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A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA

São aqui publicadas as crónicas de João Bénard da Costa no jornal “Público”. Esta semana: “Última Sexta-feira”.

A PALAVRA DE JBC
ÚLTIMA SEXTA-FEIRA


por João Bénard da Costa


1. De 27 de Maio de 1988 a 27 de Maio de 2005 (nestes dois anos, 27 de Maio calhou a uma sexta-feira), habituei-me ou habituaram-me a ler crónicas minhas nas páginas de um jornal. Primeiro, nos bons tempos de O Independente, que nasceu faz hoje 17 anos e talvez seja eu o único a lembrar-me. Here”s looking at you kid, e o kid é o Miguel Esteves Cardoso, que não vejo há que anos, embora não lhe perca o retrato aos domingos no Diário de Notícias. Entre “casas encantadas” (pois, pois, A Casa Encantada também faz hoje 17 anos) e saques de Roma, por lá andei até Novembro de 2001 ou coisa que o valha, pois sempre fui melhor a datar inícios do que fins. Depois, desde 12 de Julho de 2002 (eu não vos dizia?) aqui no PÚBLICO e já lá vão quase três anos. Ontem (estou a falar do meu ontem de escritor, e não do vosso ontem de leitores) telefonaram-me a dizer que ninguém sexta toda a vida e que aos 17 anos já tenho tamanho para me vestir de domingueiro. Trocado por miúdos: à sexta-feira deixa de haver “casas encantadas”, J. B. C. e conversas de farrapos. Mas nada se perde. Só se transforma. Conversas destas, encantos destes e gente como eu fica melhor ao domingo, para ler na cama até tarde, para levar para a pesca ou para levar para a caça, conforme as estações, os tempos e os modos. Animal de hábitos que sou, virei-me um bocado na cadeira (de couro), mas não tinha nenhuma razão crisálida para dizer que não. Nunca gostei de domingos? É bem verdade e já não gostava 50 anos antes de 1988. Nem dos domingos de Carnide nem dos domingos de pastéis de Belém. Nem dos domingos de Paris, que me lembram o desaparecido que sentia comovido os domingos de Paris (as aspas caíram na tipografia), nem dos domingos da Arrábida, com aquela confusão de camionetes e o pó encarnado a esvoaçar. Nem dos domingos engarrafados da Praia Grande, nem dos domingos dos estádios em que o Barrosa falhava penaltis. Mas também não é aos domingos que tenho que escrevinhar coisas quejandas e, para as reler, narcisicamente, sobra-me tempo, meu Eco. Ao princípio irei estranhar, depois vou-me habituar. Mas sinto um nozinho na garganta, assim como se me despedisse. Não há de ser nada.


2. Mas a verdade é que o dia de ontem me foi muito especialmente especial. Devia estar a lua no carneiro, como diz o Alberto, com quem bebi catarinas à beira-rio. Ao menos bebemos vinho com nome de santa, como ele me lembrou, a certa altura, que alguém dizia em tempos que já lá vão. No carneiro ou não, ia alta a lua, essa lua que, só um bocadinho mais baixa, eu tinha acabado de deixar em Veneza, na antevéspera. Há gente que nasceu com o rabo virado para a dita e nesta semana eu senti-me uma delas. Chegou a altura de vos fazer um desenho, daqueles que me ensinaram há pouco tempo a fazer, para perceberem que não ensandeci definitivamente e que tudo isto pode ter mais nexo do que parece, aliterando ou não. Vamos lá a ver se nos entendemos, que, se não, nem no domingo que vem me convidam para a festa e esta é mesmo a minha última sexta-feira.


3. Subitamente, e por razões que agora não vêm ao caso, mandaram-me ir a Veneza no fim-de-semana passado. Se eu vos contasse o que lá fui fazer, ainda mais louco ou ébrio vos pareceria. Por isso, fico-me por uns instantâneos e julgue-os quem não pode experimentá-los. Nunca me falaram em Veneza sem que eu estremecesse de cima a baixo muito mais do que estremeceu a criada do Tartuffe. Desta vez, medi-me o pulso e não senti nada. Era como se me dissessem que no dia seguinte ia até Vila Franca de Xira. Já estava um bocado preocupado (e outros por mim), preocupado fiquei ainda mais. Mas logo que o táxi castanho largou à desfilada pela lagoa, os fantasmas desapareceram atrás dos postes e renasceu-me a alma nova que tinha metido nem sei bem onde. Depois, o barco moderou a velocidade e, num fim de tarde inacreditavelmente luminoso, desembarquei à porta do Danieli, onde muitas vezes bebera uns copos, mas onde nunca tinha ficado. E fosse pelo Danieli, fosse pelo que fosse, quando saí do hotel a caminho de São Marcos vi coisas que tinha obrigação de ter visto mais vezes, mas que via agora pela primeira vez.
A bem da contenção, fico-me por cinco, que se vai fazendo muito tarde.


4. Reparei que no ângulo sudoeste e no ângulo sudeste do Palácio dos Doges, quero eu dizer no ângulo entre a Margem dos Escravos e a Piazetta e no ângulo entre o Palácio e a Ponte dos Suspiros, os dois capitéis celebram dois dos mais célebres nus da nossa génese. O primeiro mostra-nos Adão e Eva depois de comerem do fruto proibido. Não há serpente, não há deuses. Apenas dois ramos da árvore, um para cada lado, se vão cravar nos sexos de Adão e Eva, simultaneamente os cobrindo e simultaneamente os designando como origem de todo o bem e de todo o mal. O segundo capitel refere-se a um dos episódios mais obscuros do Antigo Testamento. Noé, após ter bebido em demasia, cai no chão a dormir, quase nu, só com as vergonhas cobertas por um trapo. Os filhos surpreendem o velho em tais preparos. Que pensam ou que concebem? Desnudar o pai, ou seja, retirar o trapo para verem o que este cobre. Por que é que o sexo é a obsessão mais visível do Palácio na fachada fronteira ao mar de que Veneza era sereníssima senhora, é coisa que não sei explicar nem nenhum Ruskin me explicou. Mas são essas as armas que desfralda em todo o sentido da palavra, e a história do pecado da carne começou a escrever-se em pedra no século XIV nesse “meravigliosi spigoli di pietra”.
Depois de reparar no sexo reparei no sangue. Na fachada que dá para a Piazetta, o cor-de-rosa evanescente da fachada e das colunas (o cor-de-rosa mais cor-de-rosa alguma vez alcançado) é interrompido duas vezes em duas colunas, que contrastam com todas as outras por um encarnado fortíssimo. Porquê? Aí mo explicaram. Entre essas duas colunas eram anunciadas as penas de morte decretadas pelo Conselho dos Doges. Junto à morte, detinha-se o rosa e o sangue o substituía, efémero e brutal. Aliás, o mesmo sangue é cor da coluna de um metro que hoje está junto à Igreja de São Marcos, mas, em tempos idos, estava entre a coluna de S. Marcos e a de S. Jorge, frente ao mar. Sobre esse tronco de pedra eram degoladas as vítimas que tinham como última visão o dragão vencido ou o leão alado. Reparei – e aí mais parei do que reparei – que, perto do Rialto, na Igreja de San Salvador está a Anunciação mais terrível que alguma vez vi, obra célebre de Tiziano, que mil vezes vira em reproduções e só agora vi em carne e osso. Porque se cobre a Virgem com um véu à aproximação de um Arcanjo aterrador, com asas colossais que dominam o quadro enorme? Porquê tanta luz e tanta cor a acompanhar a descida do Espírito Santo rodeado por anjos álacres e pulcros? Ao fundo, no altar-mor da mesma Igreja, a Transfiguração, também de Tiziano, mostra-nos que nenhum dos Apóstolos conseguiu fitar as vestes branquíssimas de Cristo, estabelecendo uma divisão claramente platónica entre o que cega os homens das cavernas (os apóstolos) e o que iguala as Ideias da Luz (Cristo e os profetas). A quinta coisa em que reparei foi num palácio do Grande Canal, que é dos mais belos e mais ogivados. Ca D”Ario chama-se. O meu guia de ocasião informou-me que estava à venda e que há 50 anos o estava. Porquê? Porque se diz que uma maldição primeva atingirá todos os seus proprietários e até hoje ninguém escapou. Sabem quem foi o último presumível comprador, que chegou a dar sinal, mas que à última hora teve mais medo do que dinheiro? Woody Allen.


5. À noite debrucei-me da janela do meu quarto, num dos últimos pisos do Danieli, e olhei para a água negra cá em baixo, no pequeno canal dos dragões, onde algumas gôndolas jaziam. Em frente, havia uma casa com um belo jardim e, entre as janelas entreabertas, pareceu-me descortinar um vulto que lia de costas viradas para a janela e para mim.
Sem saber porquê, esse choque da luz da janela entreaberta com o escuro da água fechada, esse choque da horizontalidade fronteira com a verticalidade abissal, pareceram-me repetir e recapitular a imagética das fachadas do Palácio dos Doges, os segredos de Tiziano, e continuar a cantar e a contar os cantos eróticos e líricos de fé e de ferro, de sangue e de ouro, de madrepérola e pórfiro que em Veneza se ouvem a cada esquina e em cada rua.
“Senza rumor” dizia, no Senso de Visconti, Franz para Livia, naquele quarto dos Fondamenti Nuovi, onde se abrigavam para as suas tardes de amor. “Senza rumor” voltei a ouvir Veneza agora, ao luar de Maio sobre o terraço do Danieli, ou à cor dos cometas abraçando de rosa e piedade o Palácio dos Doges. Palácio feito também da matéria de que os cometas são feitos ou de que eram feitos, nos contos de fadas os fatos, da cor do vento e da cor das nuvens de princesas enfeitiçadas. E um dia, enfeitiçado, já estava de novo em Lisboa, como se nada se tivesse passado e como se não tivesse estado a fazer de Caronte, à proa de uma gôndola entre os dragões de Carpaccio e os anjos músicos do Bellini de San Zaccaria. Esta é a vida de hoje? Não, esta foi a minha vida de ontem, o dia dos impossíveis acontecidos. Até domingo, 5 de Junho, dia dos anos da Tia Zina.


27 de Maio 2005 PÚBLICO.

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