OS ANOS DE MÁRIO SOARES
por João Bénard da Costa
1 – Quando, em 1940, restauraram os chamados “Painéis de S. Vicente” (…) alguém observou certas semelhanças entre um dos rostos do hipotético “Painel dos Pescadores” e o semblante do Dr. Oliveira Salazar. Ao que se contava (sobre os Painéis não juro nada), quem reparou não resistiu a mandar dar uma “mãozinha” e pediu ao restaurador que retocasse a figura por forma a tornar a parecença mais sensível. Quando eu era criança e me mostravam os Painéis, o suposto Salazar era uma atracção quase idêntica ao suposto Infante D. Henrique. Se a história só tem interesse em termos hagiográficos, como manifestação do culto da personalidade, não deixa de ser verdade que Salazar, paramentado à século XV, não destoaria nos Painéis. Ele bem podia ter figurado – se fosse já nascido- entre os 58 personagens que se apertam em torno da imagem duplicada do santo. Não lhe faltava a “malinconia”, a austeridade, a severidade, a solenidade, até a rudeza. Se, um dia, se vierem a identificar, com rigor, os protagonistas e figurantes dos Painéis, não me espantava nada que me viessem dizer que um avoengo do homem de Santa Comba se conta entre eles. Falei de Salazar, por causa da história que contei. Se se pensar em Vasco Gonçalves ou em Cunhal, em Freitas do Amaral ou em Cavaco, também os podemos ver prefigurados nessas tábuas. Um há, contudo, que absolutamente, não descende dos vultos dos Painéis. Esse é aquele que se chama Mário Soares e que, na próxima terça-feira, 7 de Dezembro, completa 80 anos. Porque é menos português do que os outros? Muito pelo contrário, poucos, como Mário Soares, serão tão retintamente portugueses e tão inseparáveis do nosso passado e do nosso presente. Mas é de outra família. O Vicente de quem descende não é o tristérrimo santo que nos Painéis é figura central. É o Vicente da Barca e dos Almocreves, do Juiz da Beira e dos Farelos, que passa por fundador do nosso teatro.
Nos tempos em que andei pelo Convento de Jesus a cursar Histórico-Filosóficas – Mário Soares também por lá andou -, o prof. Delfim Santos, ao explicar-nos as diferenças entre os tipos caracterológicos EAS (Emotivo-Activo-Secundário), os chamados “apaixonados”, e EAP (Emotivo-Activo-Primário) os chamados “coléricos”, costumava dar como exemplo dos primeiros Salazar, e como exemplo dos segundos, Francisco da Cunha Leal, então (era isto em 1955 ou 1956) o vulto mais conhecido da oposição democrática. Para grande escândalo das minhas colegas marxistas, via nessa oposição caracterial parte da razão das suas oposições políticas. Nunca conheci pessoalmente Cunha Leal, mas não tenho qualquer dúvida de que, se Mário Soares, nesses anos, já fosse famoso, Delfim Santos teria tido um bem melhor exemplo de antagonismo visceral, não desfazendo nos viscerais antagonismos ideológicos.
Para tudo resumir: a melancolia e o pessimismo lusitanos nunca pegaram em Mário Soares. Para quase todos nós, a contrição. Para ele, o júbilo. É dos raros políticos nossos de quem nunca ouvimos o fado do sacrifício, ou o fardo do dever. Fados e fardos não são com ele. Sacrifícios, ainda menos. Lembro-me de uma hora mais amarga (não lhe faltaram) em que eu o lamentei. Respondeu-me rápido: ” Quem não quer ser lobo, não lhe veste a pele.” E ele soube sempre confundir hábito com habitação. Ou, como escreveu algures Carlos Queiroz: “Só na nossa cama / É que se dorme bem / Só dorme quem ama / a cama que tem.”
2 – Quando eu “acordei” para a política (Maio de 1958, campanha do general Humberto Delgado), Mário Soares, embora já com vasto “curriculum” político para um homem de 33 anos, era ainda, para o “vulgo” em que eu me situava, um nome relativamente desconhecido. Só o vim conhecer pessoalmente em 1962 e em circunstâncias que nada tiveram de político. Eu era, à época, professor eventual do Liceu Camões, e Rui Grácio, que eu tinha substituído no ano anterior no Liceu Francês, escreveu-me a dizer que Mário Soares procurava um professor de História para o Colégio Moderno (então dirigido pelo pai dele) e que lhe sugerira o meu nome. Fui visitá-lo. Entre os 27 e os 37 anos, dez anos são grande diferença, que senti mais acentuada pela pose “directorial” com que Soares me recebeu. Ele conhecia bem o meu “curriculum” de “católico progressista” do grupo da Morais e do António Alçada (de quem era muito amigo) e conhecia até, como vim a verificar pelo decorrer da conversa, o meu “curriculum” como professor errático, com três anos de inexperiência. Mas não procurou “pontes”. Fez-me um interrogatório cerrado (meramente pedagógico) que me deixou pouco à vontade. Fiquei com a impressão de que não me ia entender com aquele homem (impressão que foi prevalecente durante coisa de vinte anos) e declinei o convite em que ele não insistiu. Se relato este insignificante episódio, é para salientar dois outros traços da personalidade de Soares que o futuro tão largamente confirmou: a autoridade natural, que três anos depois (em 1965) o catapultou para líder da oposição não comunista e o gosto de jogar ao gato e ao rato, quando lhe aparecia pela frente alguém com mais olhos que barriga. Mal sabia eu “que ce n’était qu’un début”. Dois meses depois, quando o grupo fundador de “O Tempo e o Modo” decidiu abrir-se a não católicos, o António Alçada avançou imediatamente com os nomes de Mário Soares e Salgado Zenha, com quem julgava mais fácil estabelecer o famoso “diálogo” crentes-não crentes. Assim nós achámos todos (depois daquela história da “Avé-Maria” que eu tornei célebre) no conselho consultivo da revista, onde também tinham assento, além dos católicos da Morais, os jovens expoentes da crise universitária desse ano: Jorge Sampaio, Manuel de Lucena, Vítor Wengorovius, etc. Nessa altura, aprendi, depressa e muito, as clivagens entre esses vários grupos: o que era a ASP (Acção Socialista Portuguesa), como desconfiava dela a geração de 62, em tempos do MAR (Movimento de Acção Revolucionária), e como havia mais medos de um conluio “democrata-cristão” (nós) e “sociais-democratas” (Soares-Zenha) do que de quem guardava domingos e dias santos de guarda. Aprendi a admirar, em Soares, a diplomacia e o optimismo. Quando se tratava de engolir coisas que eu queria fazer passar, como “primado do espiritual” ou “primado da pessoa humana”, Soares deixava essas guerras ao quezilento Zenha e distanciava-se ironicamente delas. Muito mais do que as reuniões, até altas horas da noite, interessavam-lhe os convívios ao jantar ou, depois das ditas, de que era o grande animador. O regime estava sempre a acabar. “Não dura até ao fim do ano”, foi uma frase que invariavelmente lhe ouvi, entre 1963 e 1974. À 12ª vez acertou. Outras vezes, eram histórias heróicas da oposição, em Nelas ou em Vila Pouca de Aguiar. “Tínhamos connosco todas as forças vivas da terra.” “Oh, dr. Bénard” – interrompia, sarcástico, Salgado Zenha – “o que o dr. Mário Soares chama ‘forças vivas’ era um farmacêutico e um notário que se borravam de medo de cada vez que ouviam falar da PIDE.” Quem não tinha medo da PIDE era ele, apesar das oito ou nove prisões que já contava. Eu já conhecia, de ouvir contar, os míticos silêncios de Cunhal e a célebre história da inofensiva chave, que se recusou a identificar durante doze dias de tortura do sono. “Para perceberem que eu não falo nunca.” Soares escolhera a táctica inversa. Preso, falava sem cessar, mas nunca ninguém o apanhou numa palavra que não devesse ser dita. Resistiu até a uma acareação com um denunciante, que acabou com este a desdizer-se e a pedir-lhe desculpa por ter inventado uma história que era mais do que verdadeira. Quando o deixavam isolado na cela durante meses, ocupava o tempo a escrever romances. “Quando me mandaram cá para fora, estava tão entretido, que até me apeteceu pedir-lhes que me deixassem acabar o capítulo.” Algumas vezes me passou pela cabeça que aquele homem viria a ser Presidente da República? Nunca. E no entanto… E, no entanto, há um instantâneo que eu nunca mais esqueci e me está tão gravado na memória como se fosse ontem. Foi em 1964, no Cinema Europa, ali a Campo de Ourique, por ocasião de um festival de cinema qualquer. Eu estava à porta da sala e, de repente, algo me fez olhar para a entrada. Mário Soares vinha a entrar, vagarosamente, acompanhado por alguns amigos, vestindo um sobretudo de pêlo de camelo. Não se passou nada de especial, a maior parte dos presentes nem sequer o conhecia. Mas eu disse ao Nuno de Bragança: “Parece que chegou o Presidente da República.” E no entanto… A despedida que Salazar lhe preparou, em 1968, quando o exilou para São Tomé, com a carga pidesca sobre quem ousara despedir-se dele (foi a única vez que fui sovado pela polícia, com requintes de humilhação) mostrava que o ditador estava menos distraído do que eu e media melhor a perigosidade daquele homem, que regressou, meses depois, quando o outro caiu da cadeira abaixo. Em 1969, andámos às bulhas entre a CEUD a CDE. Vi-o tão duro a atacar como magnânimo a esquecer. Como é que ele dizia? “Enquanto o regime durar não tenho inimigos à direita; depois, não terei inimigos à esquerda.” Ou era ao contrário? Já não me lembro bem, mas tanto faz. Ele mudou sempre, mas foi sempre o mesmo. “Mudar só não mudam os burros”, foi outra frase dele. O resto é conhecido. Em 1985, findas muitas desavenças, aceitei, desde a primeira hora, integrar a Comissão de Honra dele e vi-o a passar de candidato dos dez por cento a vencedor, em Janeiro de 1986. Aos 61 anos, chegava ao lugar em que eu o vira, por uns segundos, em 1964. E foram dez anos de uma gloriosa presidência, jubilosamente vivida. Da última vez que falei com ele, citou-me um adversário que, fulo com ele, começou por protestar elevada consideração pelo pai da nossa democracia e – continuou Soares – “desfiou aquelas balelas todas”. Balelas? Quando um homem chega aos 80 anos e fez o que ele fez, dele e do país, e viveu o que ele viveu, ele e o país, “balelas” só mesmo na boca dele. Parabéns, Mário Soares! Todos, sempre, lhe deveremos tudo. Mesmo os que não o sabem.
3 de Dezembro 2004, Público.