de 31 de Janeiro a 6 de Fevereiro de 2011
Continuamos o relato da nossa peregrinação nipónica. Nada melhor do que invocar uma obra-prima da literatura mundial – “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto (publicada postumamente em 1614). Falamos de “Peregrinaçam de Fernam Mendez Pinto em que da conta de muytas e muyto estranhas cousas que vio & ouvio no reyno da China, no da Tartaria, no de Sornau, que vulgarmente se chama de Sião, no de Calaminhan, no do Pegù, no de Martauão, & em outros muytos reynos & senhorios das partes Orientais, de que nestas nossas do Occidente ha muyto pouca ou nenhua noticia. E também da conta de muytos casos particulares que acontecerão assi a elle como a outras muytas pessoas. E no fim della trata brevemente de alguas cousas, & da morte do Santo Padre Francisco Xavier, unica luz & resplandor daquellas partes do Oriente, & reitor nellas universal da Companhia de Iesus.” Trata-se de um relato indispensável para se compreender não só a experiência da presença portuguesa no Oriente, nas suas múltiplas facetas, encarnadas por este herói que protagoniza de tudo um pouco o que os portugueses fizeram nessas longínquas paragens. Missionário e comerciante, pirata e aventureiro, com evidentes ligações à literatura picaresca do Lazarilho de Tormes, cronista imaginoso, imprescindível para se perceber o que escreveram Diogo do Couto ou João de Barros, estamos diante de uma referência fundamental da cultura portuguesa.
OUTONO DE QUIOTO
O sol imperava naquela manhã de Outono em Quioto. Quando chegámos a Myioshin-ji, por um momento julgámos que não seria possível ver o sino português do século XVI, que recorda a presença dos jesuítas num momento fundamental nestas paragens nipónicas. Myioshin-ji é um complexo de 46 templos, onde há um número significativo de monges, próximo da centena. Graças à boa vontade geral e à extrema simpatia de quem nos recebia, fomos ao templo de Shunkoin, onde vimos e ouvimos, com evidente emoção de todos, o sino, marcado com o símbolo da Companhia de Jesus e a indicação do ano de 1577. O reverendo Takafumi Kawakami, instrutor de zen, com experiência internacional, em especial nos Estados Unidos, foi precioso nas explicações que deu durante a pormenorizada visita que fizemos ao templo. O sino não está ali por acaso, uma vez que o templo, que data de 1590 e foi reconstruído no século XVIII, está ligado à família dos Hishikawa e aos cristãos portugueses. A subtil presença de símbolos que têm interpretação cristã confirma esses elos: três aves de espectaculares plumagens representam a Santíssima Trindade, cinco rosas brancas significam as chagas de Cristo e os lírios a pureza da Virgem…
DE NOVO WENCESLAU
Lembramo-nos, de novo, do que Wenceslau de Moraes continua a dizer-nos: “E não tereis notado que as pedras dos vetustos monumentos diferem muito dos calhaus vulgares, que encontramos nos caminhos, dispersos ao acaso? Como que se embeberam um tanto do espírito dos mortos (…) vivem em intenções”. Mestres e discípulos são encontrados, a cada passo, ora dialogando, ora em silêncio. Em Ryoan-ji, a quintessência de um templo zen, recordamos o que João Bénard da Costa diz no seu “Quinze Dias no Japão” (2001) e que serve de tema ao filme “A Décima Quinta Pedra” de Rita Azevedo Gomes. Aí há um diálogo extraordinário com Manoel de Oliveira sobre a ideia de que “só de vê com o coração”… Naquele jardim, com quinze pedras, representando o universo, em nenhum ponto todas poderiam ser vistas, havia sempre alguma que faltava, encoberta por outras. Depressa percebemos que nunca poderemos ver todas as pedras em simultâneo. E um monge perguntou ao João se já compreendia o que ali se passava. «Começo a compreender!». Mas o monge surpreendeu-se: «Já aqui estou há vinte anos e cada vez entendo menos». E ali sentados, com o sobreaviso do monge, reflectimos sobre o tempo, o mundo, a memória e lemos: “no oeste varremos as folhas caídas com a nostalgia de quem sabe que o tempo findou; no Japão essas folhas juntam-se e dão lugar à alegria do surto de um novo tempo”. João a dizer-nos que a cultura nos traz mil surpresas. «Esse jardim de Ryoan-ji ensina-nos, entre muitas outras coisas, que dizem os orientais, uma vida inteira não dá para aprender, que cada coisa é ela e simultaneamente o seu duplo, que nada existe fora do olhar que lhe dá existência e que – como no paradoxo de Zenão, de que talvez seja a ilustração suprema – o movimento é a mais radical de todas as ilusões».
UM PALÁCIO CHEIO DE SEGREDOS
Na véspera, no imponente Palácio de Nijo, ao pôr-do-sol, tínhamos podido tomar contacto com a história japonesa, em especial com a longa evolução do poder dos xóguns Tokugawa (a partir do poderoso Ieyasu – 1543-1616, depois da morte de Toyotomi Hideyoshi), cujo símbolo era a malva real, até ao predomínio da Casa Imperial, simbolizada pelo crisântemo das 16 pétalas, depois da restauração Meiji (1868). Ali encontrámos, nas portas deslizantes, as pinturas dos grandes felinos, dos pinheiros e das cerejeiras, da autoria dos exímios membros da família Kano (que bem conhecemos dos biombos Namban), podendo ainda testar os pavimentos com sistema rouxinol, a fim de denunciarem, através de um complicado sistema de grampos e pregos, os mais leves movimentos suspeitos de espiões ou intrusos. Em Nijojo, com toda a sua grandeza e sofisticação, bem evidentes nas esculturas em madeira representando aves em voo, pavões e delicadas flores, pudemos transpor-nos em espírito para tempos muito recuados, em que os primeiros portugueses aqui chegaram, animados com a ideia de que havia uma sociedade disponível para a sua influência. No entanto, com o tempo puderam compreender que constituíam uma ameaça demasiado presente e perigosa para poder prosseguir sem uma violenta reacção.
O TEMPLO DOURADO E MISHIMA
Quioto continuava a surpreender-nos. O Outono inebriava-nos. O Kinkaku-ji, o Pavilhão Dourado, enaltece o xógum Ashikaga, Yoshimitsu (1358-1408), mas permite perceber como a natureza e a obra humana se podem harmonizar. Estamos diante de uma réplica, reconstruída depois do fogo posto de 1950 – que Yukio Mishima dramatiza no inesquecível “O Pavilhão Dourado”: «eu via ali o Pavilhão imponentemente erguido ao céu, entre os raios de sol da manhã que subiam os vales». E a fénix, que encima o edifício, permite-nos crer na renovação da vida. Ao invés, o Parque Imperial causa-nos uma impressão de quase normalidade. Não que tudo não seja surpreendente, mas a verdade é que a pujança criadora (e até do silêncio) menos se sente. Sobretudo, quando o final do dia, no declinar soberbo da luminosidade, nos reservaria a mais fantástica das impressões do momiji, em Kiyomizu, lugar de peregrinações e comércio. Wenceslau era peremptório. Aí se sentia a intensidade da magia: “o artista é a natureza, e só ela (…); dentro em pouco, só ficarão os troncos nus, a projectarem no azul do céu os seus esguios esqueletos negros”…
INTERROGAR O SILÊNCIO
Com o Padre Adelino Ascenso, missionário experimentado e culto, que José Tolentino Mendonça trouxe até nós, no Hotel, tivemos oportunidade de invocar o romance de Shusaku Endo “Silêncio”, sobre a apostasia de um jesuíta português no século XVII: “O Senhor não ficará em silêncio. Mesmo admitindo que Ele se mantenha calado, toda a minha vida até hoje falará d’Ele para todo o sempre”. Estava em causa a barreira de cultura entre uma religião estrangeira e a cultura japonesa. No entanto, o cristianismo no Japão é heterogéneo e surpreendente – há os mártires e os cristãos escondidos, os que deram testemunho e os outros, que preferiram mergulhar na vida japonesa, dilacerados entre a fidelidade do gesto e a fidelidade do princípio, tendo como fundo o silêncio dramático da dúvida e do remorso. “Podes pisar-me!” – parecia dizer Cristo representado no “fumie” usado para consumar a negação. Afinal, há o mistério do silêncio – ausência de palavras, audição do universo e fidelidade íntima. A distância cultural é mais forte do que os julgamentos precipitados. Fernão Mendes poderia ter sido lembrado (como António Alçada gostava), sobre a conversa do Mestre Belchior com o rei japonês do Bungo: «o padre lhe tornou que muito satisfeito estava de seu bom propósito, mas que se lembrasse que a vida não estava nas mãos dos homens, pois todos eram mortais, e se ele acertasse de morrer antes (de se baptizar), onde iria a sua alma? A que ele, sorrindo-se, disse: – Deus o sabe…»
Guilherme d’Oliveira Martins