O Protagonista Ausente
por João Bénard da Costa
1. Quem leu as minhas duas últimas crónicas (PÚBLICO, 16 de Julho, PÚBLICO, 23 de Julho) sabe já que fui a Génova para ver Rubens e, sobretudo, a exposição L’Età di Rubens.
Eu sabia, à partida, que não ia ver uma grande exposição monográfica, uma dessas tantas dedicadas ao pintor. Se fosse esse o meu objectivo, melhor seria viajar uns meses antes e ir até Lille, onde, neste mesmo ano, se reuniram muito mais obras dele. Mas sabia que ia ver os palácios que marcaram Rubens para o resto da vida (os róis de Rubens) e sabia que ia ver – no Palazzo Ducale – os Rubens encomendados pela riquíssima oligarquia genovesa, a primeira a genuflectir perante o génio do pintor. A maior parte desses Rubens partiram de Génova há muito tempo e estão espalhados pelos museus da Europa e da América. Se, agora, boa parte deles voltaram a Génova, foi para orientar um centro mais construído em torno do seu fantasma do que da sua presença. O poder de Génova – poder imenso nos séculos XVI e XVII – é inseparável da imagem que Rubens deu desse poder, quer através do famoso livro que dedicou à Strada Nuova, de que já aqui falei, quer através dos fabulosos retratos dos grandes senhores e das grandes senhoras de “La Superba”, retratos largamente devedores de Tiziano, mas onde a grande pintura veneziana se funde com a pintura flamenga para criar uma nova majestade e uma convulsão nova.
“Uma cultura artística europeia” – escreveu Argan – “no século em que a Europa politica moderna se fundou” (século XVII, explico eu) “só podia nascer da confluência de duas grandes tradições: a italiana e a flamenga. O ponto de convergência foi Génova, a cidade que, após a vitória de Lepanto, quando o tráfico mediterrânico se libertou da ameaça turca, assumiu uma importância económica e politica verdadeiramente europeia”. Capital Europeia da Cultura, no preciso ano em que se comemoram os 400 anos da primeira visita de Rubens a Génova, os promotores das festividades souberam, argutamente, voltar-se para Rubens, a fim de redimensionar a cidade nessa perspectiva, entendida, agora, ao sabor dos ventos que sopram e confiando ao tempo de Rubens essa viagem de ida sem volta da Europa do século XVII à Europa de hoje. Não é por acaso que, à saída do Palazzo Ducale, o visitante depara com uma transcrição, em enormes caracteres, de um artigo de um tal Armando Torno (Corriere della Sera, 10 de Março) em que se recorda o grego Simónides e a célebre passagem em que se diz que a cidade é mestra do homem. Acrescentam-se depois estas linhas sintomáticas: “Um passeio na via Garibaldi equivale a uma viagem na arte e na beleza. Basta caminhar alguns minutos nessa rua para compreender o que é a Europa”. Dêem o devido desconto aos lugares-comuns. Não se compreende (eu pelo menos não compreendo) o que é a Europa, mas compreende-se o que foi a Europa, ao tempo em que o maior dos seus pintores foi também um dos maiores dos seus diplomatas e se moveu incessantemente entre a Flandres natal, a Itália dos papas, dos doges e dos Gonzaga de Mântua, a Espanha dos Filipes e a França de Luís XIII, aprendendo com todos e a todos fecundando.
2. Um pouco de cronologia nisto, por favor. Era chegado o tempo dela e não vos faço nenhum favor. Para poupar tempo e espaço, refreio-me sobre as origens familiares de Rubens e as reviravoltas religiosas da família. Saibam apenas que o pai de Rubens só escapou à fogueira, por adultério e bruxedo (amores com a Princesa Ana da Saxónia, mulher de Guilherme o Taciturno) porque a própria mãe de Rubens jurou, sobre a Bíblia, pela vida dela e dos quatro filhos, que o marido jamais lhe fora infiel. Marido que foi huguenote e depois católico, conforme quem mandava na Flandres e o poder dos espanhóis nela. Mas diz-se que o catolicíssimo filho, futuro servidor do Papa e de majestades fidelíssimas, lia Lutero às escondidas e sempre foi atraído pelas ciências ocultas. Aos 23 anos (Rubens nasceu em Siegen em 1577), já com alguma reputação como pintor, fez a primeira viagem a Itália, onde Vincenzo I Gonzaga, duque de Mântua, o contratou para a sua corte. Mantegna, os maneiristas, o Giulio Romano do Palazzo del Te, foram os mestres, pacíficos ou frenéticos, da sua exuberante teatralidade. Oito anos viveu Rubens em Itália, que percorreu de lés a lés. Em 1603, o Gonzaga confia-lhe a primeira missão diplomática. À frente de um largo séquito, foi a Madrid presentear Filipe III e conquistar as boas graças do Duque de Lerma. Foi no regresso que entrou em Itália por Génova, tinha 27 anos. Ambrogio Spinola e Nicola Pallavicino, dois dos mais magníficos entre os magníficos de Génova, amaram-no e disputaram-no, o que lhe trouxe invejas e ciúmes, de que sempre soube desembaraçar-se em proveito próprio. Foi nesse ano (ou numa segunda estada, em 1605) que recebeu a primeira encomenda muito importante: o retábulo do altar-mor da Igreja de Jesus, representando A Circuncisão. É certamente a mais operática das circuncisões jamais pintadas, com a espectacular divisão entre a cena bíblica (uma Nossa Senhora ainda rafaelesca, desviando os olhos e pousando a mão no ombro) e o céu à Giulio Romano, com miríades de anjos e os tão poderosos efeitos de claro-escuro.
Da mesma época, e para a mesma Igreja, são Os Milagres do Beato Inácio de Loiola, não menos teatrais e pré-barrocos. Mas são os únicos Rubens que em Génova nunca mudaram e nunca saíram da igreja para onde foram pintados. Eles o confirmaram como favorito da urbe e da Soberba e parecem ter determinado a longa série de encomendas (1606-1607) que se traduziram em dezassete retratos da nobreza velha e da nobreza nova da cidade, dos quais se conservam doze. O mais célebre – agora espalhado por toda a cidade como marca emblemática da Capital da Cultura – é o de Brigida Spinola Doria, actualmente na National Gallery de Washington. Os publicitários retiveram-lhe os olhos e o sorriso, mas o mais espantoso é o vestido de seda, captado em “plano americano” e que foi provavelmente a veste nupcial da mulher de Giacomo Doria, retratada aos 22 anos. “Il Signor Pietro Paulo Rubens, gentilluomo fiamingo et eccellentissimo Pittore e molto amico mio”, como o apresentava Paolo Agostino Spinola, primo e cunhado da imponente Brigida, assinou, nesse retrato, uma das suas obras-primas (em todo o sentido da palavra) reforçando a representação (em exteriores, com a presença de uma arquitectura clássica no fundo) e prolongando a altura de Brigida através de uma cortina encarnada escuríssima que esvoaça entre as duas colunas que a enquadram. As mãos compridíssimas e branquíssimas, o leque na mão direita, e a entufadíssima gola de rendas, contrastam com o rosto nubente (quase tímido) tornando aquela mulher numa “montagna di stoffa”, salpicada de jóias, nascida para a luz e feita de luz, ser de prata, emanador de tal luxo e tal calma que a volúpia só decorre do excesso delas. Mas é esse o meu retrato favorito? Ou é o de Gian Carlo Doria, o marido, retrato equestre onde tudo voa, desde o cavalo de patas no ar e cauda imensa, até ao cão que, na mesma posição, galopa tanto como o cavalo, à frente dele. Árvores, montada, cão, céu, tudo voa, tudo está em pé, no ar, menos o retratado, insolitamente calmo, como se nenhum movimento deste mundo o pudesse alterar. E esse é outro dos raros Rubens que a Génova pertence e em Génova ficou (no Palazzo Spinola). Os outros vieram de Bucareste ou de Dublin, de Dorset ou de Karlruhe, ou de colecções particulares. Mas percorrendo-lhes os rostos e os apelidos, é a imagem de Génova que nos trazem, tal como nela mesma a eternidade a fixou, no auge do seu poder político e humano. 3. Em 1608, aos 31 anos, Rubens regressou a Antuérpia e nunca mais voltou nem a Génova nem a Itália. Mas encomendas de Génova continuaram a chegar-lhe ao longo da vida. Dediquei a última crónica à mais extraordinária, a Juno e Argos. Mas em Génova se reuniram agora, porque para Génova foram pintadas, telas tão célebres como o Lamento de Vénus sobre a morte de Adónis (Ah, esse corpo feminino que levantando a túnica de Adónis vê, do corpo dele, a única parte que o espectador não vê!), o Hércules e Omfale do Louvre, A Serpente de Bronze da National Gallery de Londres, a Djanira ou o Hércules no Jardim das Hespérides da Sabauda de Turim, etc, etc. Quadros de diversíssimas épocas, doutros Rubens doutras eras, mas que, reunidos em Génova, após uma diáspora de séculos, parecem autorizados pelos retratos majestáticos e tizianescos do inicio, como se nestes começasse a tempestade de cores e de corpos que chegaria nos anos da maturidade. Centrados no Palazzo Ducale ou ainda dispersos por outros palácios, são 41 os Rubens reunidos nesta primavera genovesa. Em torno deles, os maneiristas de Génova, Van Dyck, que lhe sucedeu como pintor das doges, Caravaggio de quem, segundo a lenda, Rubens teria trazido de Roma o misterioso Martírio de Santa Úrsula, Carracci, Dominichino e tantos, tantos outros. Nem se pode dizer que a maior presença caiba ao pintor, cabendo embora ao tempo dele. Mas, da história de Génova, tal como a li nos “róis”, tal como a vi nos palácios e nos jardins, Rubens é o grande protagonista ou volta a ser o grande protagonista de uma história que se prolonga até quase vinte e cinco anos depois da morte dele (1640). Protagonista ausente (tão pouco tempo viveu em Génova, tão poucos quadros habitam Génova como morada fixa) mas único construtor da imagem de Génova e da visão de Génova. Sem ele, o imaginário de Génova e a transfiguração de Génova não existiriam, nem no tempo nem no espaço Quando pintou para a Torre de la Parada de Filipe IV, as Metamorfoses de Ovídio, diz-se que pressentiu a morte, ao traçar a metamorfose da Via Láctea. Segundo o seu secretário, sempre sustentou, baseado na arte alquímica, “que a Via Láctea era o caminho abandonado em que se podiam encontrar os vivos e os mortos, em direcção a uma luz sem tempo”. Génova, na Strada Maggiore, talvez seja a miragem terrena mais próxima dela.
(31 de Julho de 2004, Público)