A VIDA DOS LIVROS
De 28 de Dezembro de 2009 a 3 de Janeiro de 2010.
“Notre Jeunesse” de Charles Péguy (Gallimard, 1957) é um livro de 1910, mas contém, no essencial, uma evidente actualidade, uma vez que nos fala da necessidade de haver ideais e dos perigos da sua ausência. Dir-se-ia, pois, que estamos perante uma obra a ler nos nossos dias, num momento em que sob os ecos da crise financeira notamos a ausência de referências fundamentais, que tornem o pluralismo, o respeito e a dignidade como algo de enriquecedor para a humanidade. E não podemos esquecer que Péguy escreveu sob o peso de um debate que ocorreu na passagem dos séculos XIX para o XX a propósito compromisso dos intelectuais sobre os problemas contemporâneos.
DA MÍSTICA À POLÍTICA.
Charles Péguy (1873-1914) foi um escritor, um ensaísta e um poeta que se singularizou pela capacidade militante de se bater por princípios e valores. O ambiente que conduziu ao “affaire Dreyfus”, os sinais perturbadores do anti-semitismo que permitiram esse escândalo levaram-no a tornar-se um dos mais activos “dreyfusards”. Vemo-lo ao lado de Émile Zola na campanha do “J’Accuse!” nas páginas de “L’Aurore”, mas sobretudo assistimos, depois da reabilitação de Dreyfus (1906), ao continuar de um combate pela liberdade e pela justiça nas páginas dos “Cahiers de la Quinzaine”, a partir de 1900. Profeticamente, Péguy percebeu, desde cedo, aonde poderia conduzir a cegueira étnica e o oportunismo político, quando ainda se estava longe de poder antever a tragédia da “solução final”. “Notre Jeunesse” é o escrito político porventura mais célebre e mais influente de Péguy. É constituído por vários textos publicados nos “Cahiers” na sequência da reabilitação de um judeu acusado de alta traição, apenas por ser judeu. Nestes textos se notam as melhores características do polemista, desde a força das invectivas à clareza das ideias. Foi nesta obra que escreveu: tudo começa em mística e acaba em política. Este é, afinal, o tema essencial que desenvolve. E o que pretende é dizer que é indispensável renovar as ideias permanentemente, apelando aos princípios e ideais, para que não prevaleça a lógica imediatista, centrada em razões de oportunidade. “Uma mesma esterilidade seca a cidade e a cristandade. A cidade política e a cidade cristã. A cidade dos homens e a cidade de Deus. Trata-se propriamente da esterilidade moderna. Que ninguém se regozije vendo o mal que atinge o inimigo, o adversário e o vizinho. Porque o mesmo mal, a mesma esterilidade o atingem a ele também. Como tantas vezes disse nestes cadernos, desde o tempo que não me liam, o debate não é propriamente entre a República e Monarquia, entre a República e a Realeza, sobretudo se as consideramos como formas políticas, como duas formas políticas, não é somente, o debate não é exactamente entre o antigo regime e o novo regime francês, opõe-se a todas as antigas culturas, em conjunto, a todos os antigos regimes em conjunto, a tudo o que é cultura e a tudo o que é cidade. É, com efeito, a primeira vez na história mundial que todo um mundo vive e prospera, parece prosperar, contra a cultura”. Péguy refuta várias acusações, provindas das mais diversas origens, e tendo-se posto claramente ao lado do judeu Dreyfus recusa que o combate dos “dreyfusards” seja anti-cristã. Afinal, há uma mística comum que une cristãos e judeus. Por outro lado, para ele, um regime político não pode limitar-se a ser uma tese. Se for apenas uma tese cai de rastos. É, pois, precisa vontade, que ligue razão e acção. O essencial é, assim, que a “mística não seja devorada pela política, à qual ela deu nascimento”. Do que se trata, no fundo, é de compreender que, sendo a acção fundamental, não poderemos esquecer os princípios em que ela se baseia. Não basta manter o poder a todo o custo, não deveremos ceder ao mero pragmatismo.
“LA TRAHISON DES CLERCS”.
O caso Dreyfus abriu na cultura europeia um tema que nos anos vinte daria lugar ao debate em torno da obra de Julien Benda (1867-1956) “La Trahison des Clercs”. “Os homens cuja função é defender os valores eternos e desinteressados, como a justiça e a razão, que designo como intelectuais (clercs), traíram a sua função em benefício dos interesses práticos”. Com esta afirmação, longamente glosada por muita gente ao longo do século XX, Benda pôs o dedo na ferida das responsabilidades do intelectual, em especial nos tempos de crise. No entanto, o autor de “La Trahison” viria a ser alvo de duras críticas no final da vida em virtude do seu apoio à política de Estaline. No fundo, o percurso do próprio Julien Benda veio a revelar a possível contradição na abordagem de um tema muito complexo, que liga, a um tempo, a avaliação dos acontecimentos e a responsabilidade cidadã perante eles. Emmanuel Mounier (1905-1950), discípulo de Péguy, falou dos acontecimentos como nossos mestres interiores e desenvolveu a ideia de compromisso, centrada na responsabilidade pessoal. Afinal, a avaliação dos acontecimentos obriga a correr abertamente o risco de errar, e daí a necessidade de nos precavermos contra a rigidez abstracta dos moralismos. “Uma filosofia para a qual existam valores absolutos será tentada a esperar para se lançar na acção por causas perfeitas e meios irrepreensíveis. O que equivale a uma renúncia à acção. (…) Só nos podemos comprometer em combates discutíveis e em causas imperfeitas”. Mounier falava, por isso, do sujar das mãos e dos riscos da indiferença ou da não-acção, numa tensão permanente entre o pólo profético e o pólo político da vida. Nem as imprecações nem as manobras tácticas podem responder, só por si, aos desafios complexos do mundo. Em 1938, aquando dos acordos de Munique, que adiaram o início da guerra, dando tempo para que Hitler melhor se preparasse para a ofensiva que iniciou a guerra, Mounier foi uma das poucas vozes que se ergueu contra um pacifismo que abria caminho à guerra, pela capitulação. Este foi um exemplo que, dramaticamente, os acontecimentos históricos vieram a demonstrar ser uma marca dos perigos da desistência e da exigência da acção. O compromisso obrigava, afinal, à acção impura e discutível, em nome dos valores humanos.
DO PÓLO PROFÉTICO AO PÓLO POLÍTICO
Bernard-Lazare foi quem lançou a campanha contra a falsa acusação que impendia sobre Alfred Dreyfus. Assumiu, assim, a mística e o pólo profético que os acontecimentos reclamavam, sem esquecer a dimensão da eficácia no agir. Péguy dá o exemplo de uma mística preocupada com os resultados, com a necessidade da realização da justiça. “A política desdenha da mística, mas é ainda a mística que alimenta a própria política”. Eis por que razão a compreensão da vida obriga a ligar mística e política, profecia e acção. E ao falar dos ideais republicanos, o autor de “Notre Jeunesse” deixa claro que uma sociedade precisa periodicamente de se renovar, de encontrar forças novas. Sem essa capacidade de renovação a cidade fragiliza-se e decai. E Dreyfus foi uma dessas oportunidades para que houvesse uma linha divisória entre a busca de um suplemento de alma e a repetição da inércia conformista. Sente-se, assim, o entusiasmo do agitador e do poeta, ciente de que se iniciaria um ciclo que depois se esgotaria, para reencontrar a seguir novas forças de sentido místico, aptas a lançar pontes e a reencontrar raízes libertadoras. Nada disso, porém, poderia realizar-se sem drama. Basta lembrar-nos do Abade Pichot que, por ser dreyfusard, teve de se exilar. Charles Péguy afirma: “Não somente fomos heróis, mas o caso Dreyfus no fundo não pode explicar-se a não ser pela necessidade de heroísmo que anima periodicamente este povo, esta raça, pela necessidade de heroísmo que nos anima em toda uma geração. (…) Em todas as grandes provas, em todas as grandes histórias é talvez mais a força interior, a violência da erupção que faz a matéria, histórica, uma vez que não é a matéria que faz e que impõe a prova”. E o nosso autor fala ainda numa “misteriosa necessidade de inscrever uma grande história na história eterna”. Com voz grandiloquente, o poeta, que veria o fim dos seus dias na Batalha do Marne, no início da guerra (1914), fala-nos da mística como ponte entre as pessoas, como factor de entendimento e de aproximação, mas também como revelação e conhecimento. Lembramos uma das suas mais emblemáticas afirmações: “la révolution sociale será morale ou elle ne sera pas” (1901).
Guilherme d’Oliveira Martins