma lengalenga (tal como é anunciada, melodiosamente, qualquer mercadoria em Portugal). Andam nos eléctricos, no comboio para o Estoril, nos cafés, na praia. Tenho a certeza de que se houvesse missas a essa hora, até entrariam nas igrejas” (21.8.43). A propósito do livro que escreve sobre Salazar diz não poder relatar tudo o que ficou a saber, em especial quanto à fragilidade do movimento de 28 de Maio de 1926, por tal ir contra a versão oficial dos acontecimentos. Os “anos mortos” portugueses revelam-se, de facto, muito mais ricos do que poderia parecer à primeira vista. A paixão, a morte e a ressurreição surgem misturadas em três níveis – o dos dramáticos acontecimentos históricos, o da separação entre Mircea Eliade e a Roménia (pelo afastamento das funções de Estado e pela impossibilidade de manter contacto com o seu público) e o da terrível doença de Nina. O desespero é sentido a cada passo, na neurastenia de Eliade, nas suas depressões e na dolorosa experiência da separação física relativamente a quem amava. E assiste-se a um processo de maturação da pessoa, do homem de cultura, do cientista das religiões, do pensador, o que nos permite compreender que o “fait divers” político é muito menos importante do que o testemunho existencial. O pano de fundo é dominante e a vida individual recebe o correspondente influxo, como se tratasse de um espelho onde se projecta o drama global. Eis por que razão este “Diário” é uma peça literária, filosófica e testemunhal da maior importância. E Mircea é uma personagem central de grande riqueza.
                                                                    Guilherme d’Oliveira Martins

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