A VIDA DOS LIVROS
de 9 a 15 de Novembro de 2009
“Europa” de Adolfo Casais Monteiro (Confluência, s.d.) é um poema premonitório. Foi lido aos microfones da BBC, na emissão de língua portuguesa, a 23 de Maio de 1945, por António Pedro. Era o fim da guerra europeia e havia uma grande esperança – a de que, depois da tragédia terrível, que tinha deixado o velho continente exangue, seria possível lançar as bases de uma paz duradoura. Como disse José Augusto Seabra, no prefácio à edição de 1991 (Nova Renascença): “Pela voz forte e timbrada de um intelectual então emigrado, António Pedro, esse poema, da autoria de Adolfo Casais Monteiro, um dos nossos mais corajosos poetas resistentes à ditadura, acordou em quantos o escutavam a esperança de que também para Portugal a hora da liberdade iria soar, na nova Europa que se erguia sobre o sangue e os escombros decorrentes da criminosa aventura totalitária hitleriana”.
Ilustração de António Dacosta.
QUE EUROPA?
Vinte anos depois da queda do muro de Berlim, no momento em que estão criadas condições para a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, devemos recordar o que disse Adolfo Casais Monteiro: “Europa, sonho futuro! / Europa, manhã por vir, / fronteiras sem cães de guarda, / nações com o seu riso franco / abertas de par em par”. Assim se inicia o poema, abrindo horizontes, no momento culminante do final da guerra. Havia,nesse momento trágico, a consciência de que a mera lógica nacional, proteccionista, das fronteiras fechadas sobre si mesmas, ou do egoísmo particularista não permitiria a abertura de condições de reconciliação, a partir de instituições e de uma cultura de paz. Não se trataria de esquecer a lógica nacional, nem de subalternizar a diversidade cultural, mas de assentar o pluralismo, as diferenças e a democracia nas complementaridades e na articulação entre a legitimidade das nações e dos cidadãos. Lido à distância o poema contém a ideia de que a democracia exige não apenas a reorganização das nações, mas sim a ligação entre a legitimidade próxima e a legitimidade mediata. “Serás um dia o lar comum dos que nasceram / no teu solo devastado? / Saberás renascer, Fénix das cinzas / em que arda enfim falsa grandeza, / a glória que teus povos se sonharam / – cada um para si te querendo toda”. A ideia de “lar comum”, ou de casa comum, obriga a superar a tentação egoísta dos interesses hegemónicos, que apesar de historicamente conhecidos, conduzem, nos dias de hoje, ao arrastamento dos problemas e à sua não resolução. A recente crise financeira e a ilusão das soluções proteccionistas confirmaram de novo esta ideia, de que a Europa como vontade comum é necessária para a defesa dos interesses de todos e de cada qual. As guerras civis europeias são um dado insofismável e os últimos séculos tornaram-nas insustentáveis e trágicas pelas suas repercussões globais.
UMA HISTÓRIA TRÁGICA
A primavera dos povos de 1848 projectou no continente os ideais da legitimidade liberal, mas acordou as ilusões agressivas dos nacionalismos. A guerra franco-prussiana procurou reformular os impérios, mas abriu a caixa de Pandora, que a Guerra de 1914 agravou e que a Segunda Grande Guerra prolongou, transformando a humilhação do primeiro conflito num confronto de consequências tremendas. O ideal europeu do século XX tem, assim, as raízes num grito de sobrevivência. É esse alerta que Adolfo Casais Monteiro exprime no texto de 1945. “Tua glória a ganharam / mãos que livres modelaram / teu corpo livre de algemas / num sonho sempre a alcançar! // Europa, ó mundo a criar!”. Sente-se, afinal, ao longo do poema, esta preocupação de lançar as bases de uma ordem baseada na liberdade. Contra a violência e a tirania, é a democracia e a ideia de Europa que se ligam. “Que só o homem livre é digno de ser homem”.Entende-se bem o sentido do texto, feito a pensar em Portugal e no destino europeu, e o tempo viria a confirmar a pertinência das palavras. A paz e a reconstrução apenas poderiam fazer-se com “espírito europeu”. O risco de se eternizarem as guerras europeias seria tanto mais elevado quanto mais prevalecessem as lógicas puramente nacionais. E, por isso mesmo, só depois de caído o muro de Berlim foi possível regressar à compreensão e à actualidade do texto de Casais Monteiro, porque só então poderia fazer sentido a pertinência de um “lar comum europeu”. Mesmo assim, a Europa pôde preparar, durante a guerra-fria, através da construção comunitária, as bases de um projecto comum, visando a coesão económica, social e territorial. E são esses fundamentos que poderão permitir realizar o que Jacques Delors há muito propõe: uma União Europeia talvez menos ambiciosa, mas com a audácia de realizar com uma trintena de membros três objectivos cruciais: a paz e a segurança no continente e no mundo; o desenvolvimento sustentável e a diversidade cultural. No entanto, a cada passo, sentimos que falta essa audácia. Prevalecem os pequenos egoísmos (como recentemente vimos no caso da ratificação checa, em que o espírito de Coménio ficou postergado pela lógica meramente nacional) e no combate à crise económica há manifestamente falta de uma coordenação de vontades, que ficou patente perante a maior eficácia e oportunidades das medidas norte-americanas. Não se julgue, porém, que se trata de cair na tentação de um super-Estado ou na ilusão de uma nação europeia. Do que se trata é de contrariar a tendência uniformizadora da globalização com mais diferença europeia – a favor da paz e do desenvolvimento. Infelizmente, continua a haver ausência de Europa na política e na economia mundiais. Desde o governo económico, que falta e é cada vez mais urgente, à pouca capacidade europeia de influenciar o curso dos acontecimentos internacionais, estamos perante o desafio de agir como “potência civil” e como “factor activo de paz”.
UM PENSAMENTO EUROPEU EM PORTUGAL
Se falámos de Casais Monteiro, teremos de lembrar o enigmático Pessoa, que fala de “rosto” e de “olhar esfíngico” de Portugal na Europa. Mas, ao longo do percurso histórico de um velho país europeu, temos de verificar como foi europeia a nossa vocação universal. Neste porto de partida e de chegada, foi europeia a origem, de um reino feito por guerreiros, trovadores, comerciantes e monges, desde Entre Douro e Minho até Coimbra e Alcobaça. Foi europeu o nascimento dos tempos modernos na revolta burguesa e popular de 1383 e na renascença pioneira dos Altos Infantes. Foi europeu o impulso das Descobertas do “Leal Conselheiro” e dos Infantes das Sete Partidas e do Promontório Sacro, na senda de Marco Pólo e com as informações cartográficas de Fra Mauro. Foi europeu o projecto do Príncipe Perfeito, de criar na entrada do Mediterrâneo uma potência moderna e universal… Assim, a Europa começou por fazer Portugal. Depois Portugal fez a Europa, arrastando-a, na interpretação de Eduardo Lourenço, para o seu destino universalista. E lembrem-se as “duas Europas”, as duas razões: a ibérica, castiça, mística e lírica; e a central e nórdica, do mercado, da modernidade e da ciência. De facto, o imaginário português foi condicionado por essa dicotomia – de um lado, o Quinto Império e o lusitanismo e de outro a Crítica ilustrada. De um lado, de Vieira a Pascoaes, de outro, de Damião de Góis a Sérgio. Mas cabe-nos compreender que as duas razões se encontram e se completam. E se dúvidas houvesse, o exemplo do Padre Vieira é dos mais significativos: quem duvida que o seu projecto messiânico era fundamente ancorado numa estratégia racional (desde o regresso dos judeus à fixação económica)? Mas o enigma está nos quatrocentos anos (desde 1580) em que “o desencontro entre o ser de Portugal e o ser da Europa se revela de consequências negativas para a nossa consciência”. É a reflexão de Eduardo Lourenço que seguimos – dele, discípulo assumido de Antero de Quental e das “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares”. Longe do entendimento de que a Geração de Setenta (e, antes dela, Garrett e Herculano) foi decadentista, do que se trata é de ler o vencidismo, mais irónico do que sério, como um desafio de reconhecimento de que a Europa continua a ser um horizonte de emancipação, cosmopolita e universalista. Fora do fatalismo, trata-se de dizer que só se formos fiéis ao sentido crítico e ao patriotismo prospectivo poderemos partir da “maravilhosa imperfeição” para o desenvolvimento. Fiéis ao sentimento e à razão, à história e ao futuro, cientes da fecundidade de uma ideia aberta de auto-instituição da sociedade, ligando democracia e Europa, poderemos olhar para vante construtivamente. Sérgio, Proença e Cortesão estavam imbuídos desse anseio. Europa e liberdade devem estar ligadas – sendo o humanismo universalista o horizonte desse desígnio. E Lourenço, ainda ele, alerta-nos: “A nossa entrada na Europa, que podia ser apenas aproximação forçada e exterior, como em parte o continua sendo, era – é – também a entrada da Europa em nós, confronto e participação não apenas nos mecanismos de construção europeia, mas imersão mais intensa, mau grado as aparências em contrário, no magma complexo da herança cultural e simbólica da Europa” (A Europa Desencantada, ed. Visão, p. 149). Mas que Europa construímos? Este Tratado de Lisboa não é um “abre-te Sésamo”, não pode resolver as incapacidades, os egoísmos e a tentação burocrática, mas pode introduzir a pequena semente de mostarda da democracia, da cidadania e da coordenação nos interesses comuns. E comecemos pelo controlo da subsidiariedade pelos Parlamentos nacionais! Só articulando as legitimidades dos Estados e dos cidadãos poderemos avançar. Entenda-se que, assim, poderemos ganhar todos. Ligando razões, favorecendo a diversidade cultural e tendo a audácia de distinguir o que é próprio e o que é comum. Mas defendendo em comum o que é comum, sob pena de nações e Europa se destruírem…
Guilherme d’Oliveira Martins
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