A VIDA DOS LIVROS
de 15 a 21 de Março de 2010
Quando, no início do ano, me pediram para escolher os livros de 2009, não tive dúvidas em eleger entre eles “O Caminho dos Pisões” (Assírio e Alvim, 2009), uma obra surpreendente, sobretudo para quem conheça menos bem o percurso de M. S. Lourenço, poeta, filósofo e cultor singularíssimo da língua portuguesa. Aí reencontrei, além das duas edições de “O Doge” (1962 e 1998), as obras literárias fundamentais do autor: “O Desequilibrista” (1960), “Ode a Upsala, Ária detta la Frescobalda” (1964), Arte Combinatória” (1971), “Wytham Abbey” (1974), “Pássaro Patadípsico” (1979), “Nada Brahma” (1991) e “Os Degraus do Parnaso” (1991 e 1998). Trata-se de uma oportunidade única para ter contacto com a atitude intelectual muito estimulante de um escritor culto, cuja obra multifacetada permite-nos usufruir o domínio da língua e das ideias, ao serviço de uma ironia extraordinária.
A SOMBRA DO DOGE
«Era afinal um homem muito breve, com uma história muito calma. Alguns diziam que a história era antiga, mas não passavam afinal daqueles, de entre os seus amigos, que menos conheciam coisas deste género. Hoje afigura-se possível que um dia Alguém tenha descoberto e revelado o segredo de algumas circunstâncias, o inacreditável mistério dum pequeno grupo de pormenores. É possível, apenas. Por tradição oral nada chegou até nós. E se fosse possível falarmos com uma testemunho ocular, ele diria com um acento desusado e inequívoco: ‘Mas isso é pura fábula! Nunca esteve aqui Alguém que dissesse alguma coisa sobre tais circunstâncias. Eu próprio nunca estive lá’». Assim começa “O Doge”, livro misterioso, publicado em 1962 pela Morais, da autoria de um escritor do centro da Europa, com reminiscências no Sacro Império e referências ao “nosso” Carlos o Temerário, o “Meio-Português”, com era conhecido, tudo no cenário deslumbrante da República Sereníssima de Veneza. O referido escritor aparecia com o nome rebarbativo e ostentatório de Arquiduque Alexis Christian von Rätselhaft und Gribskov, e era traduzido pelo jovem M.S. Lourenço. Consta que a Lisboa literata do tempo discutiu intensamente a origem dessa figura literária, e houve mesmo o mais famoso dos críticos da época que aceitou tratar-se de uma vera tradução (por sinal muito elogiada). De facto, porém, tudo não passou de uma ardilosa combinação com a casa editora, com Pedro Tamen, mais precisamente, no sentido de esconder a verdadeira identidade de uma personagem totalmente mergulhada na ficção, desde a autoria ao enredo. Estávamos perante um texto automático que pretendia descrever a biografia literária de um autor fictício, escritor de títulos surrealistas. O Arquiduque Gribskov tinha uma biografia parcialmente oculta, apenas revelada subtilmente na sua prosa. O tradutor limitava-se, assim, a apresentar uma figura literária que, mais do que enigmas, punha a necessidade de encontrar a sua identidade. Não passaria muito tempo até que António Ramos Rosa descobrisse o artifício da concepção, nas páginas de “O Tempo e o Modo”, então a dar os primeiros passos, graças à determinação (e nunca essa palavra foi empregue com tanta propriedade) de António Alçada Baptista. Gribskov nasceu em Nikolsburg, no Castelo dos Príncipes de Dietreichstein, tendo um lema subtilmente estranho: “Spiritus ubi vult spirat”.
AS ENCICLOPÉDIAS…
Dizem as enciclopédias, de um modo muito parco (porque o pensador sempre se protegeu de todas as exposições mediáticas), que Manuel dos Santos Lourenço (1936-2009) licenciou-se em 1963 na Universidade de Lisboa com a tese “A filosofia da matemática de Ludwig Wittgenstein”, fez estudos pós-graduados em Oxford e doutorou-se na Universidade de Lisboa (1980) com a dissertação “Espontaneidade da razão: A analítica conceptual da refutação do empirismo na filosofia de Wittgenstein” (INCM, 1986). Foi leitor de português nas Universidades de Oxford (1968-1971) e de Santa Bárbara, Califórnia, onde trabalhou com Jorge de Sena (1972-1975), tendo exercido ainda funções na Universidade do Estado de Indiana (1976-1980) e na Universidade de Innsbruck (1983-1984). Presidiu à Sociedade Portuguesa de Filosofia (1999-2004) e colaborou em “O Independente”, com uma coluna de culto, sintomaticamente designada “Os Degraus do Parnaso”. Por ocasião da sua morte, quase só assinalada pelos leitores fiéis, José Cutileiro, colega oxoniano, lembrou-nos, no obituário que escreveu, que M.S. Lourenço era uma “cabeça luminosa”, que dizia ter “aprendido a ler em Oxford (e explicava como) para onde fora já licenciado por Lisboa e considerava que o défice mais gritante dos seus alunos portugueses de literatura era a incapacidade de pensarem dedutivamente” (Expresso, 19.8.09). Foi, antes de tudo, um extraordinário filósofo da Matemática e da Lógica, da linhagem de Leibniz, mas também um dotadíssimo tradutor de Wittgenstein, de Beckett e de Joyce, e confirmam todos os que o conheceram pessoalmente que o fino humor que nos deixou sentia-se especialmente no seu convívio quotidiano. O lema pedagógico que tinha, no seu ensino académico, e pode dizer-se na vida, recebeu-o naturalmente de Leibniz (um dos maiores génios de todos os tempos, jurista, matemático, ensaísta, cultor de saberes vários), e era: «sans les mathématiques on ne pénètre point au fond de la philosophie. Sans la philosophie on ne pénètre point au fond des mathématiques. Sans les deux on ne pénètre au fond de rien ». « O Desequilibrista » é um conjunto poético onde o paradoxo aparece como revelador de sentidos contraditórios da vida, à semelhança dos “disparates do mundo” de G.K. Chesterton. Estamos perante uma “ironia transcendente, que encanta assembleias de acrobatas”. Ou seja, o humor serve para revelar as coisas mais sérias do mundo. O sagrado e o profano encontram-se: “Reis destroçados, impérios abatidos a tiro e divididos, rainhas que dançam para riso do público! Tudo isto é dEle e é aí que está o segredo desta história estranha”. O desequilibrismo tem, afinal, a ver com a procura da saúde através das diversas formas de enfermidade, ou da lógica através do contra-senso, como em Alice no País das Maravilhas, onde um professor de Lógica no ensina a entendê-la ao compreender a sua insustentável ausência…
OS DEGRAUS DO PARNASO
A dado passo, perante os degraus do Parnaso, encontramos o próprio Carlos Fradique Mendes (símbolo da modernidade insatisfeita) e deparamos com o que M.S. Lourenço considera ser um lapso intolerável. Trata-se da referência à viúva do célebre Pacheco, que manifesta a sua perplexidade pelo facto de Fradique devotar admiração ao imenso talento do defunto marido. Fernando Pessoa não perdoa a Eça esta fraqueza. Fradique é incapaz de sustentar o ponto de vista irónico e, por isso, no fim, deixa-se cair na sátira. Faltaria, deste modo, a distância de Fradique relativamente a si próprio: «não tem capacidade de ser ao mesmo tempo sujeito e objecto da sua própria percepção e, assim, aperceber-se da sua inconsciente transição da Ironia para a Sátira. Fradique é irreflectido, sofre afinal da espontaneidade do provinciano, cuja incapacidade de auto-análise coincide com a incapacidade de decifrar o sentido dos objectos internos analisados». E M.S. Lourenço refere-se às “Páginas de Doutrina Estética” de Fernando Pessoa e lembra os ensaios sobre o provincianismo português e sobre “o caso mental português”. Ambos estão na linha do que Antero disse nas Conferências do Casino sobre “As Causas da Decadência dos Povos Peninsulares” e do que, num registo irónico, Eça escreveu na “Correspondência de Fradique Mendes”. “São dois ensaios (recorda M.S.L.) mas na verdade só há uma tese, a qual liga os dois ensaios entre si e lhes confere uma direcção única: o português sofre de uma atrofia da consciência, no sentido em que esta só está insuficientemente constituída”. O português mover-se-ia, deste modo, mais à vontade na sátira, com recurso à deformação e ao grotesco, não sendo capaz de chegar ao “raffinement da ironia”, que exigiria a percepção de si próprio (e que impelia Alexandre O’Neill a não levar-se muito a sério). Jonathan Swift foi, aliás, o exemplo maior de cultor com sucesso do estilo irónico, segundo Pessoa. “O homem português tem assim menos sensações, menos percepções, menos emoções, menos estados cognitivos, menos estados volitivos do que em princípio poderia vir a ter”. Haveria, pois, para Pessoa, uma atrofia da alma portuguesa, referindo ainda a “paralisia da alma” ou a “melancolia da impotência”. Falta, no fundo, introspecção – e o lapso de Fradique serve para demonstrar que mesmo no pano mais raro cai a nódoa. Falta sermos sujeitos e objectos da introspecção crítica – a fim de que à força do destino possamos contrapor a força da vontade. Por isso mesmo, M.S. Lourenço, ao falar de projecto europeu, diz que “apesar do instável carácter centrífugo da construção política da Europa, a experiência tem demonstrado a existência irrefutável de um espírito europeu cosmopolita, o qual brilha permanentemente na vivência de uma cultura comum, cuja essência supranacional é o humanismo clássico. Fradique não pode estar em melhor companhia”. E estaremos aptos a entender o que são os Estados de Cultura e os génios dos lugares? “O Caminho dos Pisões” permite, nesta caminhada pela serra de Sintra, entender tudo para além da sombra das acácias em flor…
Guilherme d’Oliveira Martins
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