A VIDA DOS LIVROS
de 29 de Novembro a 5 de Dezembro de 2010
Celebram-se os oitenta anos de vida do autor da “Crónica dos Anos da Peste” (1973 e 1975). É com muito gosto que me associo à justa homenagem! Eugénio Lisboa é um ensaísta singularíssimo. Ao longo da sua vida tem sido um incansável estudioso do segundo modernismo português e da nossa cultura, com especial atenção para José Régio. Contudo, é um escritor multifacetado, com luz própria, com uma sensibilidade e uma argúcia dignas de referência especial. Com inteligência fina, tem sabido aliar a grande erudição à capacidade de compreender a realidade literária, cultural e social, distinguindo o que tem valor do que não tem. Percebe-se bem que Eugénio Lisboa apreende, com grande lucidez, os valores seguros, isto é, o que tem condições para ficar para além do sucesso efémero e passageiro. Há dias, falando de lusofonia, perguntavam-me sobre as grandes referências da literatura de Moçambique – e não tive dúvidas em referir, com Craveirinha e Mia Couto, o magistério fundamental de Eugénio Lisboa e de Rui Knopfli.
UMA VOZ INDEPENDENTE
Eugénio desde sempre afirmou-se como uma voz independente, não vulnerável a tendências ou modas. Sendo engenheiro de formação, soube ligar um sentido prático da vida à consideração da cultura como o modo mais sublime de dominar a natureza. Não há, pois, dois compartimentos na vida do intelectual – o engenheiro e o escritor completam-se naturalmente. Conheci-o em Londres e depressa percebi que nos iríamos dar muito bem, o que de facto tem acontecido. Temo-nos encontrado muitas vezes (desde a UNESCO às batalhas da cultura e da cidadania, passando pelos amigos comuns) e a empatia é natural, por convergência de valores e preocupações, de atitude e de obrigação crítica. Desconfio das torres de marfim, e Eugénio Lisboa também. As suas conferências, os seus ensaios, as suas críticas têm sempre algo de muito especial e próprio. Cada citação, cada referência corresponde à ênfase necessária e adequada de um sentido crítico. Nunca vi em Eugénio Lisboa uma concessão ao fácil, ao imediato ou à tendência do momento. E em momentos cruciais, usufruímos do seu acutilante sentido crítico, em termos que conduzem a que o tempo lhe dê razão, apesar das perplexidades imediatamente sentidas. No fundo, é um justo, que procura dizer o que pensa e o que sente, mesmo que não seja compreendido no curto prazo ou surpreenda pela rispidez da crítica. E o certo é que a sua fidelidade a José Régio e à “presença” tem correspondido a um equilíbrio sábio entre o reconhecimento da importância dessa plêiade e a capacidade para perceber quer fragilidades ou limitações quer a força inovadora e a perenidade desse grupo que tornou possível a projecção universal do “Orpheu” e de Fernando Pessoa. Hoje, é natural sentirmos que o primeiro modernismo português se afirmou por si, graças à genialidade do poeta dos heterónimos e à relevância dos seus companheiros, no entanto a qualidade dos animadores da “presença” permitiu a compreensão (e a projecção) da riqueza excepcional do grupo do “Orpheu”. Eugénio Lisboa entendeu-o bem – pondo a tónica na continuidade e na descontinuidade dos dois modernismos: continuidade no assumir da modernidade, descontinuidade na tensão entre os diferentes caminhos dos dois grupos.
UMA ATITUDE SERENA
A propósito da célebre consideração de Eduardo Lourenço sobre o alegado «contra-revolucionarismo» de Régio, Eugénio Lisboa fala de simplificação do ensaísta de “Labirinto da Saudade”, mas demarca-se de João Gaspar Simões na sua obsessão de desagravo, uma vez que para uma polémica ser interessante e rica é preciso que os argumentos sejam sólidos, em lugar de uma interpretação nominalista, mais baseada em supostas intenções do que na exigência crítica… Hoje sabemos que Eduardo Lourenço não quis dar um sentido político (em sentido lato) à sua apreciação, mas quis porventura salientar a diferença entre o carácter radicalmente inovador do “Orpheu” e um sentido de revisitação e de projecção da “presença”. A «contra-revolução» é nitidamente metafórica ou literária, sem o alcance pejorativo que Gaspar Simões considera. E Eugénio Lisboa entende-o com clareza, defendendo, assim, muito mais eficazmente José Régio. “Comparando o ‘Orpheu’ e a ‘presença’, (diz Eugénio Lisboa) poderíamos resumir o confronto numa fórmula talvez sumária mas com algo de verdadeiro: o primeiro modernismo foi um momento de convulsão e o segundo um momento de reflexão e consolidação” («José Régio ou a Confissão Relutante», s.d., 1988).
ORIGINALIDADE E SINCERIDADE
Eugénio Lisboa procura ser fiel (com inteligência e sem cedências quanto à independência crítica) a uma preocupação de Régio, bem patente no citadíssimo artigo de fundo do primeiro número da “presença” (“Literatura Viva”) – “pretendo aludir (…) a dois vícios que inferiorizam grande parte da nossa literatura contemporânea, roubando-lhe esse carácter de invenção, criação e descoberta que faz grande a arte moderna. São eles: a falta de originalidade e a falta de sinceridade”. Enquanto a originalidade tem a ver com “dizer aquilo que nós realmente pensamos”, a sinceridade é um corolário dessa atitude fundamental, em nome da coerência entre pensamento e arte. E manda a verdade que se diga que Eugénio Lisboa é um mestre da clareza, que nos ensina e ler e a dizer o que se pensa do que se leu, em vez de fazer exercícios de estilo («acrobacias neogongóricas ou sistemáticos estupros») para dissimular ou esconder – porque se não leu, ou porque não se compreendeu. E os dois vícios, contra os quais Eugénio Lisboa se tem erguido, são muito mais comuns do que se possa julgar. Por isso, a primeira lição do mestre, parte do que dizia Spitzer – a regra de ouro da análise crítica é “ler, ler e ler” – «ler com atenção despreconcebida. Ler aguardando, sem a malícia de um programa prévio» (in Pórtico de «As Vinte e Cinco Notas do Texto», INCM, 1987). E este entendimento é fundamental, uma vez que através de Eugénio Lisboa sabemos com o que contamos. Sabemos que é um leitor criterioso, que nos dá a sua perspectiva, exigindo que ao lermos sejamos fiéis a um sentido crítico pessoal e próprio. Percebe-se, pois, porque digo que não há dois Eugénios, há uma personalidade coerente e rigorosa, em que o engenheiro e o homem de cultura formam um só carácter. E sobre essa coerência oiçamo-lo ainda: “há hoje uma espécie de receio neurótico da clareza, que anda, penso eu, a pedir diagnóstico. Dizia Vauvenargues que a clareza é a boa fé dos filósofos, que é como quem diz: quem não deve não teme. Eu diria, com maior atrevimento, que o desejo da clareza é a pedra de toque da boa fé de quem quer que se exprima” (Ididem). E António Sérgio vem à baila, com a conhecida afirmação de pedagogo: “Não confundamos. Um eclipse do sol é uma escuridão; mas a teoria dos eclipses é uma doutrina clara”… Se o poeta pode ser obscuro, o crítico tem de ser claríssimo. E neste mês em que assinalamos os cem anos da morte de Tolstoi, podemos citar o escritor russo: “Não alcançamos a liberdade, buscando a liberdade, mas sim a verdade. A liberdade não é um fim, mas uma consequência”. O ofício de ler é a grande exigência de Eugénio Lisboa, que o tempo tem revelado como lição perene e necessária. E que melhor ensino podemos tirar de um mestre senão o culto das ideias claras e distintas? Muitos parabéns Querido Amigo!
Guilherme d’Oliveira Martins
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