A VIDA DOS LIVROS
de 20 a 26 de Junho de 2011
«O Pensamento Português Contemporâneo – 1890 – 2010: O Labirinto da Razão e a Fome de Deus» de Miguel Real (INCM, 2011) resulta de um trabalho intenso e sério desenvolvido pelo autor nos últimos anos, de que tenho sido testemunha, e que muito me apraz registar e elogiar. Corresponde às matérias leccionadas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em três seminários sobre cultura portuguesa, mas ultrapassa em muito o magistério académico, correspondendo, sim, a um labor de leitura, estudo, investigação e crítica do fundamental que se produziu entre nós no último século.
DN
UMA PROCURA DESAPAIXONADA
E o que de mais importante aqui se encontra é uma procura desapaixonada dos vários caminhos que o pensamento português tem trilhado – sem cedências ou simplificações e com a salvaguarda essencial de uma objectividade nem sempre fácil, que permite contribuir para responder à interrogação sobre o sentido de uma história cultural multímoda, influenciada por duas visões do mundo conflituais: o provincianismo messiânico, «como se os portugueses se tivessem constituído como segundo povo eleito de Deus» e o racionalismo e empirismo europeus – «atitude mental causadora da laicidade do Estado, do espírito científico, da democracia política e do cosmopolitismo universalista, de que Portugal foi vanguarda no dealbar dos Descobrimentos». A partir destes dois polos, Miguel Real refere nos últimos 130 anos «três vértices da permanente aproximação da cultura e do pensamento portugueses à realidade cultural europeia, dois com fortíssima intervenção intelectual e o último com fortíssima expressão política e social». Estão em causa o vértice histórico filosófico, centrado nas Conferências Democráticas do Casino de 1871 e no seu sentido modernizador, racionalista e cosmopolita – ainda na sequência do constitucionalismo liberal de D. Pedro; o vértice literário, expresso na explosão da ousadia modernista do Orpheu, com os antecedentes oitocentistas de um Cesário; e o vértice político social da revolução de 25 de Abril de 1974, que «inverteu o rumo de 400 anos de dramático espírito imperial português», num sentido democrático e europeu, tendo como bandeira a «Europa connosco». Ao contrário do que Eric Hobsbawm tem referido relativamente ao curto século XX europeu (1914-1989), por contraponto ao longuíssimo século XIX (1789-1914), Miguel Real fala-nos (e com razão) de um longo século XX português iniciado em 1890 – com características singulares que encontram as suas raízes na grave crise política, económica e social, que conduziu ao fim da monarquia (num curioso e ilustrativo paralelismo peninsular, que tem sido pouco enfatizado, mas que merece atenção, em especial em relação à chamada geração de 98).
UMA IMAGEM POLIÉDRICA
Apesar dos «diversíssimos movimentos que dão corpo e sangue ao pensamento português do século XX», há um quadro cronológico múltiplo e unitário que pode permitir abordar de modo aberto e construtivo o tema difícil da nossa identidade, como o fazem magistralmente, de modo diferente e complementar, José Mattoso e Eduardo Lourenço. E assim temos uma sucessão que se vai somando e enriquecendo. E os autores vão superando dialecticamente as características do seu tempo cultural. O racionalismo, no modo positivista, domina os primeiros 25 anos do século XX, mas contém já em si o germe crítico que vem da geração magnífica de Antero de Quental. A dominância do providencialismo absolutista messiânico e autoritário dos cinquenta anos seguintes anuncia no seu seio um sentido crítico que se manifestaria depois de 1945 e sobretudo no ano emblemático de 1958 (candidatura do General Delgado e o memorando do Bispo do Porto…), graças à semente inconformista e heterodoxa que pôs a tónica na liberdade, para além dos messianismos corporativo e neo-realista. O racionalismo e o modernismo surgem, assim, no último quartel do século XX, caldeados pelas noções de complexidade e de diversidade (a presença portuguesa de Edgar Morin é evidente) trazidas pelos mais jovens, da linhagem do cosmopolitismo europeu, e também lusófono, que Francisco Lucas Pires enfatizou. Assim, a presença do providencialismo e do espiritualismo português manteve-se, mas em diálogo tenso com os caminhos modernizadores (com pessoas tão diferentes como Agostinho da Silva e o Padre Manuel Antunes) – entendendo-se a identidade portuguesa como um resultado complexo de elementos contraditórios que exigem a compreensão dos mitos e uma lógica racionalizadora. E Eduardo Lourenço num ensaio fundamental, publicado no ano da morte de António Sérgio (1969), procurou apresentar uma chave que permitisse entender a heterodoxia e o «labirinto da saudade» enquanto encruzilhada de razões e mitos, em articulação com a reforma de mentalidades, que procura entender os portugueses com «espírito geométrico». Mas Lourenço demarca-se do «reino cadaveroso», que considera ser um reparo algo sobranceiro – antes preferindo voltar-se para Montaigne e Pascal e à necessidade de concatenação entre o «esprit de finesse» e o «esprit geometrique»… Daí a exigência de evitar simplificações, que, sendo atraentes, arriscam-se a não compreender, de facto, este nosso «melting pot» bem difícil de gerir, como está patente a cada passo. Entende-se, assim, bem as três partes em que se divide o longo ensaio de Miguel Real: o triunfo do racionalismo (1890-1930), o triunfo do providencialismo (1930-1974) e “Europa connosco” (1974-2010). A verdade é que o trabalho empreendido é extremamente importante e útil. Seria sempre muito difícil levar a cabo um esforço como este, mas devo dizer que, quer conceptual quer pedagogicamente, apresenta uma qualidade que permite perceber, como poucos, a riqueza do pluralismo cultural português.
UMA LÓGICA PROSPECTIVA DA CULTURA
O escritor tem um percurso intelectual próprio, no ponto de encontro entre a filomitia de Eduardo Lourenço ou de José Marinho, a heterodoxia do primeiro e o modernismo pessoano, com todas as várias reminiscências. E não por acaso, recorda-nos as raízes remotas, de Francisco Sá de Miranda até ao inesgotável Padre Vieira: «a vertente modernista da cultura portuguesa possui o seu momento fundador na obra de Sá de Miranda e estatui-se como uma permanente actualização europeia da literatura e do pensamento portugueses». Esta preocupação das raízes é muito evidente, e encontramos no movimento da “Renascença Portuguesa» (1910) uma extraordinária placa giratória simbólica onde quase tudo vai dar, desde as bases românticas de Garrett e Herculano, às bases naturalistas de 1870, ao simbolismo portuense, vindo do 31 de Janeiro, de Pascoaes, Leonardo, até aos nacionalistas, aos seareiros e aos modernistas de «Orpheu», que originariamente quiseram baptizar a sua revista de «Europa» – sintomaticamente. Um pensamento vivo não é resumível e, por isso, Miguel Real não cai na tentação das sínteses abreviadas. Analisa as condições históricas, segue criticamente a evolução de Portugal e do mundo e lê com muito cuidado os textos.
Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões na Renascença