A VIDA DOS LIVROS
de 15 a 21 de Fevereiro de 2010
Há livros que nos permitem compreender melhor o que nos rodeia, apenas pelo facto de procurarem ver o outro lado das coisas, ao invés dos lugares comuns, que surgem repetidos, sobretudo em momentos de crise como o que atravessamos. Eleanor Roosevelt disse um dia que “as grandes cabeças pensam ideias, as cabeças médias acontecimentos e as cabeças pequenas discutem pessoas”. A afirmação é bem certeira, e num momento de míngua de debate sobre ideias e convicções, é salutar encontrar quem se preocupe com as ideias e os ideais, procurando ver para além do imediato e das discussões fulanizadas. Num braçado de livros que José Tolentino Mendonça me fez chegar, parte substancial dos quais editados pela “Pedra Angular” dei-me há dias a ler ou a reler (uma vez que parte dos textos já os conhecia), com grande prazer e proveito intelectual, “O Peixe Amarelo – Pistas para um Mundo Melhor”, de João Wengorovius Meneses (2009). E senti que tudo junto, agora, fazia mais sentido. Longe da tentação da procura do melhor dos mundos, deparei com a busca comedida, mas ambiciosa, do “mundo melhor”, a partir da economia solidária. E posso dizer que estava bem embalado para esta leitura, já que, desse benfazejo braçado, tinha acabado de ler “Ouvi do Vento” de Manuela Silva, onde se sente a escuta do espírito que incansavelmente nos atrai para as paisagens dos valores universais da verdade, da justiça, da beleza e do bem.
Marta Wengorovius
OS PEIXES DE HERBERTO HELDER
O jovem autor de “O Peixe Amarelo” prendeu-me ao livro desde a primeira linha, pela determinação, pelo método, pela frescura e pela inteligência. E eu, ao (re)ler os textos, percebi que, depois de dois ou três anos, ganharam maior pertinência. Após o rebentar da bolha imobiliária e do “crash” de Outubro de 2008, as considerações e os comentários ganham uma novíssima actualidade. E começo por falar do título, muito bem caçado, que João Wengorovius Menezes foi buscar a Herberto Hélder. Era um pintor que tinha um aquário com um peixe vermelho. O artista estava a pintar o peixe, mas foi surpreendido por uma súbita mudança de cor do bicho. De súbito, o peixe tornara-se negro, e o pintor foi obrigado a interromper a obra, já que o preto lhe colocava o problema de formar a “insídia do real”, abrindo um estranho abismo. E assim, o pintor percebeu que o peixe mostrava que apenas existia uma lei – e essa era a lei da metamorfose. “E compreendida esta espécie de fidelidade, o artista pintou um peixe amarelo”. A escolha do título do livro não é inocente, usa, afinal, uma metáfora sobre a atitude de que depende o futuro. E, por mim, lembrei-me do texto que Edgar Morin assinou em “Le Monde”, há dias, sobre tão curioso tema: “Quando um sistema é incapaz de tratar os seus problemas vitais, degrada-se, desintegra-se, ou então é capaz de suscitar um meta-sistema para tratar dos seus problemas, metamorfoseando-se”. E acrescentava, ciente de que a metamorfose é mais poderosa do que todas as revoluções, que “a esperança verdadeira sabe que não é certeza. Trata-se da esperança não no melhor dos mundos, mas num mundo melhor. A origem está diante de nós, como dizia Heidegger. A metamorfose será efectivamente uma nova origem”. Afinal, num tempo de “caos e complexidade”, e num mundo global, marcado pelo risco e pela mudança, “o conhecimento e a inovação são as alavancas do futuro”. Esta nova geração (agora com trinta anos), de “pragmatopians”, combina o idealismo e o pragmatismo, recebeu da Internet e da comunicação global a noção de cidadania global, “mantendo viva a ousadia da esperança e o atrevimento da utopia, assentes na racionalidade do possível”.
CINCO PISTAS LANÇADAS
O livro começa por pistas lançadas por cinco personalidades preocupadas com o debate de ideias e com o futuro. Daí se seguem as reflexões do autor. António Câmara fala do combate ao insucesso escolar, como “a batalha decisiva a vencer”, na “inteligência colectiva, expressa na agregação de propostas individuais, a explorar na transformação de cidades, regiões e países” e lança um grito de alarme sobre a água (“devemos optar por soluções distribuídas de poupança e reciclagem da água”). Carlos Zorrinho afirma que todos devem aceder aos saberes, às competências e aos “recursos necessários para definir com dignidade e liberdade o seu projecto de vida”, defendendo “um mundo multilateral em rede, em que todas as partes são críticas e nenhum país ou território é descartável ou meramente supletivo”. Daí falar de uma “nação-rede” e das suas potencialidades. Diogo Vasconcelos diz que “as tecnologias de informação e comunicação permitirão mais eficiência energética nos transportes, nos edifícios e nas indústrias, revelando-se essenciais para o combate às alterações climáticas e para a promoção da sustentabilidade ambiental. As redes abrirão caminho a formas mais sustentáveis de trabalhar, de aprender, de urbanizar e de comunicar”. Geoff Mulgan (do círculo de Tony Blair) refere a necessidade de investir, para além da ciência e da tecnologia, em mudança social, cidades e vilas experimentais, zonas e laboratórios para novas formas de vida, que permitam compreender na prática como cidades diversas podem coexistir, como uma população envelhecida pode responder aos novos desafios ou como sociedades saudáveis podem reduzir a sua pegada ecológica. No fundo, é preciso ter mais investimentos sociais, por uma questão de sobrevivência, com capital necessário para as organizações não governamentais, empresas e empreendedores sociais. “Em vez de sermos e de nos vermos como 1’s, devemos pensar em nós mesmos como 1+1 e 1+1+1” Precisamos, afinal, de acrescentar 1 por cento à parcela dos grandes fluxos financeiros dedicados a criar um futuro melhor e a desenvolver um sistema de educação que ensine. Por fim, Rogério Roque Amaro propõe: que se supere a visão antropocêntrica da vida, substituindo-a por uma óptica ecocêntrica da História, da vida, do Planeta e dos processos de interacção na sociedade e na natureza; que seja assumida uma “solidariedade sistémica” (ambiental, cultural, territorial, e de fundamentação científica) e uma cidadania ecológica; que se siga uma “hermenêutica distópica”, assente na percepção da importância e da perspectiva de um outro e da existência de qualquer outro. Seria, deste modo, necessário (re)descobrir, valorizar e compreender a pluralidade de formas de economia, nomeadamente contemplando a “economia da reciprocidade não equivalente” (com importância efectiva atribuída à entre-ajuda) e a economia doméstica.
QUE DESAFIOS?
A partir destes desafios, João Wengorovius Meneses realça a importância do terceiro sector (da iniciativa solidária), ao qual faltam líderes, ambição e inovação, ao qual faltam profissionalismo na gestão, instituições representativas, dinâmicas e competentes… E põe o dedo na ferida das questões incómodas num tempo de tomada de consciência sobre a crise. Será a pobreza uma fatalidade? A que se deve? Será erradicável? Como?… “Afinal (diz-nos o autor) depende apenas de haver vontade colectiva para elevar a dignidade humana a um novo patamar – não foi assim com a escravatura?”. Ghandi proclamava: “sê a mudança que desejas”, e esse é o método do movimento “We Are What We Do”, cujas propostas são apenas de bom senso. Lembramo-nos nos anos sessenta e setenta de “Rules for Radicals” de Saul Alinsky… Mas vejamos algumas dessas propostas, lembradas pelo autor que nos ocupa: “recusar os sacos de plástico, sempre que possível, lavar os dentes com a torneira fechada, sorrir, reciclar os tinteiros da impressora, ter boas maneiras, reciclar o papel usado, ver menos televisão, calcular a nossa pegada ecológica, fotocopiar em ambos os lados, plantar uma árvore, desligar as luzes desnecessárias, não comer pastilhas elásticas, dar sangue, comprar em lojas de comércio justo, lembrar-se dos nomes das pessoas, associar-se a uma ONG, preferir as escadas, sair do emprego a horas uma vez por semana, não aspirar a ter mais, mas a ser mais, ler uma estória a uma criança, entre oitenta outras…”. E não diz o célebre ditado queniano: “não herdaste a terra dos teus pais, ela foi-te emprestada pelos teus filhos”?
A mudança é, assim, uma questão de vontade, o activismo e o voluntariado são meios para a formação completa de uma geração, percebendo-se que, no sector social, a cooperação gera mais valor do que a competição, ao contrário do que se tem suposto no últimos vinte anos, contra tudo e todos. E as pessoas têm de se mobilizar, num compromisso fecundo. Razão tinha António Guterres, como lembra João W. Meneses, em alertar para a tentação de quem faz política “de amar tanto a humanidade que se esquece de amar as pessoas concretas”. Precisamos, afinal, de abrir canais de escuta da sociedade civil e dos cidadãos em geral. E como Giddens ou a Fabian Society têm dito, o futuro da democracia depende de uma profunda cultura cívica. Leia-se e releia-se “O Peixe Amarelo”. (Publicado no J.L., 10 de Fevereiro de 2010 – o título correcto deveria ser “Melhor é Possível”).
Guilherme d’Oliveira Martins
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