A VIDA DOS LIVROS
de 26 de Setembro a 2 de Outubro de 2011
Ao visitar Malaca e ao deambular pela Malásia e Indonésia não pudemos deixar de recordar Emílio Salgari (1862-1911), o autor das aventuras de Sandokan, na ilha mítica de Mompracem. O autor italiano notabilizou-se pela escrita fantasiosa de aventuras ocorridas no Bornéu, sendo uma referência indiscutível no desenvolvimento de um imaginário orientalista que dominou as gerações adolescentes da primeira metade do século XX. É curioso que o escritor tenha sentido necessidade de nomear um português para ser o braço direito do herói. Lembramo-nos bem da invocação heroica de António Alçada Baptista em “Peregrinação Interior” da memória dessas leituras juvenis, nas edições da Livraria Romano Torres. Devemos referir que acabam de ser descobertas pranchas de BD inéditas de Hugo Pratt, o autor de Corto Maltese, relativas às aventuras de Sandokan.
GUARDIÃ DO ESTREITO
Malaca é a guardiã do estreito e encruzilhada de muitas culturas e influências (hindus, chineses, malaios e javaneses). Chegados aqui, contando com a erudição e o bom humor de Luís Filipe Thomaz, tratamos de fazer uma imersão total no clima húmido e quente e na história. A cidade é relativamente recente, data de 1403, começou por ser uma pequena povoação de pescadores e corsários e esteve sob influência portuguesa de 1511 a 1641. A imigração chinesa é intensa e muito evidente, dividindo-se entre uma vaga mais antiga, os babas e as nyonyas, do início do século XV, constituída por letrados e comerciantes, e uma segunda, mais numerosa, correspondente ao período da guerra do ópio e da colonização britânica, no século XIX, que se dedicou à agricultura. A história de Malaca é muito rica e é marcada pela situação estratégica da cidade como porto de abrigo e como centro de comércio. O célebre navegador chinês Zheng He aqui estabeleceu importantes contactos que levariam o rajá de Malaca a declarar-se vassalo do Celeste Império, sacudindo o jugo de Sião. Quando Afonso de Albuquerque definiu este como um dos pontos cruciais do império português do Índico, fê-lo conhecedor do grande valor da cidade e das possibilidades que apresentava como placa giratória para o Extremo Oriente. Já Álvaro Velho, no seu Roteiro, e Gaspar da Índia falavam da importância de Malaca, tendo incumbido o rei D. Manuel D. Francisco de Almeida a tarefa de «assentar trato em Malaca» e de construir uma fortaleza na cidade. Mas só em 1509 a armada capitaneada por Diogo Lopes de Sequeira atinge Malaca, sendo primeiro bem recebida pelo Sultão, mas sofrendo depois a violenta oposição dos mercadores indianos do Guzerate. Afonso de Albuquerque delineará a tomada da cidade, reforçando a armada de Diogo Mendes de Vasconcelos, especialmente enviada para o efeito. Chineses e hindus serão aliados objetivos dos portugueses, permitindo o domínio da cidade. Durante 130 anos os portugueses tornarão Malaca o grande centro do comércio e o principal nó da rede marítima. Após a ocupação holandesa, uma parte da população irá para Macau ou para outros destinos na atual Indonésia.
LEMBRAR AFONSO DE ALBUQUERQUE
A cidade atrai-nos pela história riquíssima e pelos contactos culturais e económicos que se estabeleceram aqui. O Museu Marítimo ostenta como seu verdadeiro símbolo a nau “Flor de la Mar”, a mais rica e poderosa do seu tempo, que naufragaria no final de 1511, com Afonso de Albuquerque a bordo. E falar de Afonso de Albuquerque é sempre referir a figura controversa que foi, com quem o rei D. Manuel tinha uma relação muito especial, até em virtude de ser um dos mais determinados apoiantes na defesa de um império de Estado, por contraponto à lógica da liberdade concedida aos navegadores para comerciarem, e ganharem assim influência e riqueza. Encontrámo-lo em Goa, em Ormuz e no Omã, nestas andanças do Centro Nacional de Cultura, agora descobrimo-lo num momento decisivo da sua ação, no ano seguinte a tomar Goa e antes de avançar para o Golfo Pérsico e o Mar Roxo. E sentimos, com nitidez, que as intrigas e as incompreensões de que será vítima têm sobretudo a ver com um grande debate que se desenvolve em torno de D. Manuel sobre a estratégia do Oriente, se o império do Estado se o domínio poliárquico dos mercadores. O certo é que Malaca é um ponto nevrálgico (que Albuquerque bem entendeu) para o comércio das especiarias, para a administração imperial e para a mobilização de pessoas… A qualidade da Casa del Rio, um dos mais recentes hotéis de Malaca, onde ficamos instalados, é assinalável. Uma delegação da nossa embaixada cultural teve uma longa reunião com o Ministro Chefe de Malaca e no dia seguinte avistámo-nos com o Governador do Estado. Há um grande interesse em aprofundar a cooperação luso-malaia, quer no domínio do património, uma vez que a zona histórica está classificada pela UNESCO, quer no campo económico. O Embaixador Jorge Torres Pereira acompanhou-nos sempre, o que permitiu uma ligação e uma distinção entre a sociedade civil e o Estado.
O BAIRRO PORTUGUÊS
A visita ao Bairro Português é sempre um motivo de especial de interesse em Malaca. Da antiga fortaleza de Afonso de Albuquerque – “A Famosa” – apenas resta a porta da muralha, já que os ingleses não evitaram no século XIX a destruição do edifício militar, que muito se assemelhava à nossa Torre de Belém, como está representado por Manuel Godinho de Erédia em 1604. Para nós, é emocionante a subida até à Igreja do Monte, sob o orago da Anunciação ou de São Paulo, onde São Francisco Xavier pregou e onde se encontra a pedra tumular de D. Miguel de Castro, filho de D. João de Castro. As visitas sucedem-se. Interessa-nos reencontrar o papiar do século XVI, o kristang, a língua franca dos mercadores, que os missionários desenvolveram. Malaca acolheu-nos principescamente. O jantar no restaurante Papa Joe permitiu provarmos uma canja divinal e usufruirmos de pratos nos quais se sente o diálogo entre culturas. E, para coroar a expressão de uma amizade ancestral, ouvimos o português de antigas canções tradicionais por um grupo de elementos da comunidade de portugueses em Malaca. O papiar cristão, a língua franca do século XVI, não foi esquecido, apesar da distância e da história. A emoção liga-se ao entusiasmo e todos se envolvem na animação desta herança portuguesa vinda dos confins do tempo. Muitas vezes perguntamo-nos o que significa no mundo das culturas da língua portuguesa a cidade de Malaca. Não se trata de uma mera reminiscência vaga. É uma referência do património material e imaterial. É o encontro de uma pequena comunidade com a referência histórica que segue para Sul e Oriente, até Java, às Flores e a Timor, e ainda às Molucas e às Celebes. Eis por que razão Malaca não pode ser vista isoladamente. Daí a necessidade de aprofundarmos as relações culturais e económicas com a Malásia. O que está em causa é a perceção de que a história é dinâmica, não pode ficar apenas no passado, devendo projetar-se no presente e no futuro. E desta nossa passagem em Malaca fica a exigência de sermos mais atentos a esta referência da nossa identidade linguística e à comunidade de pessoas que a constitui. E uma vez que, como habitualmente, levamos connosco textos significativos – não pudemos deixar de invocar Fernão Mendes Pinto, em Malaca, sempre ele, mas também a alusão mítica e imaginosa de Sandokan, o Tigre da Malásia, não por ele, mas por Gastão Sequeira, um português que representa os nossos mercadores e mercenários, que povoaram a Malásia, o Bornéu e as Molucas desde o século XVI. Emílio Salgari deu-lhe originalmente o nome menos credível de Ianes de Gomera, mas a linhagem portuguesa não oferecia dúvidas. E Mompracem, a ilha que Sandokan desejava ver livre do jugo de Sir James Brooke, era provavelmente Mangalum, nome derivado de Fernão de Magalhães, que aqui teria estado aquando da sua visita ao Sultão do Brunei…
Guilherme d’Oliveira Martins