A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

“Outra Margem – Estudos de Literatura e Cultura Portuguesas” de Ana Nascimento Piedade é um percurso de pesquisa sobre a modernidade portuguesa, que provém de Eça de Queirós e da Geração de Setenta, para chegar ao século XX, em especial aos tempos de “Orpheu”, vindo também à “presença” e a Eduardo Lourenço. Como disse o mesmo Eduardo Lourenço, na apresentação do livro no Centro Nacional de Cultura, trata-se de ver o fenómeno literário e cultural no Portugal moderno com os olhos de uma “outra margem” e com a capacidade de tentar compreender melhor, para além dos condicionalismos do tempo… E Vergílio Ferreira esclarece bem que essa situação singular é “ser apenas do lado da vida em que não passa muita gente, se é quase anónimo, fora do alvo que é visado pela notoriedade, curiosidade pública, grande reputação. Ser em humildade, na discrição de nós, na curta dimensão de nós”.

A VIDA DOS LIVROS
de 8 a 14 de Fevereiro de 2010


“Outra Margem – Estudos de Literatura e Cultura Portuguesas” de Ana Nascimento Piedade é um percurso de pesquisa sobre a modernidade portuguesa, que provém de Eça de Queirós e da Geração de Setenta, para chegar ao século XX, em especial aos tempos de “Orpheu”, vindo também à “presença” e a Eduardo Lourenço. Como disse o mesmo Eduardo Lourenço, na apresentação do livro no Centro Nacional de Cultura, trata-se de ver o fenómeno literário e cultural no Portugal moderno com os olhos de uma “outra margem” e com a capacidade de tentar compreender melhor, para além dos condicionalismos do tempo… E Vergílio Ferreira esclarece bem que essa situação singular é “ser apenas do lado da vida em que não passa muita gente, se é quase anónimo, fora do alvo que é visado pela notoriedade, curiosidade pública, grande reputação. Ser em humildade, na discrição de nós, na curta dimensão de nós”.


 
“Praia das Maçãs”, José Malhoa, 1918.


UMA SOMBRA PELOS CAFÉS
Simbolicamente, no último texto do livro, a autora cita Eça, cuja sombra está omnipresente em toda a obra, e fá-lo a propósito de “Lisboa nos Cafés”. A citação é conhecida, mas mostra a contradição íntima de alguém entusiasmado com os ventos parisienses, a seguir ao fracasso de Sedan e à proclamação do Reich em Versalhes, ciente de todas as incertezas do poder caído na rua, entre barricadas, tiros, bombas e mortes. “O que eu conspirei! Jesus, o que eu conspirei! O meu desejo era filiar-me na Internacional! Uma noite, em torno de um café, exclamámos todos, pálidos de furor, cerrando os punhos: – É necessário barricadas, é necessário descer à rua! Descer à rua, era a ameaça terrível! E descemos o degrau do Martinho!”. Era o Martinho do Rossio, lugar mítico de tantas gerações e de inúmeras esperanças e desilusões. A recordação diz quase tudo. Fala-nos da necessidade de ter o coração a bater ao ritmo da Europa, da exigência de viver a modernidade, da força do apelo da justiça e da igualdade, da vivência de um ideal, mas também de uma ironia tremenda, da distância e da serenidade de poder gozar um ambiente liberal, que era o do tempo de António Maria Fontes Pereira de Melo, improvável discípulo de Saint Simon, o mesmo que entusiasmou, por razões bem diferentes, Augusto Comte e Karl Marx… Os cafés foram, de facto, os espaços públicos por excelência dos dois séculos passados, mesmo que Mário de Sá-Carneiro tenha dito a Fernando Pessoa, sobre o dito Martinho do Rossio: “Não sei porquê mas esse café, não os outros cafés de Lisboa, esse só – deu-me sempre a ideia dum local onde se vem findar uma vida: estranho refúgio, talvez, dos que perderam todas as ilusões, ficando-lhes só, como magro resto, o tostão para o café quotidiano – e ainda assim, vamos lá, com dificuldade”. Que diferença de atitude, de Eça até Sá-Carneiro, um português retinto (mesmo quando fora de Portugal, em andanças diplomáticas), o outro mergulhado no cosmopolitismo parisiense (atacado quiçá pelo mal da civilização de que padeceu Jacinto). São as vicissitudes da modernidade, com Álvaro de Campos (o mesmo que tanto perturbou José Régio, no Montanha) a falar nas “metafísicas perdidas nos cantos dos cafés de toda a parte”…


PORQUÊ LER EÇA NO SÉCULO XXI
Num tempo em que, mais do que relativamente a este ou àquele autor, a pergunta a fazer sobre as razões para ler no século XXI tem a ver com o próprio acto de ler, Eça de Queirós permite-nos ter uma resposta. E, para responder, devemos recorrer a Fradique Mendes, a complexa figura que encerra em si as contradições de uma geração dramática e irónica, fruto da liberdade de expressão e do anseio de um banho lustral de internacionalismo cosmopolita. Afinal, tratar-se-ia de retornar à “nobreza do estado primitivo” ou de alcançar a regeneração finissecular – numa purificação consistente em ter “o crânio limpo de todos os conceitos” e “o espírito escarolado do pó e do lixo de longos anos de literatura”, tudo isso «a fim de recuperar essa notável aptidão que permitirá, enfim, “proceder soberbamente, a um exame inédito das coisas humanas”». E Fradique, o açoriano emblemático, dá-nos razão para a perenidade, que leva, ainda hoje, a entender a necessidade de regressar à leitura de Eça, ou à leitura “tout court”, para compreender tudo, rindo e castigando os costumes, como na máxima latina. Afinal, está na ideia mesma de modernidade (uma actualidade que ultrapassa a transitoriedade dos acontecimentos) a pertinência da obra e do seu símbolo Fradique, ou não fosse Ana Nascimento Piedade estudiosa atenta do Fradiquismo, que “nunca foi verdadeiramente um autor, mas tão-só, uma espécie de símbolo problematizador, condição aparentemente modesta e incipiente, mas, na realidade, deveras exigente e ambiciosa, uma vez que sobretudo o desoculta como um paradigma dessa transitoriedade caótica, tipicamente finissecular, através da qual se reflectem o sincretismo inquieto e a impossível unidade da sua, e por conseguinte nossa, contemporaneidade”. E o certo é que as pontes que, ao longo da obra, se vão estabelecendo, entre as várias formas de assumir a modernidade, desde as Conferências do Casino e a “Tertúlia Ocidental”, na designação feliz de António José Saraiva, até ao “Orpheu”, têm a ver com a necessidade subjectiva de duplicação da consciência dos criadores (Eça, Antero e Fernando Pessoa) – a partir da “desagregação do Ego transcendental” actuante no universo sócio-histórico do final do século XIX e começo do século XX.


UM FIO CONDUTOR
Se percorrermos os temas, chegamos à tentativa de encontrar a chave para alguns dos enigmas da cultura portuguesa, através da análise de uma transição marcada pelo pós-Romantismo. Aí estão, por isso, as estratégias da modernidade, os modos de ser moderno, a estética da ironia, as afinidades e os contrastes entre os jovens do Casino e do Orpheu, os encontros e os desencontros, Cesário, Eça, António Feijó, Pessoa, Sá-Carneiro, Régio, Eduardo Lourenço, António Lobo Antunes… E o que une essas gerações inconformistas e modernas? A audácia, a irreverência, o desafio, o humor e uma insólita energia vital. A comparação mais fecunda é, sem dúvida, a que põe frente a frente a Geração de Setenta e Orpheu. «Certo espalhafato mistificador que em parte permaneceu como emblema distintivo das duas gerações (diz a autora), terá funcionado, sobretudo, como uma espécie de aval protector dessa ousadia de querer pensar e praticar a inovação sem limites. E nisto consistia exactamente o propósito em que de modo radical se empenharam os dois grupos de jovens criadores, ao procurar operar a subversão e iniciar a renovação da literatura e da mentalidade portuguesas. Dito de outro modo, se o desejo de mistificação é um sinal necessário em tempos de ruptura e transformação, é porque ele é ‘o preço que deve ser pago, e sempre será pago, por uma atitude que não tem por definição nenhuma garantia do passado’». E é Eduardo Lourenço quem aponta esta capacidade de libertação em relação a qualquer garantia do passado como o sinal premonitório e renovador que permite abrir um caminho novo e ser seguido. Trata-se, afinal, de romper o laço visceral relativamente às gerações anteriores. Antero de Quental salientou-o como marca original de quem fez as Conferências do Casino, passando de um mundo de crença para uma recriação do mundo a partir da vontade de criação. Fernando Pessoa e Almada Negreiros repetiram-no a seu modo, no seu tempo axial. “O criador está só e tem de inventar o mundo” (disse ainda Eduardo Lourenço no CNC). E Eça, ao escrever sobre Antero no “In Memoriam”, procedeu à auto-mitificação da geração e do seu epicentro heróico, a partir da compreensão das temporalidades diversas da história humana. Do mesmo modo, Fernando Pessoa deu o sinal inovador ao exprimir a vontade de ruptura e ao propor um critério universalista para a consciência portuguesa. E se o incompreendido mito dos vencidos ainda é recorrentemente invocado, Eça esclarece que “para um homem, o ser vencido ou derrotado na vida depende, não da realidade aparente a que chegou, mas do ideal íntimo a que aspirava”…


Guilherme d’Oliveira Martins


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