A VIDA DOS LIVROS
de 16 a 22 de Novembro de 2009
«Os “Vencidos do Catolicismo” – Militâncias e Atitudes Críticas (1958-1974)» de Jorge Revez (Centro de Estudos de História Religiosa – Universidade Católica Portuguesa, 2009) é a publicação de uma dissertação de mestrado, onde se analisam os acontecimentos protagonizados pelo catolicismo inconformista português, de 1958 a 1974, desde o ano intensíssimo em que a candidatura de Humberto Delgado, o memorando de D. António Ferreira Gomes, Bispo do Porto, a Salazar e o início da “Aventura da Moraes” de António Alçada Baptista constituíram factos decisivos para pôr em causa a “frente nacional”, invocada pelo Estado Novo como factor fundamental da sua legitimação. As duas figuras que merecem uma atenção muito especial nesta obra são as do poeta Ruy Belo e do Padre José Felicidade Alves. Na capa é nos dada uma magnífica fotografia da autoria de Duarte Belo.
A COMEÇAR NO POEMA DE RUY BELO
Tal como acontece com o título adoptado por João Bénard da Costa para as suas recordações memorialísticas, Jorge Revez escolheu emblematicamente o título do célebre poema de Ruy Belo, compreendendo-se a sua opção, em virtude da atenção particular que atribui ao poeta de “Homem de Palavra(s)”. Além disso, o tema do paralelismo entre os “Vencidos do Catolicismo” e os oitocentistas “Vencidos da Vida” marca a reflexão da obra, na esteira das análises de António Matos Ferreira e do próprio Ruy Belo, um admirador confesso e estudioso da geração de 1870, sobretudo da figura de Antero de Quental. É, aliás, de salientar neste ponto o facto de a orientação académica caber a Sérgio Campos Matos, um dos nossos grandes especialistas sobre o final do século XIX. Recorde-se, antes de mais, o poema de Ruy Belo, que no seu início diz: “Nós os vencidos do catolicismo / que não sabemos já donde a luz mana / haurimos o perdido misticismo / nos acordes dos carmina burana // Nós que perdemos a luta da fé / não é que nos mais fundo não creiamos / mas não lutamos já firmes e a pé / nem nada impomos do que duvidamos”. Aqui sentimos, com muita nitidez, o ambiente geral do tempo observado. E há um drama evidente, que tem a ver com a claustrofobia sentida numa sociedade que, sem pluralismo, tendia a separar as opções entre o nosso e o contra nós. Aliás, é a mistura entre o ambiente político dos dias finais da autocracia com a crise da Igreja pós-conciliar que torna especialmente dramática a situação portuguesa. Afinal, como afirma o Padre Manuel Antunes não estamos perante uma questão puramente portuguesa, apesar de ganhar aqui (como em Espanha) contornos especiais em razão dos constrangimentos políticos existentes. Daí que entre os católicos os acontecimentos que a obra refere tenham sido sentidos como ferida aberta, em carne viva – facto bem simbolizado não só na fotografia do engº Francisco Lino Neto, com a cabeça ensanguentada, depois de ser atingido pela polícia de choque na manifestação de apoio ao General Delgado, mas também nos doloridos poemas de Ruy Belo da fase final. E o poeta dirá, profeticamente: “a história do catolicismo português actual, a fazer um dia, não pode deixar de ser uma história dolorosa”. Aliás, a afirmação “não é que no mais fundo não creiamos” revela um carácter de escolha decisiva, que leva o poeta, bem como o Padre José Felicidade Alves, de modo diferente, a uma corajosa demarcação de posições. Nada poderia continuar na mesma. A conciliação confundia-se com traição, e isso era impensável. Afinal, lidas as Escrituras, o escândalo da contradição era enorme e insofismável. “Nesta vida é que nós acreditamos / e no homem que dizem que criaste / se temos o que temos o jogamos / “Meu deus meu deus porque me abandonaste?”. Sente-se a dúvida e a revolta… Como afirma Sérgio Campos Matos: “A modernidade passava também por uma espiritualidade renovada, liberta de dogmas e constrangimentos, aberta aos problemas humanos concretos, ao pulsar da vida, às culturas de protesto que a juventude dos anos 60 ia difundindo numa sociedade bloqueada. Compreende-se que, por essa época, a ‘crise da Igreja’ e até mesmo a ‘crise da civilização’ (P. Manuel Antunes) fizessem parte do léxico dos católicos que ousavam adoptar um pensamento crítico”. Se João Miguel de Almeida em “A Oposição Católica ao Estado Novo” nos faz (como já analisámos oportunamente) uma descrição histórica passo a passo desse tempo, Jorge Revez analisa o drama, centrado em dois caminhos individuais e na sua inserção na história portuguesa. Daí a interrogação sobre o “vencidismo”, mesmo entendendo-se que não há uma geração com coerência intrínseca, nem um projecto marcado (como se nota em “O Tempo e o Modo”, até perante o equívoco sobre a hipótese de um partido democrata-cristão, que Mário Soares julgava possível sob o impulso de António Alçada Baptista).
UM DRAMA PERSONIFICADO
O autor começa por recordar a importância da Acção Católica, como factor de militância dos católicos e de tomada de consciência cívica, bem como os antecedentes inconformistas (Joaquim Alves Correia e Abel Varzim) que culminarão nos acontecimentos de 1958 e dos momentos que se lhe seguiram, no que designa como uma ruptura interna do próprio catolicismo. É o tempo do “aggiornamento” que levará ao Concílio Vaticano II e que coincidirá com o progressivo “descomprometimento” da Igreja Católica com o Estado Novo. Recordem-se, aliás, o documento de Francisco Lino Neto “Considerações dum Católico sobre o Período Eleitoral” (Junho de 1958), os abaixo-assinados de 1959 e o “manifesto dos 101” (de Outubro de 1965). Trata-se de textos fundamentais sobre a necessidade da democratização, sobre a polícia política e sobre a autodeterminação dos povos de África. No último caso, Nuno Bragança empenhou-se pessoalmente em assegurar que o Cardeal Cerejeira recebesse no Vaticano, onde se encontrava, um pedido para não desautorizar os católicos signatários desse documento que punha o dedo na ferida dos temas do pluralismo e do futuro de África. De facto, o Prelado recebeu o empenho e não pôs em causa directamente os católicos signatários, o que os deixou satisfeitos, indo António Alçada Baptista ao Aeroporto da Portela para receber o Cardeal em sinal de reconhecimento.
SINGULARIDADES E SINAIS DOS TEMPOS
“Tenho uma dor chamada Portugal / país defunto talvez unto para nações vivas / Portugal meu país de desistentes / terra mordida por soares dos reis / por antero camilo ou trindade coelho / Suicidou-se nestes homens o país / um país de província Portugal…”. Assim se exprime Ruy Belo. Sentem-se os ecos poéticos de Alexandre O’Neill. É uma reflexão do português e do cristão. E António Alçada sublinha a contradição dramática: “Falou-se então na morte de Deus. Na verdade, era necessário que esse Deus morresse porque estava a tomar o lugar de um outro que se confundia com o mistério da nossa liberdade que é também a consciência de enfrentar um mistério que é a essência do novo Deus que se anunciava”… E Jorge Revez procura dar-nos a chave do que, para si, está em causa, unindo os temas ligados: “o vencidismo desses católicos foi, provavelmente, o resultado ou a expressão de um processo de deslocação cuja movimentação principal seria a da secularização, em que, inconformados com a estrutura religiosa de que faziam parte e face ás novas dimensões da experiência humana com as quais vinham contactando, optaram pela ruptura”. Não estamos, pois, perante um reconhecimento da força do fatalismo. O “rompimento é também, em última análise, uma busca de autenticidade na vivência de uma fé que muitas vezes não se esvaziou por completo, apesar do anterior denominador comum, a igreja, nos finais dos anos 60, ter perdido a sua capacidade mobilizadora e envolvente no quadro da experiência religiosa”. O fenómeno é, assim, amplo, tendo a ver com a secularização e com a modernização (política e social) do país. Estamos diante do que o autor designa como uma “igreja fracturada”, em busca de uma recomposição. “É um catolicismo em movimento e não qualquer forma de fim da religião”. E essa procura de autenticidade e de coerência entre razão e fé já Antero a exprimira com clareza, em 1871, nas “Causas da Decadência”.
Guilherme d’Oliveira Martins