A Vida dos Livros

“A Viagem do Elefante” de José Saramago

“A Viagem do Elefante” (2008) de José Saramago constitui um relato metafórico sobre a essência das viagens.

A VIAGEM COMO METÁFORA

A metáfora da viagem está bem presente na obra de José Saramago. Quando percorremos Portugal de lés-a-lés, entendemos que o movimento é uma necessidade de entender as pessoas e de compreender a cultura, como sementeira permanente. “A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. (…) O fim da viagem é apenas o começo de outra”. Lembramo-nos bem como José Saramago termina a Viagem em Portugal. Se Portugal tem muito para mostrar, e se uma viagem é sempre uma procura de nós mesmos, tal corresponde à ideia de peregrinação, fiel à sua etimologia de “per agros”, compreendendo-se o fascínio de imaginar uma viagem entre Lisboa e Viena de Áustria, no longínquo ano de 1551. Tudo começou em Salzburgo, por ocasião de uma conferência para alunos de Língua e Cultura Portuguesa, num jantar num restaurante chamado “O Elefante”, que invocava o elefante indiano oferecido por D. João III a seu primo o arquiduque Maximiliano da Áustria, genro dos imperadores Carlos V e Isabel de Portugal, irmã do rei português. O romance representa uma metáfora da vida humana, com um longo percurso e um final inglório – uma morte, um ano depois da chegada do magnífico animal, tendo este sido esfolado, acabando as patas dianteiras transformadas em recipientes para guardar bengalas e guarda-chuvas…

SALOMÃO AJUDA A COMPREENDER 

O famoso elefante Salomão tornar-se-ia Solimão, como o célebre sultão otomano, e Saramago explica-nos que, “como deveríamos saber, a representação mais exata, mais precisa, da alma humana é o labirinto”. E tudo é possível. No romance, a viagem europeia foi apenas o epílogo de um longo cativeiro e de um interminável caminho. Desde Goa, seis meses acorrentado no tabuado do convés de um galeão. Chegado a Lisboa, seria sujeito a uma longa exposição num cercado em Belém, durante dois anos, para gáudio da curiosidade dos visitantes. E nesta triste aventura, explica-se como a vida é governada por imprevisíveis caprichos. D. João III não quis ficar atrás de seu pai na organização de uma embaixada exótica. E o nome do cornaca, Subhro, que significa “branco”, não é mais que uma ironia, tendo em consideração a sua origem e a sua tez. E esses caprichos partilhados entre o Rei de Portugal e o Arquiduque de Habsburgo traduzem-se numa espécie de metamorfose, na qual o cornaca deixa de se considerar indiano, passando a Subhro-Fritz, nunca mais regressando a Lisboa, sem que se saiba exatamente porquê, e o elefante, em nome da sua magnificência, passa a ostentar ricas roupagens que o tornam momentaneamente uma curiosidade ambulante – levando às costas talvez a mais rica gualdrapa do mundo…

Na viagem ficam demonstrados a divisão e o decaimento da Europa. E o romancista escolhe propositadamente o intervalo civilizacional que é o Renascimento para mostrar a desorientação política e de valores. À metáfora do labirinto, junta-se a alegoria de uma Europa de princípios religiosos decadentes. Francisco I de França, Carlos V da Áustria, I de Espanha, ou o Papa Leão X, o cardeal João Lourenço de Médicis, protagonizam um tempo de profundas dúvidas, em pleno Concílio de Trento, na sequência da crise das indulgências. A Europa medieval tinha deixado um vazio, que deu lugar ao complexo pano de fundo deste romance, permitindo ao autor usar alegorias e metáforas que prendem o leitor e equacionam questões fundamentais bem conhecidas dos leitores de Saramago. Assim, a desorientação descrita na caminhada de Salomão e a condução do cornaca constituem o retrato de uma Europa em convulsão.

UMA BIOGRAFIA DE SETE VIDAS

Miguel Real e Filomena Oliveira procedem em As 7 Vidas de José Saramago (Companhia das Letras, 2022) a uma análise circunstanciada e de qualidade da biografia do escritor, no ano em que se assinalam os cem anos do seu nascimento. “Para o escritor, o sentido da vida por si criado é indubitavelmente, a literatura, enquanto construção de um caminho de salvação. Sem a literatura – tradução e criação autoral – Saramago teria sido outro homem e a sua vida teria sido a de outro homem. Que homem teria sido esse? Desconhecemos e consideramos supérfluo aventar hipóteses que nem de perto se realizaram”. Para cada uma das suas obras ou dos momentos da vida, poderemos pensar num cenário alternativo, que não aconteceu. A personalidade do autor já consagrado teria permitido outro desenvolvimento, o de tradutor, jornalista, editor…

É a literatura, porém, que marca o percurso, como labirinto e metáfora. E quando José Saramago fala de Aquilino Ribeiro ou mesmo de Raul Brandão, reconhecendo a sua influência, salienta a capacidade de compreenderem a literatura como o melhor modo de assumirem o mundo e a existência. Há assim uma ligação íntima entre literatura e exigência ética. E as sete vidas de José Saramago correspondem a uma procura permanente, à viagem realizada sempre com duas dimensões; a interior e a exterior. Que sete vidas? A primeira, da Azinhaga ao desejo de uma imaginária Josephville, cidade de José (1922-1938) – o diálogo entre as origens difíceis e a aspiração utópica, libertadora relativamente à cidade fechada. Depois, na segunda vida é o escritor que falha, mas que procura a conquista da primeira muralha da mítica Josephville, perseguindo a credibilidade social (1939-1953). A terceira vida leva-nos do Inferno ao Purgatório, do tentativo escritor ao editor, enquanto raiz ainda longínqua de uma escrita madura (1954-1971). Feito crítico, o autor começa a conhecer as manhas da “corporação” literária, mas não deseja submeter-se. A quarta vida, é a de Saramago cronista e editorialista (1968-1976), libertado dos choques e equívocos entre editor e autores. E quase tudo muda. Nas crónicas, em Deste Mundo e do Outro, encontramos o confronto aberto entre a cidade real e Josephville, como cidade ambicionada. Aqui está o essencial, anunciando o romancista que viria a seguir. O interesse e os elogios de Rodrigues Miguéis merecem atenção. É a quinta vida, a de Saramago escritor, que finalmente aparece. A ficção surge como iluminadora da História. Levantado do Chão põe na escrita o drama e o sangue de um país que tinha de se libertar do fatalismo da fome. E germina o realismo mágico do Memorial do Convento, enquanto “realismo de portas abertas”, com um narrador originalíssimo, surgindo na calha o poeta que com Camões Saramago mais admira – Ricardo Reis. Josephville é, deste modo, conquistada e chega a sexta vida – a da consagração internacional (1990-1997). E o Ensaio sobre a Cegueira constitui “a reflexão de um escritor e cidadão adulto, maduro, humanista, mas cético sobre o valor da Humanidade, concluindo ser necessário um sobressalto ético para despertar e desviar o Homem e a história de um evidente caminho para o abismo”. E chegamos à sétima vida – o Prémio Nobel em 1998 e a demonstração de que, afinal, a Cidade de José, Josephville, é o mundo inteiro, lugar de liberdade e deveres fundamentais. E é tempo de seguir viagem com Salomão até Viena…

Guilherme d’Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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