A VIDA DOS LIVROS
de 12 a 18 de Abril de 2010
Refiro hoje, porque a reflexão histórica ajuda a introspecção colectiva, a recente publicação da “História de Portugal” (Esfera dos Livros, 2009), coordenada por Rui Ramos e realizada em co-autoria com Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno Gonçalo Monteiro. Trata-se de “uma proposta de síntese interpretativa da História de Portugal desde a Idade Média até aos nossos dias”, no dizer do coordenador, que preenche um espaço que precisava de ser ocupado.
UMA NOVA “HISTÓRIA DE PORTUGAL”
Apesar do esquecimento votado a Alexandre Herculano no segundo centenário do seu nascimento, a verdade é que é um exemplo para hoje. Como tem afirmado José Mattoso, só no final do século XX a historiografia portuguesa começou a superar o ponto em que nos deixou o autor de “O Bobo”. E temos de reconhecer que a atitude empenhada do velho historiador na busca do antigo carácter português e da consciência nacional continua bem presente. Se enalteceu a vontade do nosso primeiro rei e dos seus companheiros, procurou dar-nos uma chave explicativa da independência baseada nos factos e assente na necessidade de combatermos hoje o fatalismo e a descrença. Quase nove séculos de um Estado, apesar das vicissitudes e dos desfalecimentos, é obra que merece atenção, não podendo haver lugar a explicações de ânimo leve. E se António Sérgio, na senda dos liberais da geração de Garrett e Herculano e dos jovens das Conferências do Casino Lisbonense, falava de “patriotismo prospectivo”, para significar a necessidade de usar a crítica do passado para melhor encarar o devir, a verdade é que essa atitude continua a revelar-se actual e necessária.
A PARTIR DA EVOLUÇÃO DO ESTADO
Vejamos cada uma das participações na execução desta obra, na qual o critério do método se alia ao rigor da síntese. A Idade Média (séculos XI a XV, do condado Portucalense ao início da expansão ultramarina) foi tratada por Bernardo Vasconcelos e Sousa; a Idade Moderna (séculos XV a XVIII, da monarquia e as conquistas à queda de Pombal e à viragem para o oitocentismo) por Nuno Gonçalo Monteiro; e a Idade Contemporânea (das Invasões francesas à democracia europeia) por Rui Ramos. Seguimos uma narrativa, basicamente política, centrada na evolução do Estado e das decisões políticas fundamentais, que funcionam como fio condutor que procura interpretar os acontecimentos e as suas repercussões económicas e sociais. O texto é claro, atraente e escorreito, a hermenêutica segue a historiografia actual. E tratando-se de uma síntese interpretativa deve compreender-se que há sempre algo que fica por dizer (o enquadramento social, as repercussões económicas, a complexidade dos actores políticos, o contexto internacional). “Esta é a História (diz Rui Ramos, no Prefácio) de uma unidade construída pelo poder político através dos séculos. Por isso a narrativa teria de ser estribada pela História política, o que não significa que tivesse de ser uma simples crónica de actos dos titulares da soberania – tentámos que não fosse. O grande problema deste género de História é pressupor, como agente, uma entidade que é o produto e não a causa: a nação, a identidade nacional. Em Portugal, com as sua velhas fronteiras na Europa e a sua actual uniformidade linguística e antiga unanimidade religiosa, é fácil presumir a existência de uma comunhão precoce e imaginá-la como a manifestação de uma vontade e uma maneira de ser homogéneas e preexistentes à História”. Contudo, como demonstraram Orlando Ribeiro ou José Mattoso, as diferenças são muito relevantes. O geógrafo fala de um continente em miniatura e das variegadas realidades que o compõem. O historiador salienta os contrastes e as complementaridades. E a moderna investigação histórica e sociológica tem procurado fazer luz sobre as diferenças que permitiram paradoxalmente criar uma homogeneidade, feita de trocas e de intercâmbios e talvez até de uma certa solidariedade na provação. E é esse paradoxo da identidade e da diferença que tem gerado interpretações simplificadoras quanto ao antigo carácter do português. Afinal, se Herculano punha a tónica na vontade de sermos independentes, Oliveira Martins salientava o “nosso” fundo céltico, o carácter vago e fugitivo, contrastando com a terminante afirmativa do castelhano, ou a nobreza do heroísmo lusitano, diferente da fúria dos nossos vizinhos, ou a nossa ironia ao contrário da violência no centro peninsular, enquanto outros falam da hospitalidade, do receio, da saudade e da melancolia. E não disse M.S. Lourenço, assumindo a crítica de Pessoa a Fradique Mendes, que o português mover-se-ia mais à vontade na sátira, pela deformação e pelo grotesco, não sendo capaz de chegar à ironia, que exigiria a percepção de si próprio? De facto, são muitos os elementos contraditórios neste cadinho onde a terra acaba e o mar começa. Mas, se falamos das diferenças do carácter português, temos de ir à diversidade ultramarina e à diáspora, o que torna tudo mais complicado. Entende-se, por isso, que “a construção das identidades colectivas e o seu confronto com o pluralismo dos territórios, das comunidades e das opções políticas” seja cada vez mais importante, e a história portuguesa é bem ilustrativa da necessidade dessa cautela, seja pela natureza do território de partida (o ocidente peninsular), seja pela heterogeneidade dos lugares onde há influência portuguesa.
A “INVENÇÃO DE PORTUGAL”
“A visão rectangular de Portugal” é o “resultado da História, e não de qualquer predefinição natural”. Daí as ambivalências na relação entre os povos peninsulares. “A História foi sempre feita por muita gente e com vários objectivos e de várias maneiras”. A “invenção de Portugal” é, pois, complexa e heterogénea. O Mediterrâneo e o Atlântico marcam o território e, sobretudo a sul do sistema montanhoso central, os portugueses são “aqueles em cujos genes mais vestígios se encontram de duas das mais importantes migrações”: os judeus sefarditas e os berberes muçulmanos. A média peninsular dá 69,6% de ascendência nativa ibérica, 19,8 % sefardita e 10,6% berbere; enquanto no sul de Portugal a distribuição é de, respectivamente, 47,6%, 36,3% e 16,1%… A unidade política centralizada, a dependência económica ancestral (para Vitorino Magalhães Godinho, o “orçamento de Estado dependeu durante séculos dos rendimentos obtidos no exterior geralmente associados ao império”), o investimento na comunicação (transporte) mais do que na ocupação territorial (fixação), a diversidade de memórias históricas (não tentação fragmentária) ou a enigmática descentralização municipalista – tudo define as marcas duráveis e ambíguas da História Portugal. É esse o aliciante desta obra, que nos obriga a ter de regressar a ela…
UMA CITAÇÃO
José Mattoso afirmou sobre esta obra algo que parece indubitável: “Tomando o partido de encarar a nossa História do ponto de vista político, como uma narrativa sequencial com protagonistas individuais ou colectivos bem identificados, com indicação de factos e dados que condicionaram as decisões e os interesses em causa, as formas como se relacionaram entre si os diversos factores económicos, sociais e culturais, tanto nacionais como internacionais, são elementos de um itinerário complexo tornado compreensível para mostrar bem o que permaneceu e o que mudou, o que se repetiu e o que veio de novo” (Público, 12.3.2010). De facto, a narrativa histórica permite-nos seguir os acontecimentos, a partir de diversas pistas de análise, para que não haja interpretações simplistas e unilaterais…
Guilherme d’Oliveira Martins
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