A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

José Eduardo Agualusa acaba de publicar “Milagrário Pessoal” (D. Quixote, 2010) uma ilustração viva do diálogo da língua e das línguas e um apelo à criatividade e à ligação forte entre a linguagem e a vida: “Assim como nós criamos as línguas, também as línguas nos criam a nós. Mesmo que não o façamos de forma deliberada, todos tendemos a seleccionar palavras que utilizamos com maior frequência e esse uso forma-nos ou deforma-nos, no corpo e no espírito”. O livro é entusiasmante, arrasta-nos não apenas pelo enredo, mas também pela causa que ele pressupõe – a defesa da língua como pátria de várias pátrias e expressão de múltiplos sentimentos. O tema da busca de neologismos entrelaça-se com o do amor – e uma espécie de liberdade libertária procura a causa da língua como um tema de combate…

A VIDA DOS LIVROS
de 25 a 31 de Outubro de 2010


José Eduardo Agualusa acaba de publicar “Milagrário Pessoal” (D. Quixote, 2010) uma ilustração viva do diálogo da língua e das línguas e um apelo à criatividade e à ligação forte entre a linguagem e a vida: “Assim como nós criamos as línguas, também as línguas nos criam a nós. Mesmo que não o façamos de forma deliberada, todos tendemos a seleccionar palavras que utilizamos com maior frequência e esse uso forma-nos ou deforma-nos, no corpo e no espírito”. O livro é entusiasmante, arrasta-nos não apenas pelo enredo, mas também pela causa que ele pressupõe – a defesa da língua como pátria de várias pátrias e expressão de múltiplos sentimentos. O tema da busca de neologismos entrelaça-se com o do amor – e uma espécie de liberdade libertária procura a causa da língua como um tema de combate…



HETEROGENEIDADE DA LÍNGUA
A lusofonia é heterogénea, é multifacetada, é inesperada. Reúne povos diferentes e sensibilidades múltiplas pelo mundo repartidas. O que a caracteriza? Antes do mais, a própria diversidade, a leveza, a abertura, a complementaridade, o diálogo. Estamos perante uma língua de várias culturas, e em face de uma língua que anima várias línguas. Não há uma lusofonia, mas lusofonias. E quando lemos Sérgio Buarque de Holanda, nas suas inesquecíveis “Raízes do Brasil”, encontramos na «cordialidade» um tema lusófono por excelência. Como diz António Cândido: “o homem cordial é visceralmente inadequado às relações impessoais que decorrem da posição e da função do individuo, e não da sua marca pessoal e familiar, das afinidades nascidas na intimidade dos grupos primários” A cordialidade não é formal, não é conformista, refere-se a “expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante”. Georges Bernanos maravilhou-se com a invenção de um povo apostado numa vida decente, contra todas as dificuldades. A cordialidade lusófona é mais ampla e complexa do que a do Brasil, mas tem a mesma raiz. Como afirmou Mia Couto: “o português vai-se deslocando do espartilho da oficialidade para zonas mais íntimas”. Gilberto Freire estudou o luso-tropicalismo e universalizou-o. Fernando Henrique Cardoso reconheceu a intuição do autor de “Casa Grande e Senzala” e disse que o Brasil é culturalmente integrador e socialmente injusto, e Darcy Ribeiro reconheceu que Gilberto “de certa forma, fundou – ou, pelo menos, espelhou – o Brasil no plano cultural”. A lusofonia caracteriza-se pelas “sociedades sincréticas e harmónicas assentes na mestiçagem”. A convergência cultural supera as diferenças étnicas. E a ideia de comum pátria maior, que Vitorino Nemésio designava como “pan-lusismo”, alarga ainda mais essa convergência e essa síntese. E julgo que aqui o meu amigo Miguel Real compreenderá a minha preocupação de ler a cultura portuguesa à luz da não ruptura e da síntese. A lusofonia pressupõe uma dialéctica e uma convergência – a partir dos antagonismos da economia e da cultura – a cultura europeia em diálogo com as culturas indígenas, a presença africana, a relação tensa do bandeirante e do senhor de engenho, o pano de fundo da presença do senhor e do escravo.


O CASO ESPECIAL DE CABO VERDE
Nesta convergência, Cabo Verde é um caso especial (por isso me bati tanto pela classificação da Cidade Velha como património da humanidade), é uma placa giratória da lusofonia universal. Tal característica merece especial atenção. E a obra pioneira de Baltazar Lopes da Silva, cultor da língua portuguesa e porta-voz da especificidade cultural crioula, como factor de unidade e não de divisão, à frente da “Claridade” leva-nos a compreender o fenómeno. O paradoxo (ser uma língua de várias culturas) é expressão da diversidade e dos antagonismos, apelando a uma espécie de “distância unitiva”, de que falava Emmanuel Mounier, em nome da dignidade das pessoas. E em Cabo Verde, temos de invocar a «morabeza» (lida pausadamente, com destaque da tónica), sinónimo de afabilidade e gentileza ou de expansividade e trato fácil, associados a um sentido criador e culto (que o Padre Vieira bem notou na sua passagem pela Cidade Velha). E se referimos a cordialidade e a morabeza, não podemos deixar de recordar a “morrinha” galego-portuguesa, a nossa melancolia, que nos leva à saudade (de D.Duarte a Garrett, Rosalia de Castro, Pascoaes e Cesária Évora), a lembrança e o desejo, o mal de que se gosta e o bem de que se padece, sinal do paradoxo que corporizamos e da “maravilhosa imperfeição” de que fala Eduardo Lourenço. Mas António Tabucchi põe-nos de sobreaviso, ao recusar a lusofonia como uma invenção meta-histórica. Lusofonia é vida e diferença. De facto, num tempo de globalização, impõe-se dar-lhe um sinal não explicativo, não uniformizador, não paternalista, mas de diferença e de abertura. Daí que a literatura e a arte tenham um papel especial na afirmação e no desenvolvimento da lusofonia. Saídos do que podemos designar como a “década Saramago”, correspondente ao momento em que a língua portuguesa teve o primeiro Prémio Nobel da Literatura, é tempo de cuidar do património comum da lusofonia. É indispensável reforçar a dignidade e a projecção do Prémio Camões, que já distinguiu na sua vida as maiores referências da lusofonia literária. Mas a maior exigência é a do conhecimento mútuo, uma vez que, só assim, haverá compreensão. Recordemos de memória (esquecendo tantos): Pepetela e Ruy Duarte de Carvalho, Craveirinha e Mia Couto (mas também Rui Knopfli, Fernando Gil e Eugénio Lisboa), Vera Duarte e Germano de Almeida, António Baticã Ferreira, Alda do Espírito Santo e Albertino Bragança, Fernando Sylvan e Luís Cardoso…E na pátria irmã brasileira, a lista é interminável. António Cândido foi e é um incansável cicerone dessa geografia fantástica de um património imaterial que precisamos pôr em confronto na encruzilhada lusófona. Presisamos, no fundo, de nos conhecermos melhor portugueses e lusófonos.


MILAGRÁRIO COMO APELO MUITO SÉRIO
José Eduardo Agualusa deixa bem claro em “Milagrário Pessoal” que, assim como nós criamos as línguas, também as línguas nos criam a nós. E cita um conto ovimbundo, em que a linguagem ágil e harmoniosa que era a dos pássaros é roubada. E o lema de toda a obra pode resumir-se numa máxima gloriosa e «revolucionária» – «a língua é a nossa mátria». E uma das personagens, Fadário da Luz do Espírito Santo, um professor timorense, resistente da liberdade, fazia a sua luta a recitar sonetos de Camões – «Se quando vos perdi, minha esperança…». E a palavra esperança (lida pausadamente) ganhava uma força especial (em vez da «esprança» estropiada que usamos, esquecendo a pronúncia de Camões, pausada e com as vogais abertas). Caetano Veloso vem à memória: “Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões”. Que é a lusofonia senão esse diálogo universal centrado na cordialidade e na distância unitiva da dignidade pessoal? Amin Maalouf faz-se ouvir – “quanto mais identidades partilhamos mais singulares nos tornamos”.


NOTA
Aníbal Pinto de Castro, um cultor requintado da língua e da literatura, deixou-nos há dias. Conheci-o bem e contei com a sua amizade, com o seu saber e com a sua ironia. E tantas vezes falámos da dimensão imaginária do tempo, em diálogo com os clássicos que amava. Quando soube da notícia da morte e recordei-o pelo muito que nos legou, em especial sobre o Padre António Vieira e sobre Camilo Castelo Branco – supremos artífices da língua como a realidade mais viva que a cultura tem. É em sua memória que alinho as reflexões que se seguem.


Guilherme d’Oliveira Martins


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