A VIDA DOS LIVROS
De 7 a 13 de Janeiro de 2008.
“A Vinda da Família Real Portuguesa para o Brasil” de Thomas O’Neil (José Olympio, Editora, 2007) constitui um documento de grande interesse para a compreensão de um episódio tantas vezes mal entendido na história portuguesa, que é o da partida da família real portuguesa para o Rio de Janeiro no final de 1807, perante o avanço das tropas invasoras de Napoleão Bonaparte, comandadas pelo Marechal Junot. Este relato datado de 1810 não estava traduzido em português e agora, graças ao impulso da comissão brasileira das comemorações dos duzentos anos desse evento, presidida pelo Embaixador Alberto Costa e Silva, pode ser lido na nossa língua, antecedido de um interessante e útil prólogo de Lília Moritz Schwarcz – “Homens, e a Corte, ao Mar: O Relato de uma Aventura”.
O Príncipe Regente D. João passa revista às tropas na Azambuja. Domingos António de Sequeira. 1803. Palácio Nacional da Queluz.
UM CURIOSO RELATO – Thomas O’Neil era tenente dos Reais Fuzileiros, de origem irlandesa, que escreveu o que designou como “A concise and accurate account of the proceedings of the squadron under the command of the rear admiral Sir Sidney Smith…”. Uma vez que não presenciou parte significativa dos acontecimentos que relata (em especial no tocante à viagem do Príncipe Regente e da sua corte), baseia-se em testemunhos que ouviu, e muitas vezes exagera no que ficciona. No entanto, ressalvados os entusiasmos, trata-se de um documento que interessa pelo tom, pela descrição do ambiente, das pessoas e dos costumes e pela consideração destes acontecimentos no contexto amplo do papel desempenhado pela Grã-Bretanha. O’Neil só chegou ao Rio em 29 de Fevereiro de 1808, bastante depois da chegada da família real. Mas esta edição, e o estudo que a antecede, curam de situar os factos históricos dentro do rigor possível. Por exemplo, quanto ao número de pessoas que acompanham a família real, fala-se muitas vezes de 15 mil (e o próprio O’Neil aponta para aí), no entanto a listagem que existe apenas relaciona 536 passageiros, entre nobres, ministros de Estado, conselheiros e oficiais maiores e menores, médicos, padres e desembargadores. O número foi, no entanto, maior, uma vez que nalguns casos há indicações não concretizadas sobre família e criadagem, que têm de acrescer aos nomes indicados. De qualquer modo, estamos muito longe dos números imaginados nas descrições mais coloridas. Além de que não pode esquecer-se o número incerto de embarcações mercantes que acompanharam as 15 embarcações da real esquadra (oito naus de linha, quatro fragatas, dois brigues e uma escuna).
VIAGEM ATRIBULADA – Como facilmente se compreende, a viagem foi difícil, ainda que sem acidentes e incidentes graves. À partida houve muita perturbação (“uma cena terrível de confusão e aflição tomando conta de todas as classes assim que se tornou conhecida a intenção do príncipe embarcar para o Brasil: milhares de homens, mulheres e crianças estavam constantemente na praia, empenhando-se por escapar a bordo. Muitas mulheres distintas entraram na água na esperança de alcançar os botes, mas algumas, desgraçadamente, morreram na tentativa”…). Ainda por cima, houve tempo mau no início da viagem (em Novembro e Dezembro), alteração de planos e dispersão dos navios, devido à tempestade. O excesso de passageiros, a falta de higiene (os piolhos obrigaram ao corte dos cabelos das mulheres), o racionamento de comida e água, a perda de muita bagagem logo em Lisboa, na confusão da partida, tudo isso contribuiu para uma natural agitação, no entanto não há a registar episódios especialmente dramáticos, para além do inesperado e incerto de toda a situação. Com 54 dias de mar (22.1.1808), a nau “Príncipe Real” chegou a Salvador, onde esteve um mês, seguindo depois para o Rio de Janeiro. Na Bahia, houve que esperar as embarcações atrasadas e que preparar a entrada solene na nova capital do Reino. O’Neil fala do “bom carácter dos portugueses e dos nativos brasileiros” e da “benevolência e agilidade dos ingleses”. E entende-se que vão para estes os maiores encómios. Afinal, a “passividade lusitana”, no dizer de Lília Schwarcz, aparece como “mais uma vítima das ambições desenfreadas do corsário francês” (O’Neil). E se sabemos que, antes da saída da corte, D. João alimentou uma propositada simulação e ambiguidade, fingindo, por exemplo, ceder aos franceses no fecho dos portos à Inglaterra, O’Neil esquece-o completamente, preferindo realçar a fidelidade à mais antiga aliança, quase vendo o príncipe regente como mais um súbdito de Sua Majestade britânica. Portugal aparece, assim, como “um exemplo do destino feliz daqueles que optaram pelo lado inglês”…
CHEGADA AO RIO DE JANEIRO – “Os habitantes de Santa Sebastian (São Sebastião) receberam de braços abertos os ilustres fugitivos; tudo o que o zelo e a lealdade os impeliram a fazer foi feito; e a Família Real fixou residência no palácio usualmente ocupado pelo vice-rei, um edifício que, por sua sumptuosidade, ultrapassa o que um europeu poderia imaginar, quando se considera que, aos diversos vice-reis, era quase inteiramente impossível um intercâmbio com qualquer outra nação” – diz O’Neil. O tenente britânico sente-se bem e elogia o clima brasileiro, “livre de muitas desvantagens comuns a outras terras tropicais”, e faz uma descrição entusiástica da terra: “os arredores são os mais românticos que se possa imaginar, com alguns morros muito altos e cobertos de grande variedade de árvores; nas várzeas há propriedades rurais magníficas e também fazendas de açúcar, milho, arroz, ervilha, feijão, inhame, batata-doce, pepino, verduras para saladas e outras, tudo na maior perfeição. Há uma abundância exuberante de frutas tropicais, e os mercados estão diariamente supridos de peixes, carnes de aves e de vaca de óptima qualidade e a preços bem baratos”. Por outro lado, enaltece as mulheres que “em sua maioria são lindas e, embora delicadas e pequenas, são elegantemente bem formadas e parecem recatadamente sedutoras”. No entanto, apesar de graciosas, do garbo cativante como caminham e da “elegância superior do talhe com que a natureza as abençoou, O’Neil lamenta que “não tenham mentes igualmente cultivadas”. Isso causa uma profunda impressão e um lamento forte ao cronista viajante.
TERRA DE ELEIÇÃO – “Minha primeira intenção foi aproveitar todas as oportunidades para observar as maneiras e os costumes dos habitantes, tendo tido uma impressão muito favorável” (diz O’Neil em Salvador da Bahia). E descreve-nos em pormenor um sumptuoso banquete que lhe foi oferecido pelo padre Francisco Gomes, que sabia conversar fluentemente em português, espanhol, inglês, francês, alemão e latim, e era, pelas suas qualidades, “motivo de honra para a natureza humana”. Primeiro prato: caldo de galinha, leitão assado, peru, rosbife, verduras, vinho do Porto e Madeira; segundo prato: galinha, caça, guisado e verduras; o terceiro: massas e doces de todo tipo; o quarto: grande variedade de “peixes que existem nestes mares”; sobremesa: frutas tropicais; e vinho fresco servido entre cada prato. “Um escravo servia à mesa e trocava os copos toda vez que bebíamos; e sempre que os pratos eram retirados, eram postas diante de cada um lavandas de prata para lavar os dedos”. O viajante apercebe-se, entretanto, de que as sobras do banquete iam directamente, segundo lhe explicaram depois, para “uma casa que abrigava pobres, aleijados, cegos e idosos”, o que considera ser um exemplo “gratificante”. O Brasil é uma surpresa permanente. Surpresa positiva, que atrai este súbdito de Sua Majestade britânica. O’Neil fala com leve simpatia pelos portugueses e sempre com incontido orgulho pelos benefícios da acção dos seus para implantar na América do Sul uma corte europeia…
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Guilherme d’Oliveira Martins