A VIDA DOS LIVROS
de 9 a 15 de Agosto de 2010
“O Outro” de Ryszard Kapuscinski (Campo das Letras, 2009) é uma obra fundamental para a compreensão da diversidade contemporânea, tendo sido escrita a partir da riquíssima experiência deste jornalista célebre com missões de elevado risco nos lugares mais perigosos do planeta. Trata-se de um pequeno livro escrito com muito talento, cuja leitura é indispensável nos tempos actuais, pela qualidade da escrita, pela argúcia dos argumentos e pela profundidade das reflexões filosóficas e antropológicas.
UM PRESTIGIADO JORNALISTA
Ryszard Kapuscinski (1932-2007) foi um prestigiado jornalista polaco, que exerceu difíceis tarefas, enquanto repórter, desde 1955, tendo sido enviado como correspondente para a Ásia e para o Médio Oriente e posteriormente para África e para a América Latina. Presenciou 27 revoluções, esteve em doze frentes de guerra e foi condenado à morte por fuzilamento quatro vezes. Foi justamente considerado um dos mestres do jornalismo moderno, com muitos prémios internacionais, tendo sido eleito em 1999 o melhor jornalista polaco do século XX. Nesta obra reúnem-se seis conferências sobre o tema do respeito do Outro – sendo de destacar três lições vienenses proferidas no Institut für die Wissenschaffen von Menschen e o discurso proferido na cerimónia de atribuição do doutoramento “honoris causa” pela Universidade Jaguelónica de Cracóvia. O jornalista e pensador distingue quatro períodos, que correspondem a concepções que foram evoluindo quanto às relações entre os Europeus e os Outros: (a) em primeiro lugar, a época dos mercadores e mensageiros, quando os viajantes entram em contacto com outros povos, nas principais rotas comerciais conhecidas, até ao século XV; (b) depois, o período dos chamados Descobrimentos – que corresponde à era das conquistas, que se seguiram ao multifacetado conhecimento de novas paragens; (c) segue-se a época do Iluminismo e do Humanismo, caracterizada pelo estabelecimento de novas relações, envolvendo a abertura de novos horizontes comerciais e de novas perspectivas para a razão e para os valores culturais e espirituais; (d) por fim, Kapuscinski fala-nos da época contemporânea, caracterizada pelas rupturas dos antropólogos, de Lévinas e da multiculturalidade. A pouco e pouco, ao longo do tempo, vai-se dar razão ao que Bronislaw Malinowski considerava fundamental na mentalidade moderna – as pesquisas seriam condição “sine qua non” para o conhecimento dos outros: não bastaria visitá-los, seria preciso ir viver com eles e no meio deles. Só assim os outros deixariam de ser estranhos para passar a ser compreensíveis.
OS PERIGOS DA INDIFERENÇA PERANTE O OUTRO
Para Kapuscinski seria preciso entender que Emmanuel Lévinas nos põe de sobreaviso perante os perigos da indiferença em face do Outro – indiferença, “que, em certas circunstâncias, pode levar a Auschwitz”. Segundo o filósofo francês: “não só é preciso encontrar o Outro, como hás-de recebê-lo em franco convívio. Hás-de responsabilizar-te por ele. A filosofia de Lévinas delimita o indivíduo (precisa Kapuscinski), personaliza-o, mostrando que, além de mim, há ainda mais alguém e que, se eu não fizer o esforço de estar atento; se eu não demonstrar vontade do encontro, acabaremos por nos desencontrar e ser indiferentes, frios, insensíveis sem expressão nem alma”. E assim são salientados na reflexão de Emmanuel Lévinas dois temas cruciais, que nos permitem aprofundar a importância do Outro: “o homem quando está sozinho, costuma ser mais ‘humano’ do que quando está no meio duma massa excitada”. Neste ponto, o analista coincide com as considerações de Ortega y Gasset e de Elias Canetti relativamente à rebelião das massas e à relação entre massa e poder. Ao procurar o caminho do Outro, Lévinas quer, deste modo, livrar-nos do jugo do egoísmo e da indiferença, amparando-nos contra a tentação da separação, do isolamento e da auto-exclusão. “Mostra-nos outra dimensão do nosso Eu, evidenciando, nomeadamente que ninguém é um entidade solitária, porque dentro de cada ser está também o Outro; assim cria um novo género de pessoa, um novo ente”.
FILOSOFIA DO DIÁLOGO
Ao defender a importância da relação com o Outro, o pensador Józef Tischner (1931-2000), primeiro capelão do Sindicato Solidariedade, cultivou o que designou como filosofia do Outro ou do diálogo: “o grande mérito desta filosofia está no facto de se pronunciar sobre o homem individual, sendo cada um, por si só, já um valor, repetindo, sistematicamente o seu direito à existência e à interacção. Aquela voz nítida e poderosa, que levanta problemas tais como identidade, percepção e respeito pelo Outro, tem um valor incalculável no nosso ruído pós-moderno, na nossa confusão de linguagens”. Tischner pretende, pois, fazer-nos entender a existência pessoal e a presença próxima do Outro. O espírito de responsabilidade pelo Outro opõe-se, desta forma, às tentações da indiferença, do imediatismo, do efémero e do primado do mero consumo. Não basta falar, assim, do Outro, é preciso dispormo-nos a encontrá-lo. “Qual é, afinal, o principal teor do encontro? É o diálogo. Se o homem é o ser que fala, na acepção de Lévinas, tem de haver respeito, diálogo e encontro. O diálogo tem em fim a compreensão mútua, que leva à aproximação. E a compreensão assim como a aproximação tornam-se possíveis através do conhecimento. Jacek Wosniakowski, outro polaco de excepção, dedicado à história da Arte, insistia especialmente neste ponto, haveria que compreender conhecendo, não bastando a mera transmissão de saberes. A atitude dialógica exige sempre a troca. O encontro leva à conversa, e esta pressupõe que nos disponhamos a pôr-nos na posição do Outro. Em vez da indiferença que marcou civilizações inteiras na relação com a diferença, somos chamados a colocar-nos do lugar do Outro, já que o Outro é a outra metade de nós mesmos e nós somos sempre o Outro dos outros. Ruben A. falava, por isso, em “O Outro que era Eu” – numa alegoria muito fecunda a essa necessidade de entender o Eu e o Outro como verso e reverso duma mesma realidade, apesar de haver uma tensão indiscutível entre o que distingue e o que identifica, entre o que nos caracteriza na relação com tudo aquilo com quem vivemos em relação, nada nos podendo ser estranho ou indiferente. Fica-nos, todavia, a necessidade de entender o estranho paradoxo que faz coexistir duas tendências antagónicas – para a personalização e para a massificação. Estamos perante um “paradoxo”. Por um lado, “cresce a globalização dos media, mas, ao mesmo tempo, aumenta a superficialidade, a falta de coesão e o caos. Quanto maior o contacto com os media, maior é a solidão e o desnorteamento”. Não podemos aqui esquecer Marshall McLuhan e a sua ideia de “aldeia global”. E o certo é que a expressão tornou-se equívoca e perigosa, uma vez que se na aldeia há a proximidade, porque todos se conhecem, convivem e partilham a respectiva sorte, isso não se aplica à sociedade planetária, “que se assemelha mais a uma multidão anónima”, uma “multidão de pessoas a correr, indiferentes e desconhecidas”. Não basta falar, pois, de “aldeia global”, é necessário estarmos atentos aos ensinamentos de Tischner sobre a incindível relação de encontro e de diálogo entre Eu e o Outro.
AS CAUSAS DA HOSPITALIDADE
Cyprian Norwid escreveu, ao prefaciar a “Odisseia”, que era indispensável verificar quais as causas da hospitalidade que Ulisses foi encontrando, na sua viagem de regresso a Ítaca: “Ali, diz o autor do ‘Promethidion’, quando aparecia qualquer mendigo ou vagabundo forasteiro, investigavam primeiro se não era Deus. (…) Não se podia perguntar o nome sem dar hospedagem primeiro; mas depois de se ter respeitado a sua divindade, descia-se às perguntas humanas; a isto se chamava hospitalidade, uma das práticas e virtudes piedosas. Entre os gregos de Homero não havia um ‘homem último’; havia sempre primeiro o divino”. Assim se compreende que devamos procurar um diálogo concordante com o Outro. Afinal, só a afabilidade pode despertar um sentido de humanidade, capaz de unir os mortos aos vivos e os vivos aos que ainda não nasceram.
Guilherme d’Oliveira Martins