A VIDA DOS LIVROS
de 11 a 17 de Abril de 2011
“Timor – O Nosso Dever Falar” (APEL, 1999) é um pequeno livro de solidariedade com o povo de Timor-Leste que contém uma pequena e preciosa antologia de Ruy Cinatti e em que ainda colaboraram Eugénio de Andrade, José Agostinho Baptista, Sophia de Mello Breyner, Nuno Júdice, Jorge Lauten, José Tolentino Mendonça, Fernando de Paços, José Cardoso Pires e António M. Couto Viana. Foi com emoção que regressei a esta leitura quando há duas semanas regressei a Timor…
Ruben A. e Ruy Cinatti (c. 1950)
RECORDAÇÃO EM TIMOR
Escrevo de Timor uma carta sobre língua e cultura. Vim de novo, em nome da amizade. E aqui sinto, mais do que nunca, apesar de todas as incertezas, que estes mundos ao encontro dos quais os portugueses vieram (é melhor dizê-lo assim do que usar outras fórmulas) correspondem ao resultado de um diálogo. O nosso «melting pot» original, o nosso cadinho de várias influências, é incompatível com qualquer ideia de absorção ou de adaptação. Mais do que absorção ou do que adaptação, do que se trata é sempre de uma serena osmose feita de diálogo e de saudade. Diálogo a partir da plasticidade da nossa cultura leva naturalmente a uma relação biunívoca (veja-se o caso de Goa, originalíssimo e próprio, que se tornou identidade autónoma.) – damos e recebemos, e depois resulta algo de diferente dos pontos de partida. E é ainda produto da saudade, palavra ambígua e não delicodoce, lembrança e desejo, no fundo, uma das matérias-primas da memória, mas apenas uma parte dela. E não se fique pela ideia de adaptação, uma vez que a ligação biunívoca obriga sempre a que cada qual, cada cultura, cada identidade, se situem tal como são, assim se relacionando e respeitando. Não construímos um sincretismo cultural, fazemos, sim, a experiência de uma soma (multímoda) e não de uma subtracção.
CULTURA DE VÁRIAS LÍNGUAS…
Cultura de várias línguas, língua de várias culturas. – a fórmula é muito mais complexa do que à primeira vista possa parecer. Uma cultura de várias línguas espalhadas pelo mundo: tem um denominador comum – a capacidade de encontrar lugar para exprimir sentimentos comuns, a partir do universalismo da dignidade das pessoas. Poucos compreenderam, aliás, o que quis dizer António Alçada Baptista com a sua cultura de afectos – definida essencialmente na sua obra maior, «Peregrinação Interior». Esse seu entendimento, na linha de Fernão Mendes Pinto, pícaro e dramático, insatisfeito e aventureiro, tinha sobretudo a ver com o coração, e com o conhecimento na acepção de Paul Claudel, «con-naissance», nascimento com – procura de denominadores comuns que exige a capacidade de ter atenção, de ouvir, de incorporar e de respeitar. As línguas maternas exprimem sentimentos, como não há outro modo de o fazer. E em Timor-Leste, sentimos a força do multilinguísmo e a busca permanente de pontos de encontro, apesar de todas as resistências e distâncias. Ruy Cinatti compreendeu melhor do que ninguém essa proximidade e essa distância: «Que Timor morra comigo não quero / porque o amo / como detesto os que o destruíram e destroem / antes do corpo, / na alma sempre».
«NÓS NÃO SOMOS DESTE MUNDO»
Quando relemos o poeta de «Nós não somos deste mundo» sentimos que houve, relativamente a Timor, amor à primeira vista e uma relação de fidelidade contra todas as vicissitudes. É ainda com emoção que relemos as suas primeiras impressões: «Quem desce pela primeira vez aos Trópicos fica impressionado pela riqueza e complexidade da vida vegetal. Os panoramas de vegetação exuberante, os volumes de verdura de onde sobressaem palmeiras, bambus, árvores altíssimas e outros tipos de plantas, desencorajam, por vezes, o recém-chegado ansioso por conhecer o mundo que organizara, no seu espírito de acordo com meia dúzia de regras aplicáveis à vegetação dos climas temperados. Tudo é novo e estranho». Cinatti ficou absolutamente apaixonado por Timor – «a minha vida aqui tem sido uma verdadeira experiência, das que jamais se esquecem e que ou deixam fundas marcas no carácter de uma pessoa ou reforçam as tendências inatas do indivíduo que as experimenta». Quando regressamos ao magnífico «A Condição Humana em Ruy Cinatti» de Peter Stilwell, lemos com emoção esse amor extraordinário à terra e às gentes. E há razões objectivas para essa relação amorosa. Não se trata, porém, de um idílio passageiro, uma vez que mesmo depois de todas as dúvidas e incompreensões, fica o desejo de continuar a compreender e a conhecer melhor esta ilha simbolizada no crocodilo.
UM IMPÉRIO DE LÍNGUA E DE ESPÍRITO
Aqui, nos antípodas, compreendemos talvez melhor esta singular extensão da influência cultural. Como foi possível, misteriosamente, chegar aqui? E sentimos a ideia do Padre António Vieira de um Império não político, mas de dons, de graças e feito de transmissão de cultura e de espírito. Numa junção de elementos contraditórios, até para compreender a nossa própria cultura, projectada aqui como num espelho, lembramo-nos de Eduardo Lourenço a falar de «maravilhosa imperfeição» (que aqui também encontramos) e a invocar o irrequieto «desassossego» de Fernando Pessoa; isto, enquanto Agostinho da Silva (mil vezes incompreendido, e confundido com um lunático comum) lançou as sementes de um complexo diálogo de línguas e de culturas, menos apologético do que desafiante – para que cada um possa perceber que precisamos do nosso sentido crítico, da nossa insatisfação (simbolizada por Antero de Quental e pelos seus amigos) para superar as dificuldades, que tantas vezes agravamos por excesso de confiança, por desconfiança e por alternância entre o conformismo e o inconformismo, entre o optimismo e o pessimismo. Afinal, a recusa da mediocridade, obriga à severa crítica e ao drama… António Quadros diria: «Acreditem (…). Portugal está mais no fundo de cada um de nós e sem Portugal sereis menos do que sois». E a afirmação carece de uma leitura cuidadosa e sábia – pondo o acreditar como sinal de vontade (no sentido que Herculano lhe deu). E agora sentimos genuinamente e com a distância da diferença este dizer-nos «acreditem» ou «acreditemos todos» nas causas comuns e diversas – nos confins das montanhas heróicas, ou nas conversas amenas com Ramos Horta e Xanana Gusmão.
UMA CARTA PARA O RUBEN
Em carta a Ruben A. lemos: «Pois é verdade! Eis-me na ilha de encanto e do desencanto (…), feito infecto burocrata como chefe de uma nova repartição técnica; a dar despachos e a ir a despacho; exactor da fazenda e fabricante de regulamentos; responsável por massas e cargas». Queixa-se da malária, confessa saudade dos livros, das conversas e dos Amigos. «Valem-me, no entanto, os poucos passeios na ilha que continua de uma beleza ressumante. Mistérios e neblinas sobre verdes densos e abismos. Mar de ilhas perdidas e crepúsculos loucos. E um sossego que envolve tudo como o manto diurno. Volto-me portanto para a Natureza e dela retiro as forças para os encontros diários» (10.1.1952). É assim ainda hoje. Recordo com o Embaixador Luís Barreira de Sousa o heróico envio de professores de português no momento da máxima incerteza. Ficámos aquém? Certamente, mas só Deus sabe as mil e uma resistências de toda a sorte. O tema das línguas é um sinal de como as culturas se podem entender ou desentender. Lembro com Pedro Bacelar de Vasconcelos ou com Maria de Jesus Chaves outras deambulações. E vem à memória Teresa Santa Clara Gomes, que já não pôde ver esta nação nova. E Sophia lembra-nos: «o cerco da surdez dos consumistas / tão cheios de jornais e notícias».
Guilherme d’Oliveira Martins
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