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A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA

São aqui publicadas as crónicas de João Bénard da Costa no jornal “Público”. Esta semana: “Cinzas de Verão”.

A PALAVRA DE
JBC
CINZAS DE
VERÃO



por João Bénard da Costa


1 – 1 de Outubro. Para
mim, os anos começam sempre a 1 de Outubro. 1 de Janeiro é só o menos
estimulante dos dias da quadra do Natal, uma espécie de cinzento P.S. (vale para
“post-scriptum”) do Dia do Menino Jesus.
Aos mais novos recordo que, nos
meus tempos, era a 1 de Outubro que recomeçavam as aulas, após as férias que nos
anos sem exame (e dos sete do liceu, quatro eram anos desses) se espraiavam
docemente entre 14 de Junho e 30 de Setembro, dia dos anos da minha avó. Para
mim, espraiavam-se literalmente entre 1 de Agosto e 28 ou 29 de Setembro. 1 de
Agosto era o dia da viagem, entendendo-se por viagem o percurso entre o nº 86 da
Avenida António Augusto de Aguiar, em Lisboa, e a Villa Raul na Arrábida. Os
quilómetros (46) não encolheram com o tempo, mas sem pontes sobre o Tejo
(travessia em “ferry-boat”), camioneta de Cacilhas para Azeitão e mais camioneta
de Azeitão para a Arrábida, o percurso era coisa para quatro, cinco horas a que
se somavam as horas de espera pelas mencionadas carripanas, exclusivo de João
Cândido Bello. Cedo erguer em Lisboa e pôr do sol na Arrábida, onde, felizmente,
havíamos sido precedidos pelas criadas, que já tinham posto a casa mais ou menos
em condições. Tudo era diferente, nos rituais do quotidiano. Não havia luz
eléctrica, a água provinha de uma cisterna e era levada em jarros para os
quartos e respectivos lavatórios. Não havia telefonias nem telefones, não havia
cinemas nem lojas. Havia a praia e os banhos, os passeios na serra. Um silêncio
total. Regressar a Lisboa era passar do século XIX ao século XX. A surpresa de
carregar num interruptor e fazer-se luz, da água a jorros, do telefone a tocar.
À noite, na cama, eu ouvia os silvos dos comboios de Entrecampos e não mais a
nortada a fazer ranger as madeiras das portas e dos tectos. Um ano acabara,
começava outro, ao reencontrar (ou perder) colegas e professores nos pátios e
nas aulas do Liceu Camões. Nunca mais via os primos e as meninas do Verão. Até
outro Verão. Mas não o Verão, como eu não o via, com os mesmos olhos. O tempo
ainda não passava a correr e um ano na adolescência é maior do que a légua da
Póvoa. Nesse tempo, é que a vida eram literalmente dois dias: os dias do Inverno
e os dias do Verão. As coisas então mais importantes para mim também se contavam
a dois: os dias do campeonato de futebol e os dias sem campeonato, começou a
época, acabou a época. Havia, no defeso, alguns sucedâneos (a Volta em Portugal
em bicicleta, por exemplo), mas não era nada a mesma coisa. As temporadas dos
cinemas: os grandes filmes chegavam em Outubro e desfilavam até Junho-Julho,
quando começam as “reprises”. No Verão, muitos cinemas fechavam enquanto os
anúncios anunciavam: “Temporada de 1949-50”. Havia os amores de Verão e os
desamores do Inverno, e só mais tarde começou a ser vice-versa. Havia os pecados
de Lisboa e os pecados da Mata Coberta. Havia as missas em capelas de casas ou
grutas particulares e havia as missas de S. Sebastião da Pedreira ou do
Patronato. Havia um eu de Inverno e um eu de Verão. Como é que eu posso dizer
que o ano não começa a 1 de Outubro?


2 – É fácil darem-me cabo
do sofisma. Afinal de contas estou a falar da infância e da adolescência e,
descontando os anos sem memória, anos desses, em que a vida eram dois dias, não
devem ter sido mais de 12. Numa contabilidade feita de hoje, é menos de um
quinto da minha vida consciente, ou supostamente consciente. Como é que faço
regra de tão breve excepção?
Penso que o cinema tem alguma coisa a ver com
isso. Afinal de contas, a Cinemateca sempre fechou para férias em Agosto. Quando
reabre, costumo eu tirá-las e só a 1 de Outubro retomo a plena
“existencialidade” dela (“existencialidade” ou “essencialidade”?). Mesmo os
Agostos em Lisboa, se nada têm que ver com os Agostos de outrora, não são como
os outros meses. As salas de cinema estão fechadas, os portões da Barata
Salgueiro fecham às 20h, é preciso sair ou reentrar por outras portas. Se os
Agostos da cidade já pouco se assemelham ao que me contavam de outras eras
(“Lisboa, em Agosto, sem a família, é melhor do que Baden-Baden”, contava-se que
contavam) são, mesmo assim, bastante mais tranquilos do que os outros 11
moradores do calendário. Como em tudo, a diferença tornou-se mais pequena, mas
ainda existe e para alguns continua a ser saborosa. De Setembro pouco vos posso
dizer. Hoje, como ontem, é mês em “off” noutros “in”. Mas a 1 de Outubro, sim. A
1 de Outubro tudo recomeça e prometo a mim próprio e aos outros a promessa de
sempre: “Demain je serais sage.” Por exemplo, prometo aos leitores do PÚBLICO
que para o próximo Outubro não escrevo mais chaladices destas. Ocupar-me-ei com
o devido vagar de um discurso do Presidente da República (fez um dos melhores e
mais urgentes discursos dele no dia 30) ou de um político da cena internacional
(dia 30 também foi o dia de Blair).


3 – Mas não estou tão
desacompanhado quanto isso nesta crença outubral. Bem sei que a tendência
dominante é para o 1 de Setembro, mas setembrar ou outubrar não é o mais
importante. O que mais conta, nos nossos ritmos e nas nossas rimas, é esta
vontade de partir o ano ao meio, não onde manda o calendário, mas onde nos
mandam o sol, a lua e os apetites. E aí basta ver por tudo quanto é sítio. Das
omnipotentes televisões aos menos lidos jornais, não há quem não faça a sua
época estival, mais “silly” ou menos “silly”, conforme os usos e os poderes. Por
exemplo, aprendi alguma coisa com uma dessas “especialidades” do Verão deste
ano, no caso em questão a do “Diário de Notícias”. O jornal retomou, em versão
livre, o célebre “questionário de Proust”, assim chamado só porque Proust lhe
respondeu duas vezes.
Nas respostas deste Verão reparei numa recorrência que
me deu que pensar. À pergunta: “Qual o defeito que lhe inspira maior
indulgência”, houve, é certo, a resposta genial de Agustina (“o amor”), mas uma
significativa percentagem (não fiz estatísticas) respondeu com a estupidez ou a
ignorância.
Que a estupidez seja um defeito é discutível (embora um amigo
meu, católico, não hesitasse em a considerar um pecado, e mesmo o único pecado
veramente mortal), mas que, sendo-o, seja, hoje, tão genericamente desculpável,
deu-me que pensar. A condescendência – ou compreensão – com a ignorância ainda
mais. Nunca fui muito nessa conversa de “gerações rascas” ou coisas quejandas.
Mas quando tanta gente, nova em anos, se mostra tão tolerante com a estupidez e
com a ignorância, pergunto-me se alguma coisa mesmo não se está a passar. “Morte
à inteligência” foi um grito horrível ouvido há menos de um século nesta mesma
península. Ficou para a História a resposta que teve. Essa história e essa
História serão as mesmas habitadas pelos doces domesticadores da estupidez? Já
estávamos habituados aos insultos aos “pseudo-intelectuais” na boca de qualquer
desgraçado que não se sentia amado nem compreendido e sobretudo não compreendia
nem amava o que “essa gente” fazia. Será necessário dar vivas à estupidez ou à
ignorância?
Lembro-me de um filme de 1994 – “Forrest Gump” chamava-se – em
que o herói (Tom Hanks) era uma espécie de atrasado mental, que só tinha uma
pálida ideia dos problemas e conflitos americanos ou mundiais. O filme
retratava-o como um típico produto do que se chamou a “baby boomer generation”,
a que foi dominante entre a ascensão de Elvis e a queda de Nixon. Mas aquilo que
no livro (de Winston Groom) serviu de base ao filme – uma sátira, mais ou menos
verrinosa, contra essa geração – transformou-se, no filme de Zemeckis, numa
apologia do “pobre de espírito”, que triunfava, porque milhões de americanos se
achavam iguais a ele e queriam que a América e o mundo fossem de homens como
ele. Quando vi o filme, tive o primeiro prenúncio que aquele personagem não
representava um tempo passado, mas um tempo futuro. O êxito desse elogio à
estupidez deixou-me perplexo. Mais ano menos ano, não iria nova minoria reclamar
direitos e a comemoração do Dia do Estúpido? Estúpido fui eu, porque,
infelizmente, essa minoria é maioritária, na América ou em qualquer outro país.
Quando as maiorias se unem, sobretudo em épocas globais, adivinham-se os
resultados.
Em Portugal, sem querer tomar tão pequena parte pelo todo,
fiquei a saber que muitos se não incomodavam nada (ou se incomodavam pouco) com
a ignorância e a estupidez alheias. “Deixa-os pousar”, como se dizia antigamente
na velha história do galo e dos abutres? Talvez seja pior. Porque, olhando o
“Diário de Notícias” de 28 de Setembro, vi, na reportagem da chamada “marcha
branca” (convite tendencial a almas pacíficas e misericordiosas) um cartaz que
pedia para os pedófilos castração e prisão perpétua. Um grupo de monstros
infiltrado entre os manifestantes e que os organizadores não puderam controlar?
Ficava mais descansado se fosse assim. Porque o mais provável é que nem maus
sejam. Que sejam simplesmente ignorantes ou estúpidos, ou as duas coisas ao
mesmo tempo, a mais explosiva mistura humana que imaginar se pode. E isso é, de
tudo, o que mais me assusta.
Resta-me esperar que sejam as últimas cinzas de
Verão e não as primeiras chuvas de Inverno.


3 de Outubro 2003
PÚBLICO

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