A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

O Colóquio Internacional Sophia de Mello Breyner, sob a coordenação de Maria Andresen de Sousa Tavares, terá lugar, esta semana, na Fundação Calouste Gulbenkian, nos dias 27 e 28 de Janeiro, seguindo-se à entrega do espólio da escritora pela família à Biblioteca Nacional de Portugal no dia 26. Trata-se dum acontecimento importante no nosso panorama cultural a que o CNC se associa com especial gosto e orgulho, destacando-se a recente publicação da «Obra Poética» de Sophia, organizada por Carlos Mendes de Sousa (Caminho, 2010), e a saída do último número da revista “Colóquio – Letras”, cujo lançamento ocorrerá no final da iniciativa.
Guilherme d’Oliveira Martins

de 24 a 30 de Janeiro de 2011


O Colóquio Internacional Sophia de Mello Breyner, sob a coordenação de Maria Andresen de Sousa Tavares, terá lugar, esta semana, na Fundação Calouste Gulbenkian, nos dias 27 e 28 de Janeiro, seguindo-se à entrega do espólio da escritora pela família à Biblioteca Nacional de Portugal no dia 26. Trata-se dum acontecimento importante no nosso panorama cultural a que o CNC se associa com especial gosto e orgulho, destacando-se a recente publicação da «Obra Poética» de Sophia, organizada por Carlos Mendes de Sousa (Caminho, 2010), e a saída do último número da revista “Colóquio – Letras”, cujo lançamento ocorrerá no final da iniciativa.



Sophia, por Arpad Szènes



O ENCONTRO DO CLÁSSICO E DO MODERNO
Sophia é uma das grandes referências da poesia contemporânea e da cultura portuguesa do século XX. Clássica e moderna, encontra e prolonga Fernando Pessoa por um caminho próprio e diferente. E Eduardo Lourenço afirmou certeiramente que “desde os tempos de Pascoaes, a poesia portuguesa esforçava-se por conciliar Apolo e a sua mítica expressão solar da vida com Cristo, sombra sob tanto excesso de sol, deus morto para que a morte não fosse confundida com a vida digna desse nome. Se essa conciliação teve lugar em algum lugar foi na poesia de Sophia”. Nela sentimos a coexistência de Atenas e Jerusalém. Daí ter nascido “precocemente clássica”, talvez fora de uma modernidade, por definição em crise, mas ciente da importância dos novos caminhos em busca da dignidade do Ser. E assim, ainda segundo o ensaísta da “Heterodoxia”, Sophia chega a Nietzsche e à ligação dionisíaca, através de um “Cristo Cigano” – que não espera que o crucifiquem e que se oferece nu ao esplendor da vida que misericordiosamente o assassina – “mas a sua morte despe-o da sua aparência solar e esculpe-o em redentora agonia onde o rosto do Ausente se revela”. E sentimos na autora de “Mar Novo” a sede de justiça, que a leva a não fechar os olhos ao “espantoso sofrimento do mundo”. Francisco Sousa Tavares disse, assim, que Sophia “tinha sinais do seu Deus na confusão dos homens”. E ainda Eduardo Lourenço diagnosticou “uma espécie de milagre, de raro e quase incrível privilégio” que deve “ter preservado cedo a jovem Sophia, católica e portuguesa, daquela obsessão culpabilizante que encharca por dentro a lírica nacional”. Daí que “como Eurídice” desça ao inferno do sofrimento “para o exorcizar”. 


RECUSAR A FATALIDADE DO MAL
Sophia foi, como já dissemos noutras circunstâncias, com a sua escrita e o seu exemplo, uma referência forte que fica para além dos jogos de palavras e das circunstâncias. “Depois de tantos séculos de pecado burguês, a nossa época rejeita a herança do pecado organizado. Não aceitamos a fatalidade do mal. Como Antígona a poesia do nosso tempo não aprendeu a ceder aos desastres. Há um desejo de rigor e de verdade que é intrínseco à íntima estrutura do poema e que não pode aceitar uma ordem falsa” (Arte Poética III, 1964). Todos quantos se cruzaram com Sophia, são unânimes em reconhecer que a capacidade criadora e a sensibilidade artística excepcionais se aliaram sempre a uma inteligência política arguta. Os seus discursos políticos mostram-no. Os seus combates recusavam a ambiguidade. “No Centro Nacional de Cultura fiz de tudo” – confessa-nos. Então “discutia-se tudo: os sistemas políticos, os problemas sociais, os problemas religiosos, o Corbusier, a pintura moderna, o surrealismo, o Fernando Pessoa, a literatura portuguesa, a literatura brasileira, a literatura americana, a guerra de África. À discussão cada um trazia o que sabia e também o que era”. “Às vezes a polícia política (PIDE) aparecia: um dia fez uma busca à procura de uns papéis que não encontrou porque o Francisco os tinha escondido no frigorífico”. E, afinal, nada era fácil, uma vez que não passava despercebido que “em certas sessões surgiam homens cinzentos e calados, com a gabardina abotoada até ao queixo e um ar simultaneamente taciturno e comprometido: ‘poker faced’”. E lembramo-nos do “Mar Novo” de 1958: “Porque os outros se mascaram mas tu não / Porque os outros usam a virtude para comprar o que não tem perdão / Porque os outros têm medo mas tu não”. 


UM TEMPO DE DETERMINAÇÃO E INCERTEZA
Foi o tempo da Comissão Nacional de Apoio aos Presos Políticos (e temos na retina, em Abril de 1974, à saída da Prisão de Caxias, a imagem da sua presença inesquecível). Aquando do encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores (SPE), pela atribuição em 1965 do Prémio de novelística a Luandino Vieira, Sophia colocou o CNC, a que presidiu, ao serviço da causa da liberdade da cultura. Isto, além do apoio ao Manifesto dos 101, de 25 de Outubro de 1965, onde, sobre a questão colonial, um grupo de cristãos dizia sentir “imperiosamente a responsabilidade de afirmar que se a solução vier a ser um trágico extremismo radicalmente anti-português, ela terá sido a lógica consequência de um outro extremismo anterior, de ódio gerador de outros ódios”. Vemos, ouvimos e lemos – não podemos ignorar. Contra a ambiguidade, “sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem”. Foi deputada à Assembleia Constituinte pelo Partido Socialista, ao lado de Mário Soares, sendo marcante o discurso que fez sobre as liberdades de criação cultural e de aprender e ensinar. “A cultura não existe para enfeitar a vida, mas sim para a transformar – para que o homem possa construir e construir-se em consciência, em verdade e liberdade e em justiça. E, se o homem é capaz de criar a revolução é exactamente porque é capaz de criar a cultura” (Sessão de 2 de Setembro de 1975). A luta fundamental não deveria ser por uma “liberdade especializada”, mas pela liberdade do povo – liberdade de expressão e de cultura. E, a propósito, invocava o terrível grito pronunciado no paraninfo da Universidade de Salamanca perante Unamuno: “Morra a Inteligência!”, para que nunca mais fosse possível ouvi-lo. “Queremos um relação limpa e saudável entre a cultura e a política. Não queremos opressão cultural. Também não queremos dirigismo cultural. A política sempre que dirigir a cultura engana-se. Pois o dirigismo é uma forma de anti-cultura e toda a anti-cultura é reaccionária”.

O VALOR FUNDAMENTAL DA LIBERDADE
Premonitoriamente, Sophia deixava claro um sentido essencial para a interpretação da Lei Fundamental de 1976 – em que a liberdade é a pedra angular, contra unicidades e dogmatismos. Por isso, invectivava o “poder totalitário”, que persegue o intelectual e manipula a cultura. “Nenhuma forma de cultura se pode atribuir o direito de destruir ou menorizar outras formas de cultura”. Mas Sophia também falou da educação como objectivo essencial ligado à cultura. “Ensinar é pôr a cultura em comum e não apenas a cultura já catalogada e arrumada do passado, mas também a cultura em estado de criação e de busca”. E que deve ser a liberdade de aprender e ensinar senão a procura de “novas formas de ensino que possam procurar, ensaiar e inventar”, em nome de um “ensino livre onde nenhuma iniciativa seja desperdiçada”? E se Sophia acreditou na Educação e na Cultura, também acreditou em Portugal: “Portugal logo que se forma é um país cheio de energia, com grande vontade de avançar e que o faz para o desconhecido. A maior parte dos portugueses não tem noção do prodígio que foram os Descobrimentos (…) Os portugueses eram um pouco como os gregos: onde iam faziam como na sua terra, às vezes melhor. Havia nisso uma grandeza e uma generosidade”.


Guilherme d’Oliveira Martins

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