A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

“Cardeal Cerejeira – O Príncipe da Igreja” de Irene Flunser Pimentel (Esfera dos Livros, 2010) é uma biografia essencialmente política que analisa o percurso de uma das figuras referenciais do século XX português, sem cuja compreensão não é possível perceber o próprio Estado Novo, em especial por se tratar de uma personalidade muito próxima de Oliveira Salazar, apesar das diferenças e das distâncias, cultivadas de parte a parte, e por ser um dos indiscutíveis artífices da “frente nacional”, que funcionou até ao final dos anos cinquenta, e que foi fundamental para a permanência no poder do sistema consolidado em 1933.

A VIDA DOS LIVROS
de 22 a 28 de Março de 2010


“Cardeal Cerejeira – O Príncipe da Igreja” de Irene Flunser Pimentel (Esfera dos Livros, 2010) é uma biografia essencialmente política que analisa o percurso de uma das figuras referenciais do século XX português, sem cuja compreensão não é possível perceber o próprio Estado Novo, em especial por se tratar de uma personalidade muito próxima de Oliveira Salazar, apesar das diferenças e das distâncias, cultivadas de parte a parte, e por ser um dos indiscutíveis artífices da “frente nacional”, que funcionou até ao final dos anos cinquenta, e que foi fundamental para a permanência no poder do sistema consolidado em 1933.



RECUSAR SIMPLIFICAÇÕES
A obra tem a grande virtude de recusar simplificações e de procurar seguir os acontecimentos históricos com objectividade. Nesse sentido, a autora acompanha os factos com relevância política ou pública da vida de Manuel Gonçalves Cerejeira, o que permite que possamos ver os contornos pessoais do intelectual, do universitário, do activista católico e do prelado influentíssimo, desde os tempos da Primeira República, passando pela chegada ao poder de um amigo muito próximo, com quem terá uma relação propositadamente ambígua, apesar das inequívocas convergências. No período inicial, em que o futuro Cardeal Patriarca de Lisboa se afirma pelas suas excepcionais qualidades académicas e intelectuais, começam a desenhar-se os traços fundamentais da sua personalidade. Trata-se de um carácter multifacetado e complexo, que critica abertamente os “tempos em que as púrpuras prelatícias punham notas vivas nos degraus do Trono dos reis e os regimentos nas paradas apresentavam armas aos senhores bispos”. Aliás, nas páginas do “Imparcial”, semanário dos estudantes católicos de Coimbra, no ano de 1914, Cerejeira demarca-se da posição dos monárquicos dizendo que “a união da Igreja e do Estado como entre nós existia” não poderá nem haverá de “voltar a existir em Portugal”. O jovem académico é elogiado pela comunidade coimbrã pelo trabalho realizado na Universidade. Vitorino Nemésio fala das “clareza e elegância expositiva” e Sílvio Lima refere a “prudente atitude crítica que o leva a verificar antes de afirmar”. Pina Martins assinala que a escolha de Clenardo (que esteve em Portugal de 1533 a 1538) como tema do seu doutoramento corresponde à recusa tanto do clericalismo como do cesarismo. Cerejeira seria, assim, um «defensor da separação entre o mundo espiritual e o mundo temporal, enquanto ‘trave mestra da civilização cristã’». E Luís Salgado de Matos assinala o risco corrido pelo académico, enquanto membro do clero, ao escolher como objecto de estudo um homem que foi vítima da Inquisição. Mas o que o autor quereria era talvez ajustar contas com a visão anticlerical da História, filiando a nossa decadência na ausência de uma classe dirigente e não na acção da Igreja…


A SOMBRA DA QUESTÃO RELIGIOSA
Não podemos esquecer como a questão religiosa da Primeira República marcou a geração de Manuel Gonçalves Cerejeira. E essa memória será um pressuposto para a cumplicidade evidente entre Estado e Igreja depois de 1926. De qualquer modo, é fundamental ver (com os elementos disponíveis, já que os arquivos eclesiásticos ainda não estão disponíveis) que não há uma identidade de pontos de vista entre Cerejeira e Salazar, aparecendo o primeiro como alguém que se rodeou de todos cuidados no sentido de preservar a independência da Igreja, tentando gerir os complicados equilíbrios numa sociedade profundamente marcada por ressentimentos antigos. O jovem Patriarca sente-se “dolorosamente surpreendido” com o convite feito pela Mocidade Portuguesa à Juventude Hitleriana, uma vez que concordava inteiramente com Pio XI na condenação do totalitarismo nazi. Durante as negociações da Concordata e do Acordo Missionário, Salazar e Cerejeira discordam sobre pontos importantes, por exemplo o da autonomia da Acção Católica, desconfiando o Presidente do Conselho que aí poderia estar um embrião político de uma democracia cristã desalinhada (lembre-se que António Lino Neto, o líder do Centro Católico, negara-se a entrar na União Nacional). Por outro lado, Gonçalves Cerejeira contrasta com Salazar ao ostentar uma imagem de “cardeal moderno”, viajado, defensor de uma estética moderna na Igreja de N.S. de Fátima em Lisboa, fundador de uma poderosa rádio católica (a Renascença). Sobre a sensível questão colonial, o prelado afirma numa célebre entrevista a Dutra Faria que vislumbrava em Angola e Moçambique os Brasis do século XXI. É verdade que não se pode tirar daí mais do que lá está. A entrevista deu brado. E há, da parte de Cerejeira, em meados dos anos quarenta, a consciência clara de que, como homem de Igreja, tinha de aceitar que haveria novos caminhos a trilhar para a evangelização de África. Se falámos da resistência de Salazar à autonomia da Acção Católica, temos de referir na mesma linha a oposição longa à criação da Universidade Católica. E estes exemplos são significativos de uma distância que Salazar quis manter relativamente aos riscos que via numa Igreja mais actuante e com maior espaço de manobra.


TEMPO DE VIRAGEM
Os anos cinquenta e sessenta irão representar um momento de viragem, a que correspondem dificuldades crescentes – e Cerejeira deixa, de facto, de saber como havia de pegar na questão. Tudo começa logo no fim da guerra, com a participação de um católico, velho amigo de Coimbra, Francisco Veloso, nas listas do MUD, ao lado de Francisco Lino Neto, filho de António Lino Neto, o já referido chefe de fila do Centro Católico. A partir de então o silêncio do Cardeal Patriarca perante os ataques de que são alvo os cristãos oposicionistas torna-se muito pesado. E o número de casos vai-se alargando: Vieira da Luz, Padre Joaquim Alves Correia, Padre Abel Varzim. Neste último caso, é a Acção Católica que está em xeque e o método do futuro Cardeal Cardijn. Cerejeira aceita a proibição de “O Trabalhador” e os sucessivos afastamentos do Padre Varzim, até ser enviado para Cristelo (Barcelos), mas diz preferir encobri-lo, como reserva da Igreja, a cobri-lo… Ainda há a questão do documento pró-memória do Bispo do Porto e a oposição do governo a que ele regresse ao País. Na mensagem de Natal de 1958, o Cardeal faz uma distinção entre o bom e o mau regime de separação entre a Igreja e o Estado, lembrando em particular que a Constituição portuguesa aceitava a soberania dos dois poderes, mas era a ordem espiritual que deveria julgar a temporal, e não vice-versa. Salazar não se faz rogado e responde sibilinamente que caberia ao Estado julgar os homens que serviam a Deus. E a esta troca de remoques suceder-se-iam diversas tomadas de posição de cristãos no ano de 1959, que marcariam profundamente o fim da “frente nacional” do regime. A incomodidade sentida pelo Cardeal é evidente. A crise do Seminário dos Olivais e as sérias dificuldades com colaboradores que admirava e em quem depositava confiança, como o Padre José da Felicidade Alves são profundamente dolorosas. Sente-se nitidamente que as circunstâncias políticas ultrapassam largamente a capacidade de resposta do Cardeal Cerejeira, que se vê rodeado de incompreensões. Perante o balanço que este faz em Janeiro de 1967 (“Na Hora do Diálogo”), Salazar comenta desdenhosamente que se trata de um documento defensivo relativamente a várias acusações da oposição, faltando “coragem de contra-atacar”, seria a reacção de um “fraco que pune a seu modo, como ele diz, para significar que não pune ninguém”. Marcelo Caetano dirá que Cerejeira “detestava as palavras ásperas, os castigos severos e as decisões definitivas, e preferia persuadir pela razão e comover pelo coração”. A verdade é que se trata de uma figura histórica que deve ser compreendida no seu tempo – como salientou António de Sousa Franco. E Abílio Tavares Cardoso realça que mesmo a esmagadora maioria dos que viriam a ser conhecidos como católicos progressistas admiravam a inteligência superior de Cerejeira e confiavam nele”. Lembre-se o testemunho de António Alçada Baptista ou a opinião contraditória de Raul Rego… O livro de Irene Flunser Pimentel é, afinal, importante, equilibrado e elucidativo e dele ressalta, com rigor, uma figura complexa e marcante. 


Guilherme d’Oliveira Martins



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