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A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA

São aqui publicadas as crónicas de João Bénard da Costa no jornal “Público”. Esta semana: “SOPHIA: NO DIA DOS TEUS ANOS”


SOPHIA: NO DIA DOS TEUS ANOS


por João Bénard  da Costa


Hoje, para mim, que escrevo nas primeiras horas de 6 de Novembro; ontem, para os que me estiverem a ler no dia em que este jornal sair; hoje ou ontem, hoje como ontem, Sophia de Mello Breyner faz anos.


Nunca tratei Sophia por tu. Ela também nunca me tratou por tu. Sempre nos tratámos por aquela terceira pessoa do singular, a que só a língua portuguesa se dá assim e que é a forma mais bonita de vocativo que conheço. “Sophia, o que é que a Sophia pensa de …”; “João, o que é que o João acha de…”. Mas não me deu jeito nenhum escrever “no dia dos seus anos” (seus de quem?) ou “no dia dos anos de Sophia”, ou “no dia dos anos da Sophia”. Os poetas, às vezes, exigem o tu, o tu que, por exemplo, Jorge de Sena usou quando se lhe dirigiu perguntando-lhe: “Versos e filhos como os dás ao mundo? / Como quem se parte? Como quem se reparte? / Ou como quem a ti não volte mais?” (cito de cor). E Jorge de Sena também não tratava Sophia por tu.


Durante toda esta semana pensei muito em Sophia. A Maria convidou-me para ir com ela, com os irmãos e com alguns amigos de Sophia a Madrid, onde outra Sofia (da Grécia como ela, da Grécia diferentemente dela) lhe ia dar, na pessoa do Miguel, um dos maiores prémios que ela já recebeu, o Prémio Reina Sofia. Disse logo que sim. Mas, à última hora, uma angina áfona tirou-me a voz e a presença. Fiquei a ver “o filme” em vale de lençóis. Doeu-me ter faltado. Pensei se Tiepolo teria presidido à cerimónia. “Vénus a encomendar a Vulcano que forjasse as armas para Eneias” ou “Neptuno no seu carro com as Nereides e outras divindades do Olimpo e também as figuras alegóricas dos Vice-reinados americanos da Coroa Espanhola”. As nuvens tão castanhas, os cavalos tão alados, tantos anjos a voar. A teatralidade barroca e a pompa espanhola (duas coisas que Sophia sempre detestou e eu sempre amei) inclinando a majestade para aquela que, como Antigona, “não aprendeu a ceder aos desastres” e para quem a obra de arte sempre “fez parte do real, e é destino, realização, salvação e vida”. Terá sido “real” essa cerimónia? Mas a coroa espanhola curvou-se perante um poeta português. Sophia.


Nunca me hei-de esquecer da primeira vez que vi Sophia.


Eu tinha doze anos, ela casara poucos meses antes com Francisco Sousa Tavares. Nesses tempos, uma prima dela, grande amiga da minha Mãe, costumava passar os verões connosco na Arrábida. A Sophia e o Francisco foram visitá-la e visitar-nos. Jantaram em nossa casa. Nesses tempos, se bem me lembro, eu costumava sair logo a seguir ao jantar, para ir ter com amigos da minha idade. Mas, nessa noite, sei lá porquê, não fui. Fiquei na varanda com os crescidos.


Era uma noite de lua cheia. A Sophia, tenho a certeza disso, estava vestida de branco. Calças brancas, camisola branca. A certa altura começou a recitar. Seriam versos da Poesia, publicado em 1944, ainda ela era solteira, ou do Dia do Mar, publicado nesse mesmo ano de 1947, não sei se antes se depois dessa noite da Arrábida. Pela primeira vez, na minha vida, eu ouvia dizer versos assim, escandidas as sílabas, como só ela o sabe fazer, “numa nobreza de dicção que, como raras poesias do seu tempo, é irmã da majestade subtil de Pascoaes e das grandes odes de Álvaro de Campos, cuja linhagem continua” (Jorge de Sena). Foi nessa noite que ouvi, pela primeira vez, alguém falar das “aves repentinas”. O poema existia, não o inventei e a referência está no poema Paisagem da Poesia. “Passavam pelo ar aves repentinas, / O cheiro da terra era fundo e amargo, / E ao longe as cavalgadas do mar largo, / Sacudiam na areia as suas crinas”. Sophia – como era bela Sophia aos vinte anos! – parecia-me uma aparição, tão repentina como essas aves que ela convocava. Na minha memória, toda a noite, todo o luar e toda a beleza, se imobilizaram nesse momento e nessas palavras.


Depois, passaram muitos anos.


Uma vez, fui ouvi-la ao Tivoli comentar a versão de Duvivier da Anna Karenina, com Vivien Leigh. Ouvi-a recitar, em francês, o poema de Tolstoi “A Isnaia Poliana”, que está gravado no túmulo do escritor. “Des myosotis au printemps”. Lembro-me de a ouvir dizer que em Tolstoi havia perdão para toda a gente. “Só um homem não pede justiça e não pede verdade. Só um homem não foi perdoado”. Napoleão. Para ela, sempre foi o primeiro dos abutres e mais tarde soube que sempre se recusou a entrar nos Invalides.


Mas foi só nos anos 60, depois dessa presença sonhada na Arrábida e vista, como vira Vivien Leigh, do fundo de um cinema para a tela dele, que eu comecei a ser “muito lá de casa” (essa casa da Travessa das Mónicas, onde sempre entrei com uma estranha emoção) e Sophia começou a ser “muito cá de casa”, dos tantos jantares, das tantas noites de Sintra.


Entretanto, eu lera o Coral (1950), ainda hoje o meu livro secretamente favorito dela, No Tempo Dividido (1954) e Mar Novo (1958). Entretanto eu ouvira os discos dela, sobretudo aquele pequenino de 45 rotações, que tanto me tenho esforçado (sem conseguir nada) para que seja reeditado. Quantos dias, a ouvir “E agora ó Deuses que vos direi de mim? Tardes inertes morrem no jardim / Esqueci-me de vós e sem memória / Caminho nos caminhos onde o tempo / Como um monstro a si próprio se devora”. A ouvir o “Marinheiro, sem Mar” (“Porque ele se perdeu do que era eterno / E separou o seu corpo da unidade / E se entregou ao tempo dividido / Das ruas sem piedade”). A ouvir a “Meditação do duque de Gândia sobre a morte de Isabel de Portugal” (“Nunca mais servirei senhor que possa morrer”). Entretanto, começara a publicar-se “O Tempo e o Modo” (1963).


E foi “O Tempo e o Modo” que fez o milagre. O António Alçada Baptista era amigo da Sophia e do Francisco e, um dia, levou-nos lá, ao Alberto Vaz da Silva e a mim, que há dez anos andávamos a escrever-nos cartas sobre Sophia e a recitar-lhe os poemas de cor e salteado.


Ela achou graça àqueles “miúdos” em êxtase, que lhe pediam incessantemente que “dissesse”, ou seja nos desse, na voz dela, a poesia dela. Os filhos de Sophia (crianças ou adolescentes) queriam saber qual de nós era o tempo, qual de nós era o modo.


À Sophia e ao Francisco juntava-nos outra espécie de poética. O pranto por esses negros anos 60, pela “noite / densa de chacais / Pesada de amargura. Este é o tempo em que os homens renunciam”. Os quatro, entre tantos outros, fomos réus num processo que o “velho abutre” nos moveu. As palavras a que ela, um dia, chamou “deslumbradas”, são as que eu mais associo ao nosso combate político, às discussões na grande sala do Centro Nacional de Cultura, então dirigido por ela e pelo Francisco, ou pelos dois, aos abaixo-assinados que tão poucos se levantaram para assinar. “Pedra  rio     vento     casa /   Pranto     dia      canto      alento /   Espaço     raiz      e    água / Ó minha pátria e meu centro / Me dói a lua me soluça o mar / E o exílio se inscreve em pleno tempo”.


 Pranto ainda porque:


“Nunca choraremos bastante quando vemos
O gesto criador ser impedido
Nunca choraremos bastante quando vemos
Que quem ousa lutar é destruído
Por troças por insídias por venenos
E por outras maneiras que sabemos
Tão sábias tão subtis e tão peritas
Quem nem podem sequer ser bem descritas”.


 
Juntos atravessámos o “Tempo de solidão e de incerteza. Tempo de medo e tempo de traição. Tempo de injustiça e de vileza. Tempo de negação”.


Estou a citar, com abundância, o Livro Sexto (1962), o livro que lhe deu o primeiro prémio (Grande Prémio de Poesia da Sociedade Portuguesa de Escritores). E eu estive nesse almoço (1964) em que ela disse que “a poesia é uma moral” e falou da “maçã enorme e vermelha”, “a coisa mais antiga de que me lembro”.


O Livro Sexto como Os Contos Exemplares (1962) são os livros da nudez mais frontal e da insegurança mais forte. Muitos anos mais tarde, uma amiga dela, com posições contrárias, contou-me como se zangou quando leu o último livro. E disse-lhe que não percebia como ela atacava assim pessoas e um meio que “tu conheces por dentro”. Resposta de Sophia: “Esqueces-te que essas pessoas não têm dentro. Só têm fora”.


“Não te esqueças nunca de Thasos nem de Egina / O pinhal a coluna a veemência divina / O templo o teatro o rolar de uma pinha / O ar cheirava a mel e a pedra a resina” Estou já nas Ilhas, livro de 1989.


A uma das Ilhas – a Sicília, a grande Grécia – ainda fomos 5 (Sophia, o Alberto e a Helena Vaz da Silva, a Ana Maria e eu) na viagem mais inesquecível da minha vida, em 1990. A viagem seguinte, tantas vezes adiada, era a Grécia, a Grécia de Sophia. Sophia, doente, desistiu quase nas vésperas da partida, em 1999. Traçou-nos o itinerário, mas já não nos mostrou a safira no fundo do mar de Samos. Mas foram as palavras e os versos de Sophia que nos guiaram por Santorini ou por Delos, como foi o branco vinho dela que bebemos num restaurante diante da “pesada palidez sagrada do Parténon”. “Clareza das ilhas que tanto busquei”.


Um dia, em Epidauro, Sophia quis ouvir a própria voz “desligada de mim”. Eu não consegui desligar dela a voz que ouvi esta semana toda, a voz que ouço no dia dos teus anos. Abriguei-me na memória. Mas o poema da Sophia, que se chama Memória (Ilhas) diz: “Tão nobre espírito / em tão estreita regra / Tão vasta liberdade em tão estreita / Regra”.


Eu não escapei à Regra. Nem na semana de Sophia.


(in Público)

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