OS MEUS SETE PAPAS (II)
Por João Bénard da Costa
1. Como alguns se lembrarão, estava perto do Taj Mahal quando, tarde e a más horas, soube da morte de João Paulo I, por tão pouco tempo meu quinto Papa.
De lá segui para as Pirâmides e para o Egipto, mas não foi entre faraós que soube do Papa posto em vez do Papa morto. Já tinha regressado à pátria, findo o meu mês de orientes, quando apareceu fumo branco por Karol Wojtyla, que, como o seu efémero predecessor, escolheu dois nomes e os mesmos dois nomes: João Paulo II. Tinha 58 anos e era o mais novo Papa desde 1846 e desde a eleição de Pio IX com 54 anos. Esse Pio IX que morrera cem anos antes da eleição de João Paulo II (a 7 de Fevereiro de 1878) e fora o pontífice de mais longo reinado na história da Igreja (32 anos), se não contar a incerta duração do papado de S. Pedro. João Paulo II, que reinaria 27 anos, seguiu-os de perto.
Mas, em 1978, a grande novidade não foi a “tenra” idade do novo Papa, mas a sua nacionalidade. Pela primeira vez, desde 1523, ou seja, durante 455 anos, o Papa não era italiano e pela primeira vez, em quase dois mil anos de Igreja, o Papa era polaco. Com Wojtyla acabou uma era, que, em categorias adaptadas da história geral para a história da Igreja por Cristiani, no monumental Tu Es Petrus, correspondem à Idade Moderna (1447-1870) e à Idade Contemporânea (1870-1978). Desde o fim do Cisma do Ocidente até ao “ano dos três papas”, dos 55 pontífices que se sentaram no trono de S. Pedro durante cerca de 540 anos, apenas dois não foram italianos: o aragonês Calisto III (Papa de 1455 a 1458, que, apesar das suas origens, gerou os italianíssimos Borgia) e o holandês Adriano VI, o tal que pontificou entre 1522 e 1523 e que tanto contrastou com os Medici que o precederam e lhe sucederam (Leão X e Clemente VII) em desgosto pelas artes e pelos ofícios. Mas isso já são outras conversas, pois que nenhum deles foi Papa das minhas vidas, embora nos renascentistas me tenha ficado muito da melhor parte delas. Das outras e desta.
2. “O ano dos três papas” (Paulo VI, João Paulo I e João Paulo II) foi expressão corrente para o ano de 1978. Às vezes, penso em como teria vivido esse ano um amadíssimo amigo meu, poeta de 35 Poemas, que partiu deste mundo e destes papas em 1968, dez anos antes do ano trino. Digo-o porque, em 1963, quando morreu João XXIII, ele viveu premonitoriamente a febre papal que em 78 já subira uns pontinhos e em 2005 entrou no delírio a que se assistiu. Foi ele o primeiro a inventar a expressão “totopapa”, enviando-me, e a outros amigos comuns, antes e durante o conclave, listas de probabilidades com os nomes que os eleitos escolheriam, caso viessem a ser os contemplados.
Dentre os inúmeros cartões rectangulares que me mandou, escritos a tinta encarnada, copiei estes: Probabilidades (Flos Florum)
1 – Siri (Pio XIII, de que Deus nos guarde)
2 – Montini (Pio XIII, João XXIV ou Leão XIV que: vá lá com Deus)
3 – Lercaro (João XXIV – Deus queira)
4 – Confalonieri (João XXIV, Bento XVI ou Clemente XV, que talvez Deus queira)
Hipóteses desvairadas más
1 – Ottaviani (Alexandre IX, Calisto IV, Anastácio V ou Júlio IV)
2 – Larraona (Anastácio V)
3 – Marella (Bonifácio X)
4 – Cerejeira (Urbano IX)
Na altura, todos nos ríamos com estes totopapas, que ele corrigia, emendava e voltava a enviar. Mas a realidade excede sempre a ficção: tanto na morte de João Paulo II, como na eleição de Bento XVI, televisões e jornais ultrapassaram em excentricidade e delírio o meu amigo das “profundidades intactas”. Muitos dos cardeais já nem sei quem são, como esse Lercaro que, pelos vistos, era o favorito dele. Não previu nenhum Paulo VI, mas previu um Bento XVI, que seria – se tivesse sido – o cardeal Confalonieri, “que talvez Deus queira”.
Em 1963, no interior de círculos muito restritos e – vá lá – muito especiais, vivia-se assim a eleição de um papa, guardando segredo para os não iniciados que já suspeitavam da nossa sanidade mental, mesmo sem saberem destes desvarios. Quem nos diria – quem me diria? – que 42 anos depois, milhões viveriam momentos desses em delírio ainda maior, imaginando papas hindus, argentinos, chineses e até (como sempre) portugueses?
Tudo – tamanha mudança! – talvez se deva a esse Papa polaco que, entre 1978 e 2005, fez mais pelo pope system do que todos os seus antecessores reunidos. E volto a 1978.
3. Estou a começar a dizer mal de João Paulo II, ou, como alguns já lhe chamam, de S. João Paulo Magnus? Não estou. Quando foi do Jubileu dele, escrevi, neste mesmo jornal, um artigo em que disse o que pensava e penso dele, exaltando sobretudo o homem da fé.
Escrevi então e mantenho: “Não é o “Papa da minha vida”, no sentido em que o foram, dos que conheci, João XXIII ou João Paulo I. Não é o Papa que me dê mais esperança ou que eu ame mais do que os outros. Mas tudo o que me separa dele de nada conta quando o vejo – sobretudo nos últimos anos – dar um tamanho testemunho que só consigo explicar pelo inexplicável mistério da Fé.” Acima citei a idade com que foi entronizado. Mas parecia muito mais novo, respirando saúde física por todos os poros, o que muitos atribuíam a um passado de desportista. Três anos depois – apenas três anos dessa imagem pletórica – o atentado da Praça de São Pedro fez esse Papa de 60 anos envelhecer 20 em poucos meses. De então para cá, a pujança original quase que se esqueceu e o “atleta” deu lugar a um velhinho, atacado por mil doenças, até, no fim, mal se conseguir mexer ou falar.
Alguns lhe censuraram – velada ou abertamente – o lugar que deu, na sua própria biografia, ao dia 13 de Maio de 1981, em que quase se realizou a sarcástica profecia de Buñuel no filme La Voie Lactée. Mas não é muito fácil compreender como é que se deu tal mudança num homem. Não é a questão da sobrevivência, pois que outros têm recuperado de coisas ainda piores. É a consciência, não proclamada, mas crescentemente interiorizada, de que a sua salvação teve e tem um sentido e que esse sentido só podia ser desvelado com a crescente transfiguração do corpo quebrado num corpo oferecido. Muito e muito se há-de escrever – pressinto-o – sobre os vários sentidos a dar a essa maceração. Por um lado, há a “papolatria” ou os riscos dela, tão temida nos anos 60 e tão escancaradamente recuperada nesta viragem de séculos. Mas reduzir à papolatria o calvário de João Paulo II é perder a dimensão fundamental dele. Falou-se do seu imenso carisma, do seu imenso magnetismo. Que querem dizer essas palavras? Quem saiba que explique e João Paulo II nunca explicou. Acreditou, não só com toda a sua alma (expressão já de si incompreensível), mas com todo o seu corpo e, como só este lhe podia ser imagem, fez dele o grande plano para um mistério insondável. Por agora – e por mais algum tempo – se falará ainda e muito do Papa que venceu o comunismo, sob o qual viveu desde os 25 anos. Mas não faltam nos textos papais – antes e depois da queda do Muro – advertências ainda mais graves contra a sociedade permissiva e libertária que era, aparentemente, a grande inimiga dos chamados “socialismos reais”. Qual o significado da sua presença junto a Fidel em Cuba, tão estranho, por parte de um, como por parte de outro? Qual o sentido das suas mil viagens? Qual o sentido dos “estádios cheios e das igrejas vazias”? Qual o sentido do seu altivo moralismo? Porque o aplaudiam milhões de jovens que depois não fundavam famílias de 14 filhos, como nos tempos de Maria Teresa da Áustria, ou nem sequer se precipitavam para os ter, como nos tempos da geração dele? Quanto mais medito na acção deste Papa, mais ela me parece paradoxal, mas de um paradoxo que não desafia a razão, antes a busca. Por isso, grande parte do mistério de João Paulo II só será percebido com a passagem do tempo e com os pontificados que se seguirem ao deste Papa tão tirolês quanto carpático ou, se se preferir, tão terra a terra, como céu a céu.
4. Sabe-se como foi recebida a eleição de Bento XVI, conhecem-se os juízos que já se fizeram. Mas não se tem reparado muito (ou então sou eu que tenho andado muito distraído) que ao turbilhão de Abril (velório e exéquias de João Paulo II, conclave, etc.) se seguiu um estranho e agudo silêncio. Ouve-se Bach no Vaticano (talvez pela primeira vez).
Perguntam-me o que penso. Pensei mal, quando pensei depressa e me vieram dizer que Ratzinger era o novo Papa. Agora espero para pensar. Bento XVI já não é Ratzinger. É o meu sétimo Papa. Seja minha a solidão deste silêncio, como escreveu o poeta dos 35 Poemas, e dos trinta e cinco cardeais.
20 de Maio 2005 in PÚBLICO