A VIDA DOS LIVROS
De 21 a 27 de Janeiro de 2008.
Não é possível fazer a história do pensamento do século XX sem referir e compreender a obra de Simone de Beauvoir (1908-1986), e em especial o seu livro emblemático “Le Deuxième Sexe”, publicado em 1949 pela Gallimard. Por ocasião do centenário de Beauvoir muito tem sido dito sobre a influência da escritora no seu tempo, mas importa realçar que, apesar de muitas incompreensões, perfeitamente naturais pelo carácter percursor e de ruptura de muitas das suas posições, há uma herança que deu frutos e que se relaciona com o destaque dado ao papel da mulher na sociedade contemporânea. E o certo é que essa influência e esse reconhecimento merecem reflexão serena, na distância do tempo, já fora dos efeitos imediatos…
AGITAR AS ÁGUAS
Quando falamos de Beauvoir vem à memória uma citação sacramental: «On ne naît pas femme : on le devient… C’est l’ensemble de la civilisation qui élabore ce produit intermédiaire entre le mâle et le castrat qu’on qualifie de féminin». É em torno deste tema que a sua obra mais conhecida se desenvolve, e é em resultado desta afirmação que a escritora lançou uma profunda revolução nos costumes e na vida quotidiana, pondo em xeque o predomínio do homem e a subalternidade substantiva da mulher. Abriu-se, assim, campo ao conceito de género. A ideia de sexo é natural e a de género socialmente construída. Se é certo que o ensaio de 1949 foi recebido com escândalo, a verdade é que hoje, ainda que muito ainda esteja por compreender, já pode fazer-se uma leitura serena do que aí está escrito. A mulher passou a ter um papel mais importante e as questões da igualdade de género ganharam um significado de consequências ainda dificilmente previsíveis em todas as suas consequências. Dir-se-á, no entanto, que a obra de Beauvoir está imbuída do “espírito do tempo” e da ilusão relativa aos “amanhãs que cantam”. É certo. Mas quase sessenta anos depois, podemos ver que a sociedade em que vivemos, se não resolveu o problema, compreende melhor a complementaridade necessária entre igualdade e diferença entre mulheres e homens. As pistas abertas pela pensadora ultrapassaram, assim, em muito as considerações e as ilusões de circunstância do imediato pós-guerra. «Les femmes d’aujourd’hui sont en train de détrôner le mythe de la féminité ; elles commencent à affirmer concrètement leur indépendance ; mais ce n’est pas sans peine qu’elles réussissent à vivre intégralement de leur condition d’être humain ». A liberdade e a emancipação da mulher, para serem alcançadas, exigiram (e exigem) um caminho cheio de dificuldades e de resistências, uma vez que a independência estava muito longe de se concretizar. Prevaleciam os constrangimentos sociais e económicos e as mentalidades. O que era permitido ao homem era intolerável para uma mulher. E não era fácil afirmar, com todas as suas consequências, como fez Emmanuel Mounier, que a mulher também é pessoa. No fundo, se em abstracto a afirmação podia ser feita formalmente sem dificuldades, a verdade é que quase tudo na prática contrariava essa igual dignidade.
COMBATER O ABSURDO
Com a dureza própria de quem desejava chocar, para tornar mais evidente o absurdo que criticava, Simone diz : « La femme n’est victime d’aucune mystérieuse fatalité : il ne faut pas conclure que ses ovaires la condamnent à vivre éternellement à genoux ». E era contra essa fatalidade que a escritora contrapunha a capacidade de assumir, com todas as consequências, a liberdade da diferença. É evidente que hoje, ao lermos a obra da ensaísta (ou ao estudar a sua vida), verificamos que muito do que afirma perdeu actualidade no tocante à alienação, aos nascimentos não desejados, à dor nos partos, à perda da feminilidade na menopausa. No entanto, a verdade é que foi graças à sua denúncia e à sua persistência que se tornou possível ultrapassar um estado de coisas inaceitável, de hipocrisia e de conformismo. «S’il n’y a plus aujourd’hui de féminité, c’est qu’il n’y en a jamais eu». Simone de Beauvoir representa, afinal, o tempo em que viveu, com todas as suas contradições e com a necessidade de superar constrangimentos e falsidades, e soube assumi-lo, vinda de uma família tradicional, fazendo o percurso do conformismo para o inconformismo, entendendo bem a importância de viver a condição da liberdade. E não podemos esquecer que para a mulher essa condição de liberdade e de igualdade careceria então, mais do que nunca, de uma afirmação plena e madura, para além da expressão chocante da subalternidade. Se houve nos últimos anos uma mudança radical de atitudes no mundo contemporâneo, ela tem a ver com a importância do papel das mulheres e com a melhor compreensão da importância do lado feminino da humanidade. «C’est par le travail que la femme a en grande partie franchi la distance qui la séparait du mâle ; c’est le travail qui peut seul lui garantir une liberté concrète». Alain Touraine lembrava, há poucos dias, que essa é a grande diferença do nosso tempo. De facto, a emergência da mulher e do feminino, permite compreender melhor o mundo e a vida, assumir melhor as responsabilidades sociais e encarar de modo diferente (ainda que haja um longo caminho a percorrer) a vida política, a liberdade e a igualdade… E tem sido pelo trabalho, pela maturidade, pela responsabilidade e pela qualidade que a mulher tem assumido o lugar de que estava arredada.
COMPLEMENTARIDADE E FRATERNIDADE
«Il est nécessaire que, par-delà leurs différenciations naturelles, hommes et femmes, affirment sans équivoque leur fraternité». De modo claríssimo, Simone de Beauvoir precisou que era indispensável fazer da complementaridade, assente na igualdade, um factor activo de respeito e de criatividade. Trata-se de assumir, com consequência, a universalidade da igualdade em dignidade e direitos relativamente à mulher. E, se virmos bem, foi o combate pelo respeito mútuo o que, com mais persistência, Beauvoir empreendeu, por entre mil escândalos e incompreensões, mas sempre contra o primado da falsidade que distinguia os julgamentos sociais e morais. Elisabeth Badinter afirmou que “na época, as questões de definição identitária ou de género não se colocavam. O mais urgente não era saber o que era a identidade feminina, nem em que esta se distinguia da identidade masculina, problema do qual hoje ainda não saímos, mas explicar às mulheres que elas não estavam obrigadas a nada daquilo que se dizia defini-las enquanto tais”. E esse o tema que se mantém actual.
UM CENTENÁRIO QUE NÃO ESQUECE
Simone de Beauvoir foi feminista, mas a sua importância vai muito para além desse facto. Basta ler as suas obras mais marcantes – “Memoires d’une jeune fille rangée” (1958), “La Force de l’âge” (1960), “La Force des choses” (1963) ou “Tout Compte fait” (1974) – para entender que o seu pensamento permite compreender melhor o século XX, em toda a sua complexidade e diversidade. E, há dias, António Rego Chaves dizia com inteira razão e pertinência: “É ridículo evocá-la (a Beauvoir), como se está a fazer neste mundo em vias de tabloidização, apenas pela liberdade sexual de que usufruiu ou como mera sombra de Sartre. Ridículo e escandalosamente ‘falocrata’». Fica presente diante de nós, como disse Huguette Buchardeau, “o castor industrioso e rebelde, nunca satisfeita, sempre ávida de novos conhecimentos, apaixonada pela escrita, a filósofa para quem lucidez, necessidade de verdade e de liberdade andavam juntas; a mulher de alguns grandes amores e de uma fidelidade sem falha ao homem da sua vida”. A alcunha de “castor” veio-lhe, aliás, de René Maheu, e foi retomada por Jean-Paul Sartre, a partir da proximidade entre as palavras beauvoir e beaver, a partir da determinação e da persistência da escritora. Daí o pensamento próprio, que se distinguiu das ideias do próprio Sartre. Enquanto este considerava não haver salvação possível para o homem, Beauvoir acreditava na capacidade de inventar a vida e de conquistar um sentido e modos de abrir os olhos na via de uma “autêntica salvação”.
E ouça aqui as minhas sugestões na Renascença.
Guilherme d’Oliveira Martins