A VIDA DOS LIVROS
de 31 de Maio a 6 de Junho de 2010
“O Chiado Pitoresco e Elegante” de Mário Costa (2ª edição, 1987) é um repositório de memórias despretensiosas sobre um lugar fundamental para a compreensão da cidade de Lisboa. Aqui foi o limite da cidade quando se fez a muralha fernandina, aqui foi estabelecido o culto aos Mártires de Lisboa desde a reconquista, aqui eram as Portas de Santa Catarina… E nos dois últimos séculos aqui se passou tudo o que de mais relevante teve a história de Lisboa – de Eça de Queiroz a Almada Negreiros, aqui a criatividade e a inovação campearam…
CENTRO DE GRAVIDADE
Lisboa tem como centro de gravidade o Chiado. Não é, porém, apenas uma placa giratória, é uma referência de vários tempos e de diversas gerações. Naturalmente que a Lisboa pombalina é uma marca indelével, contudo, só se compreende a personalidade citadina através do Chiado e da sua História. Gustavo de Matos Sequeira disse, por isso: “o Chiado é um símbolo em Lisboa; é um corpo doutrinário de princípios alfacinhas, é a síntese romântica do século XIX, como foi a síntese do gongorismo político de 1600. É sua excelência – o Chiado”. E Luís de Oliveira Guimarães, que ainda conheci como um intérprete singularíssimo, que se confundia com o próprio Chiado, afirmou: “Pode S. Bento ter-se convertido no símbolo da Política; o Terreiro do Paço no símbolo da Burocracia; a Rua das Capelistas no símbolo da Finança; o Chiado alcançou o privilégio de os superar a todos, porque se converteu no símbolo do Bom-Tom. Passando a pontificar na Literatura e na moda, consequentemente os homens de letras passaram a escrever para o Chiado, os janotas a apurar-se para o Chiado, as Senhoras a vestir-se para o Chiado”. Razão tem José-Augusto França ao dizer que a capital de Lisboa é o Chiado! Assim o Chiado tornou-se, ao longo do tempo uma verdadeira “instituição nacional”. E a quem se deve a designação do Chiado? Talvez a António Ribeiro Chiado, o poeta que por aqui viveu no século XVI ou talvez a Gaspar Dias, o Chiado, possuidor de uma venda de comes e bebes próximo da esquina da Rua do Carmo com a actual Rua Garrett. Mas não importa saber quem foi verdadeiramente o Chiado, o que interessa é dizer com Eça de Queiroz: “o que um pequeno número de jornalistas, de políticos, de banqueiros, de mundanos decidir no Chiado que Portugal seja – e que Portugal é”. Talvez não seja já exactamente assim. Mas a verdade é que, depois do tremendo incêndio de 1988, Lisboa e o País ficaram órfãos do Chiado – e se, num primeiro momento, se suspeitou que a instituição nacional poderia ter sido ferida de morte, a verdade é que a ressurreição foi possível, com inteligência e muito esforço. O Chiado esteve condenado. Deixou de ser o lugar mágico de que não se poderia prescindir.
MALES QUE PODEM VIR POR BEM
Mas há males que vêm por bem, e a reconstituição levou gradualmente (com uma lentidão por vezes exasperante) a que a vida retornasse ao Chiado. Álvaro Siza Vieira reforçou a personalidade antiga. E o novo Chiado não fez esquecer o antigo, antes o recorda e reforça. Mas teve de haver uma âncora inovadora a trazer de volta as pessoas ao Chiado – e que melhor do que a literatura para fazê-lo? Foram os livros, os discos, a informática da FNAC que fizeram a diferença e que atraíram, pela novidade, novos públicos ao Chiado, para fazer reviver a velha glória, que renascia jovem e sofisticada, moderna e atraente. A vida começou a regressar ao Chiado, atraindo aqueles que começam a ficar cansados da sensaboria dos centros comerciais, em que o ar condicionado nunca poderá substituir o contacto directo com os elementos da cidade. Mas o comércio renascido não foi o tradicional, o que conhecíamos antes. Desde o incêndio até ao renascer já tinha passado uma geração. E uma geração nova exige novidade. Obriga a coisas novas, de sabor cosmopolita, com lojas, galerias de arte, música, museus, teatro, tertúlias, clubes, cafés literários – numa palavra, tudo o que pudesse fazer regressar à vida uma instituição nacional. De facto, a História só faz sentido e merece ser recordada se se traduzir nos dias de hoje em algo sentido e vivido. Se o café de agora não tiver qualidade, de nada valerá lembrarmo-nos do cheiro dos cafés antigos se hoje não forem mais do que memórias remotas ou sombrias reminiscências de uma decadência que nos desgosta. A Livraria Bertrand, a antiga, a Brasileira do Chiado, a Casa Pereira da Conceição recuperaram o brilho antigo porque renasceram no ambiente actual, beneficiando de tudo o que era novo, e de todos os que ou morreram ou não puderam regressar ao eterno Chiado. Podemos, assim, fechar os olhos e lembrar-nos do Chiado antigo (do elevador do Ramiro Leão, do José Alexandre, da antiga Ática, do Jerónimo Martins), certos de que o lugar moderno que nos é dado ver quando regressamos ao presente nos é acolhedor, à luz de critérios actuais. Lembramo-nos do velho Gualdino Gomes a pedir ao empregado da Brasileira um bolo fresco com um café, e a insistir na pergunta sobre se estava mesmo fresco. O criado respondeu: “Acabou mesmo de chegar!”. Ao que o crítico disparou irónico: “Ora essa, eu sou muito velho e também acabo de chegar…”. Gualdino tinha razão. Para ser fresco no Chiado não basta acabar de chegar, é fundamental chegar como se fosse a primeira vez, como ensinou Almada Negreiros, primeiro dos heróis do Chiado moderno. “Chegar a cada instante pela primeira vez” – Almada escreveu-o à mão para Maria Germana Tânger, e aprendi de cor esse ensinamento lendo-o e relendo-o na sala do Largo de S. Carlos, em casa da mestra da arte de dizer, no centro do Chiado. Mas afinal os monumentos históricos só fazem sentido se não se arruinarem na decadência e no esquecimento. O antigo Café Marrare do Polimento é ainda lembrado porque o Chiado vive. Pinto de Carvalho (Tinop) chamou-lhe “o mais notável pasmatório do Chiado, o primeiro palratório da velha Olisipo”… Aí se encontravam Passos Manuel, Herculano e José Estêvão. Mas depois veio o Grémio Literário e o seu sucesso, criado em oposição ao Cabralismo. E há quem atribua o fim do Marrare à voga do Grémio. O certo, porém, é que se instalava a moda dos clubes, à inglesa, antecâmara política dos partidos e dos arranjos governamentais. Alexandre Herculano lançou da Ajuda para o Chiado as bases da Regeneração e do rotativismo – como forma de representar o País real, que estivera de armas na mão em guerra civil. Mas havia ainda o Turf e o Tauromáquico, lugares de encontro de gente endinheirada. E no século XX, António Ferro criaria o Círculo Eça de Queiroz, marca de uma outra época mas do espírito do Chiado – retratado por Bernardo Marques, com o traço inconfundível, que misturava pessoas com fantasmas e fantasmas com fantasmas, desde os frequentadores reais do Chiado aos imaginários e inconfundíveis heróis da narrativa queiroziana. Fradique Mendes abanca em qualquer das mesas do Chiado, e faz daí mote e glosa para longas cavaqueiras.
TANTAS RECORDAÇÕES
Lá está a Casa Havaneza, onde se compravam os melhores puros e o tabaco mais requintado de Lisboa. Era o Club des Bavards da Princesa Rattazi ou apenas uma Academia da Má-Língua. Eça imortalizou a Havaneza, lugar de encontro obrigatório de quem se prezasse. “O Chiado, muito claro, estava na sua hora viva, e Artur (em “A Capital!”) direito no assento, ia devorando com os olhos os lugares que amava: a Casa Havaneza, a janela do seu quarto, lá em cima no Universal – que ferro ir-se! – e o Baltresqui, com os ‘lunchs’ às duas horas, e o Godefroy, onde comprava frasquinhos de feno para a Concha!”. E como não lembrar o tímido Cesário – acusando de troca-tintas quem lhe chamou Azul… No abaixo acima do Chiado há, já o dissemos, a Bertrand, onde trabalhou José Fontana, amigo íntimo de Antero. António José Saraiva colocou, aliás, esses dois amigos no centro da magnífica “Tertúlia Ocidental”. E havia o Jerónimo Martins, casa que comercializava os azeites de Herculano, que vinha a Lisboa fazer contas dos livros na Bertrand e dos produtos agrícolas na Mercearia Fina. E, falando da Bertrand, temos um ror de figuras, desde Aquilino, Raul Brandão, Raul Proença, Teixeira de Pascoaes, Anrónio Sérgio, Carlos Malheiro Dias, Afonso Lopes Vieira, Reinaldo dos Santos, Abel Manta, Manuel Mendes, Vitorino Nemésio e tantos, tantos outros. Na Brasileira, onde iam tantos frequentadores da Bertrand, pontificavam os artistas. Aí poderemos lembrar Jorge Barradas, António Soares, Eduardo Viana, José Pacheko, Almada Negreiros, Bernardo Marques, Ofélia Marques e Stuart de Carvalhais. O grupo do Orpheu aqui teve um dos seus pontos de irradiação. Hoje, Lagoa Henriques imortalizou essa geração, sentando a uma das mesas Fernando Pessoa, ele mesmo. Imaginariamente, estão em espírito, sentados com ele Almada, Sá Carneiro, Luís Montalvor, José Pacheko e António Ferro. Se entre o Hotel Braganza e o Tavares Rico se moviam os Vencidos da Vida, entre a Brasileira, o Teatro S. Luís e o Chiado Terrasse estavam os modernistas – escandalizado e abalando os fundamentos frágeis da sociedade lisboeta. É o Chiado eterno que se move, cheio de celebridades antigas. Já quase se perdeu a lembrança da Muralha Fernandina, das Portas de Santa Catarina, do Neptuno e do tritão (que agora foi lá para os lados da Estefânia), das grandes festividades que rodearam a inauguração da estátua de Camões, do escândalo causado pela estátua de Eça de Queiroz – sob o manto diáfano da fantasia, a nudez crua da verdade… Mas recordamos a despedida desesperada de Luísa, à porta da Basílica dos Mártires, com o Conselheiro Acácio incapaz de compreender o embaraço da protagonista de “O Primo Basílio”. O Chiado é um mundo. Continua a ser um mundo. Sophia de Mello Breyner, Francisco Sousa Tavares, Fernando Amado, ainda Almada Negreiros (sempre ele), António Alçada Baptista, Helena Vaz da Silva – ainda pontificam no Centro Nacional de Cultura. As memórias mais antigas misturam-se com as mais modernas. Chiado, crónica de uma queda e de um renascimento. É o que podemos dizer agora, por entre mil recordações…
Guilherme d’Oliveira Martins
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