A VIDA DOS LIVROS
De 30 de Agosto a 5 de Setembro de 2010
George Steiner numa obra fascinante – «Os Livros que Não Escrevi» (Gradiva, 2008) – trata a questão das Humanidades, a propósito das reformas do ensino (secundário e superior), e percebemos que a única maneira de defender, coerente e eficazmente, essa causa nos dias de hoje obriga a ir muito para além dos lugares comuns tão repetidos, que nos levam amiúde a saudosismos inúteis que nada têm a ver com um pensamento sério sobre o combate à ignorância e à mediocridade.
DE NOVO O TEMA DAS HUMANIDADES. – Volto ao tema das Humanidades. Tratei-o a propósito do último livro de Vítor Aguiar e Silva, mas não resisto a continuar a partilhar algumas preocupações que me foram suscitadas por João Filipe Queiró, um matemático moderno e experimentado, preocupado com a necessidade de adoptar uma visão aberta e multipolar das Humanidades, desde a literatura à geometria e à música, passando pelas ciências da vida. Se a literatura tem um papel importante, a verdade é que a valorização das Humanidades ultrapassa em muito o campo literário. Daí que a numeracia e a matemática tenham um papel fundamental. Não disse um dia Leibniz, com uma circunspecção muito especial: «quando canta para Si próprio Deus canta álgebra…»? Naturalmente que na perspectiva das Humanidades, encaradas como uma procura, incessante, universalista e abrangente, de tudo aquilo que tem a ver com o que é humano, temos de deixar a tentação de ver a realidade com olhos de ontem. Vejam-se as novas formas de expressão artística, considere-se a importância incontestável do diálogo entre as letras, as artes e o pensamento, entre o património histórico e a criação contemporânea, pondere-se a necessidade de estabelecermos um intercâmbio efectivo entre a cultura e a ciência. Temos de entender o que se passa à nossa volta, bem como saber olhar para diante. E essa preocupação tanto nos leva a reencontrar Homero, Platão e Aristóteles, como nos proporciona o retorno da tragédia ou o reencontro com poetas e filósofos, com artistas e pensadores. Os clássicos tornam-se, afinal, cúmplices dos nossos anseios e desígnios.
HUMANIDADES E APRENDIZAGEM. – Oiçamos George Steiner no ensaio «Condições Escolares», que é o que agora mais nos importa: «à medida que a nossa civilização passa a evoluir à deriva, a literacia torna-se incerta. Como o chamado ‘pós-modernismo’ proclama, vale tudo. O que não significa que deixaremos de produzir e ler livros, alguns dos quais estimáveis, de visitar museus ou de construir salas de concertos. Continuaremos a fazer tudo isso. As audiências talvez cresçam. É muito o que se pode ler na Internet, ou admirar em reprodução holográfica…». No entanto, segundo o que nos é dado ver, a concorrência faz-se, em condições absurdas e viciadas, entre a qualidade e a fancaria. “Mandarins e artistas cada vez mais esporádicos multiplicarão esforços visando conquistar o estrelato no âmbito dos meios de comunicação de massa». Por isso, o professor de Literatura Comparada fala sobre a necessidade de reintroduzir critérios de exigência que permitam a consagração de uma ordem de mérito que distinga «a excelência autêntica das formas de parasitismo que hoje proliferam como cogumelos». Para tanto, importa entender que o conhecimento e a compreensão têm de se adequar às modernas exigências do mundo. Se a aprendizagem é a base fundamental do desenvolvimento, importa inserir as Humanidades no que Dante designava como os «movimentos do espírito», a começar na música, na poesia e na metafísica, mas a prosseguir em toda a parte em que o espírito sopra. Daí a recordação do teorema de Gödel, segundo o qual o espírito terá sempre a última palavra, uma vez que “qualquer sistema formal coerente comporta proposições indecidíveis». Temos de perceber que num mundo em que a ciência e a técnica ganharam importância crescente, a verdade é que só elas são insusceptíveis de dar respostas aos momentosos problemas da actualidade e de arrumar ideias. Por isso, Steiner – respondendo à pergunta sacramental «O que Fazer?» – advoga um programa que inclua as matemáticas, a música, a arquitectura e as ciências da vida. Urge, deste modo, superar o eclipse do cálculo com que nos confrontamos, entender que as línguas da música (também) não requerem tradutores, e afirmar que as ciências da vida são um tema demasiado sério para ser deixado apenas aos cientistas. Perante os problemas novos da demografia, da genética, da biologia e da medicina, impõe-se, afinal, uma maior e melhor literacia biológica e genética… Por que razão invocamos esta preocupação de Steiner? Exactamente para insistir na tónica de que as Humanidades não se defendem isoladamente, mas sim em ligação com o mundo da vida e com os «movimentos do espírito». Assim, as matemáticas, a música, a arquitectura e as ciências da vida «abrem a sensibilidade tanto aos desafios mais imediatos como aos horizontes mais amplos do pensamento», além de comportarem uma carga potencial de divertimento, jogo e prazer estético. Estamos perante uma pedagogia da esperança, centrada na cultura humanista e na procura do equilíbrio vital entre as “duas culturas”, de que nos falava C.P. Snow. Etimologicamente a palavra escola provém do grego «scholé», que significa lugar do ócio, o tempo necessário para o desenvolvimento da reflexão e da capacidade de pensar. E assim encontramos o «homo cogens» e o «homo ludens», capazes de discernir o espírito nas matemáticas, o humor na música, o jogo na arquitectura e a beleza das estruturas moleculares, sabendo aliar o prazer e a exigência, já que só o prazer pode fortalecer a exigência e só a exigência pode tornar o prazer efectivo.
CONTRA A TENTAÇÃO DA FACILIDADE. – Mas o autor de «Os Livros que Não Escrevi» não cede à tentação da facilidade e do optimismo: «a esperança de salvaguardar ou ressuscitar a literacia humanística nestes ou naqueles moldes tradicionais parece-me ilusória. Essa literacia, esse reino do clássico, pertence a uma elite». A democratização do ensino e da sociedade política é incompatível com a lógica dos círculos estritos baseados no privilégio, que no «Ancien Regime» pareciam naturais. De facto, a receptividade da alta cultura está longe de ser «natural ou universal»… Por isso, a valorização das Humanidades é uma questão de sobrevivência social e cultural, uma vez que sem memória a sociedade mata-se. A preocupação fundamental de George Steiner tem a ver com a ausência de coragem política capaz de combater e contrariar o desprezo generalizado pela vida intelectual e a desconfiança perante o reconhecimento do valor, «suscitados pelo regime do consumo da massa do capitalismo tardio». A vida intelectual e o reconhecimento do valor apontam para que haja certas coisas que são melhores do que outras, devendo diferenciar-se o mérito e as várias aptidões de cada um. E é neste ponto que a importância das Humanidades tem de ser valorizada.
UMA CITAÇÃO. – «A necessidade de transmitir conhecimento e competências, o desejo de os adquirir são constantes da natureza humana. Mestres e discípulos, ensino e aprendizagem deverão continuar a existir enquanto existirem sociedades. A vida tal como a conhecemos não poderia passar sem eles. Contudo, há mudanças importantes em curso. A computação, a teoria da informação e o acesso à mesma, a ubiquidade da Internet e da rede global envolvem muito mais do que uma revolução tecnológica. Implicam transformações de consciência, de hábitos de percepção e de expressão. O impacto sobre o processo de aprendizagem é já capital. [Contudo] a aura carismática do professor inspirado, o romance da persona no acto pedagógico perdurarão certamente a sede de conhecimento, a necessidade profunda de compreender, estão inscritas no melhor dos homens e das mulheres. Tal como a vocação do professor. Não há ofício mais privilegiado. Despertar noutro ser humano poderes e sonhos além dos seus; induzir nos outros um amor por aquilo que amamos; fazer do seu presente interior o seu futuro: eis uma tripla aventura como nenhuma outra» (in «As Lições dos Mestres»).
Guilherme d’Oliveira Martins