A VIDA DOS LIVROS
de 27 de Junho a 3 de Julho de 2011
«Indignai-vos» de Stéphane Hessel (Objectiva, 2011) é uma obra que se tornou um fenómeno europeu de repercussões inesperadas. Aos 93 anos de idade, um antigo diplomata francês, membro activo da Resistência, companheiro do General De Gaulle, com um papel muito relevante na redacção da Declaração Universal dos direitos humanos das Nações Unidas (1948), lançou um pequeno manifesto que vendeu em França um milhão e trezentos mil exemplares, em apenas 4 meses, e que agora é publicado em Portugal com prefácio de Mário Soares.
A MEMÓRIA DA RESISTÊNCIA
«O motivo basilar da Resistência (diz-nos Stephane Hessel) era a indignação. Nós, os veteranos dos movimentos de resistência e das forças combatentes da França Livre apelamos às gerações mais jovens, que dêem vida ao legado da Resistência e aos seus ideais e que os transmitam». Num momento em que a memória da guerra que destruiu a Europa se esvai, regressam os egoísmos e a indiferença, e esses são os temas fundamentais desta obra. Hessel contrapõe as concepções optimista e pessimista da História, desde a visão dialéctica de Hegel à perspectiva de Walter Benjamin sobre o «Angelus Novus» de Paul Klee – «que abre os braços como para refrear e repelir uma tempestade que ele identifica como sendo o progresso». Mas «a pior das atitudes é a indiferença, que se traduz em dizer “como não posso fazer nada, desenvencilho-me como posso”». E a esta indiferença soma-se a indignação contra o fosso que existe (e se agrava) entre os muito pobres e os muito ricos, bem como o empenhamento no sentido da consagração efectiva dos “direitos universais”, propostos por René Cassin e Hessel, que obrigam a uma acção forte em prol da cidadania. Ao lermos este manifesto, dotado de um fervor e de uma determinação dignos de destaque, deparamo-nos com o alerta geral, mas também com a referência a casos concretos, como a situação na Palestina. Como método, Hessel propõe a não-violência, enquanto caminho que devemos aprender a seguir. «É preciso compreender que a violência vira as costas à esperança», e lembra Mandela e Luther King. «Criar é resistir, resistir è criar». Eis o que está em causa neste apelo veemente mas responsável, no sentido de «uma verdadeira insurreição pacífica contra os meios de comunicação de massas que só apresentam como horizonte à nossa juventude uma sociedade de consumo, o desprezo pelos mais fracos e pela cultura, a amnésia generalizada e a competição renhida de todos contra todos».
E PORTUGAL?
Há muito procuramos como País o nosso tamanho histórico, político, económico e social. Somos uma nação de tamanho médio com responsabilidades de potência histórica. Em 1974 e 75, regressámos ao porto de partida (como nos lembra Eduardo Lourenço), em 1986, entrámos nas Comunidades Europeias. E houve quem pensasse que o regresso à Europa seria a reforma ou jubilação de um velho país. Hoje percebemos que a nossa sobrevivência exige a procura e o encontro de uma soberania que seja compatível com a partilha de uma união de Estados e Povos livres e soberanos. Para Portugal, a União Europeia é o regresso natural a uma vocação que nunca perdeu. Impõe-se, porém, impedir que o futuro seja caracterizado pela periferia, pela irrelevância e pela mediocridade. Não basta falar da nossa vocação histórica ancestral, e importa evitar a ciclotímia ou bipolaridade, entre a depressão e a euforia. Impõe-se, no fundo, recusar o fatalismo do atraso. Urge a coragem da aposta nas vantagens competitivas, de modo a afirmar plenamente a nossa autonomia. A crise internacional pode e deve constituir uma oportunidade de transformação profunda – no sentido de mobilizar e envolver os cidadãos, de melhorar a qualidade da democracia, ligando a legitimidade da origem à legitimidade do exercício – o voto à prestação de contas e à responsabilização, com o reforço dos elos entre o Estado e a sociedade, na cobertura dos riscos sociais e na concretização da justiça distributiva.
PERÍODO DIFÍCIL E INCERTO
A União Europeia vive um tempo especialmente difícil e incerto. Não estamos perante uma realidade irreversível – os riscos de fragmentação são reais. Depois de 1989 a União deixou de ser um espaço como vocação de homogeneidade, para se tornar um ponto de encontro visando a paz e a seguranças, o desenvolvimento sustentável e a preservação da diversidade cultural. Aos egoísmos nacionais (subjacentes à denúncia de Hessel) importa contrapor uma definição clara de interesses vitais comuns, com reforço de um núcleo limitado de poderes supranacionais (da defesa do ambiente e da coordenação das redes europeias de comunicações à articulação das políticas de coesão económica, social e territorial). Será um erro a diluição da democracia supranacional e o alargamento das políticas intergovernamentais. A intergovernamentalidade gerou o reforço dos egoísmos nacionais. E, na aplicação do Tratado de Lisboa, terá de se dar: mais atenção ao papel dos parlamentos nacionais no controlo da subsidiariedade; maior importância ao governo económico da União, pela coordenação das políticas económicas e sociais que completem os desígnios monetários; e a maior protecção à Comissão Europeias como contraponto indispensável à lógica do Conselho, mais próxima da realização de um Directório de grandes. Nós, portugueses, temos de tomar consciência de que a nossa soberania depende da nossa vontade (Herculano dixit), da nossa capacidade preventiva, do que formos capazes de antecipar. Não podemos viver acima das nossas possibilidades, e temos de perceber que importa não gastar mais do que podemos nem menos do que devemos. Temos de preservar a equidade entre gerações. A poupança deve ser incentivada e servir de base à prevenção. Os portugueses poupam muito pouco, chegando na sua maioria à idade de reforma tendo, na melhor das hipóteses, apenas a sua habitação como única riqueza. Persiste o erro antigo que Sérgio e Cortesão verberaram, na sequência de Antero de Quental – preferimos o transporte à fixação, e continuamos sem dar ouvidos ao Infante D. Pedro na sua celebérrima Carta de Bruges.
A CULTURA COMO VALOR
A cultura é um factor decisivo de inovação e criatividade. Impõe-se, por isso, entendê-la como confluência do património material e imaterial, pedras mortas e pedras vivas, com a criação contemporânea – em lugar de um entendimento exclusivista entre o património herdado e a criação actual. O que está, de facto, em causa é a criação de valor. Daí que à economia da ilusão e do casino devamos ter de contrapor a cultura criadora e inovadora., capaz de se afirmar pelo valor gerado. O que a Convenção de Faro do Conselho da Europa diz tem a ver com esta preocupação. Daí que tenhamos de falar mais de desenvolvimento humano e de exigência, rigor e disciplina na educação e na formação. Se a competitividade e a criatividade são fundamentais, importa compreender que a periferia, a mediocridade e a irrelevância só podem combater-se através de melhor informação e de mais exigente educação e formação. Compreende-se a importância da internacionalização, do intercâmbio científico, educativo, artístico, profissional e cívico. A aposta na educação é fundamental. Não pode haver a tentação de diminuir a ambição nesse domínio. Mais educação e formação significa mais coesão e mais justiça – mas sobretudo permite melhor informação de modo a poder responder-se mais eficazmente aos desafios perante os quais nos encontramos. Por outro lado, o futuro da língua e da cultura tornou-se decisivo para a modernização contemporânea. A língua portuguesa é hoje a terceira língua europeia em número de falantes no mundo. Esse número e essa perspectiva ainda não correspondem a real influência. As potencialidades existem. Há uma tomada de consciência nas economias emergentes da importância futura da língua portuguesa, na América do Sul e em África. Deste modo, o valor da língua portuguesa no mundo será maximizado, pela cooperação académica e científica, pela criação de valor através da aprendizagem, pela criação de espaços de diálogo e intercâmbio (das humanidades às ciências exactas). A cultura da língua portuguesa é plural, multifacetada e complexa. A mobilidade de um povo culto só pode favorecer a eficiência e a equidade, desde que haja capacidade de orientação e sentido de justiça. A crise pode ser, em suma, boa conselheira, desde que percebamos como poderemos criar valor, percebendo a força criadora de quem somos.
Guilherme d’Oliveira Martins
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