PRINCESAS DE GELO, PRINCESAS DE FOGO
Por João Benárd da Costa
1 – Hoje, para mim que escrevo ontem, ontem para o leitor que me lê hoje, ocorre uma efeméride em que os chamados acasos da vida, das leituras e das audições me fizeram reparar e de que certamente raríssima gente se lembrou: a 12 de Fevereiro de 1954 – há cinquenta anos – estreou-se em S. Carlos a “Elektra” de Richard Strauss, sobre libreto de Hugo von Hofmannsthal. Estreada em Dresden a 25 de Janeiro de 1909, a ópera demorou quase outro meio século a chegar a Portugal. Aliás, é curioso, e reflector, estudar o progressivo desfasamento de passo entre o nosso teatro de ópera (Real, desde a sua inauguração a 29 de Abril de 1793, meses depois de a cabeça de Luís XVI ter rolado no cadafalso, Nacional desde a proclamação da República) e as principais cenas líricas do mundo. Até 1870, mais coisa menos coisa, o que se via e ouvia em S. Carlos era o que se via e ouvia na Europa, salvaguardando as versões nacionalistas, ou seja, o lugar dado por cada país aos compositores locais. Dos Cimarosas e Paisiellos iniciais, ainda no século XVIII, seguimos para os Bellinis, os Donizettis ou os Rossinis da primeira metade do século XIX, um ano ou dois após as respectivas estreias mundiais. Pense-se, por exemplo, no caso de Donizetti, de quem, até ao “revival” dos anos 70 do século XX, só ficaram no reportório quatro ou cinco óperas (a “Lucia”, o “Elisir”, a “Favorita”, o “Dom Pasquale”, “La Fille du Régiment”). Das óperas compostas pelo homem de Bérgamo, entre 1818 e 1843, as 35 mais significativas estrearam-se, todas, em Lisboa no mesmo período, voltando, ano após ano, com pendular regularidade. Se nos virarmos para Verdi, das 26 óperas compostas entre 1842 e 1893 (ano da estreia do “Falstaff”), 23 foram representadas em Lisboa, sendo as excepções “Il Corsaro”, “La Bataglia di Legnano” e “Stiffelio”. Esta última, a maior lacuna, vai ser cantada este ano, graças a Paolo Pinamonte, para mim, indubitavelmente, o que de melhor aconteceu à cultura em Portugal nestes sinistros anos iniciais do novo século. O “Nabucco”, primeira ópera de Verdi ouvida em Lisboa, estreou-se em S. Carlos a 29 de Outubro de 1843, um ano e meio depois da sua “prima”, no Scala, a 9 de Março de 1842. Na temporada seguinte, já surgiram “I Lombardi” e “Ernani”, praticamente “em cima” das respectivas estreias mundiais. E assim sucessivamente. Mesma constância, depois, com a obra de Puccini, à excepção das últimas óperas, posteriores a 1910, no ano negro em que a República quis dar cabo de um teatro que tresandava a Braganças e a sangue azul. Mas o costumeiro “despassamento” nacional começou muito antes, quando a “ópera alemã” se impôs contra a ópera italiana. A “revolução” de Wagner, nesses mesmos anos 40 em que a Lisboa de S. Carlos trauteava o coro do “Nabucco”, demorou décadas a chegar e só chegou, sintomaticamente, com o “Lohengrin”. Estreado, por iniciativa de Liszt (esse mesmo Liszt que S. Carlos aplaudiu em delírio em 1845, no ano II de Verdi) em 1850, o “Lohengrin” só chegou a S. Carlos em 1883, no ano da morte de Wagner. “O Novo Fantasma” (1841) e o “Tannhäuser” (1845) só aqui arribaram em 1893 (já estávamos no fatídico meio século de atraso). Para assistir à estreia do “Tristão” (1865) avançou D. Carlos o seu regresso de Vila Viçosa, no dia 1 de Fevereiro de 1908. Não houve ópera (só estreou a 10) houve regicídio. Quanto ao “Parsifal” (1882), teve de se esperar por 1921 para o ouvir em Lisboa, em récitas acompanhados por manifestações de extrema-direita, já esta havia julgado aprender que Wagner era o precursor das “novas ordens”. Mas o mesmo sucedeu com a ópera russa e com Debussy: estreia do “Boris” em 1923: do “Pelléas” em 1925. Quanto a Strauss – para voltar ao princípio – só a “Salomé” teve “première” relativamente civilizada (em 1909, quatro anos depois da estreia mundial), mas desapareceu depois durante 44 anos. “O Cavaleiro da Rosa” (1911) apareceu em 1924. De resto, mais nada, absolutamente mais nada, até aos anos 50 do século sepulto.
2 – Para o que me havia de dar? Pois é, ainda mal me conhecem. O doce fel das estatísticas, o acre prazer das intermináveis listas, tentaram-me ainda antes dos bancos da escola, desde os reis e príncipes de Portugal até às filmografias iranianas e filipinas. E tive sorte. Acordei para a ópera em anos em que às tradicionais “temporadas italianas” se acrescentaram (a partir de 1952) “temporadas alemãs”. E eu vi, ainda “teen ager”, as primeiras apresentações em Portugal da “Flauta” e do “Rapto” de Mozart (em 1953), as segundas da “Salomé” e do “Fidelio” (mesmo ano), a segunda do “Cavaleiro” (1954), a segunda de “Le Nozze di Fígaro” de Mozart (incrivelmente cantada, pela primeira vez em Portugal, em Maio de 1945) e a tal estreia da “Elektra” que me levou a isto tudo. Ainda nos mesmos anos 50, as estreias da “Iphigènie en Tauride” de Gluck, da “Arabella” de Strauss, da “Euryanthe” de Weber, da “Alceste” de Gluck, do “Kovanchtchina” de Mussorgsky, do “Così” de Mozart, do “Wozzeck” de Alban Berg, da “Dama de Espadas” de Tchaikovsky, na mesma década em que a Callas e a Stich-Randall, o Gobbi e o Boris Christoph cantaram pela primeira vez em Portugal. Ainda na mesma década em que a “Turandot” (cantada no Coliseu em 1929) teve a segunda apresentação em Portugal, com Inge Borkh na protagonista.
3 – “Wie schön ist die Prinzessin Salome heute nacht!” (“Como está bela, hoje à noite, a Princesa Salomé”) Se eu quisesse resumir tudo o que a ópera é para mim, tudo o que para mim é ópera, numa só frase, escolheria muito provavelmente, ao som da música de Strauss, a frase do pobre Narrabot com que abre a “Salomé”, na tradução alemã de Hedwig Lachmann do texto original da peça de Oscar Wilde, escrito em francês. As razões são muito minhas e têm que ver com muitas descobertas simultâneas dessa noite, então toda mágica, de 21 de Fevereiro de 1953. Salomé era Inge Borkh, que apareceu em Lisboa, pela primeira vez, na temporada anterior, a cantar a Senta do “Navio”. Mas, em 1952, a minha vida dessas ainda não tinha começado. Biblicamente, em todos os sentidos (não é a Salomé uma figura bíblica?), conheci-a pois naquela noite em que estava mais bela e luarenta do que nunca. Pedro de Freitas Branco dirigiu. Se a memória me não falha, Margaret Kenney, que fez de Herodíades na “Salomé”, cantou antes as “Quatro Últimas Canções”, também em primeira audição em Portugal. A música de Strauss é como uma doença. Ou se é imune, ou se pega. Eu sou dos últimos e contagiado fiquei para toda a vida.
Duas vezes cantou a “Salomé” em São Carlos (53 e 56) mas uma só cantou a “Elektra”, nessa récita inaugural de 54, igualmente regida por Pedro de Freitas Branco. Ouvi-a em várias outras óperas, mas só em 59, quando fez terceira e bem diversa princesa (a Turandot de Puccini), a magia foi igual. Para mim, ela é tanto a “principessa di morte, principessa di gelo” da ópera em que a mão de Puccini caiu antes do fim que não conseguiu resolver (o que eu me lembrei dela, ouvindo, outro dia, a emocionante voz de Alessandra Marc na “Turandot” desta temporada!), como a princesa de fogo da “Elektra” ou a princesa de sangue da “Salomé”. Graças a Deus, dois discos divinos ma trazem sempre: a “Salomé”, dirigida por Mitropoulos, no Met, em 58 com ela e com Vinay (Ramon Vinay no “Otello” de Verdi é outra memória imperecível dos anos 50) e a “Turandot”, com Renata Tebaldi e Mario del Monaco, dirigida por Alberto Erede. E, agora que nisto atento, penso que nessas três operas estão eventualmente as respostas aos três enigmas e à morte única da cena mais célebre da “Turandot”. A esperança, esse “fantasma” que “sparisse coll’aurora per rinascere nel cuore” é, apesar de tudo, a “principessa altera” de Puccini. O sangue que “avvampa, avvampa” é a “Salomé”, “opera d’avvampare” e também ópera do langor (“avvampa e insieme langue”). O nome, “gelo che ti dá foco / e del tuo foco / piu gelo prende” é a “Elektra”. Não é a “Elektra”, desde o assombroso acorde inicial (o mais fulminante início de qualquer ópera) a ópera do nome, o nome de Agamémnon, protagonista sempre presente, protagonista sempre ausente, já que vingar a sua morte é a tragédia de Elektra?
Dessa ópera, tão próxima e tão distante de “Salomé”, em que a dança tem um papel nos antípodas do que lhe cabe na outra, e em que Hofmannstahl, num dos seus mais belos textos, longinquamente se baseou em Sófocles, “o único dos trágicos gregos que pintou os protagonistas como doentes mentais”, ficou-me para sempre, na voz de Borkh, o “allein! Weh ganz allein” (“Sozinha! Ai de mim, tão toda sozinha!”) com que se inicia o primeiro dos dois grandes solos da protagonista. E sozinha ela está sempre, mesmo quando tenta convencer a irmã à cumplicidade a que esta se recusa, mesmo quando reconhece Orestes, aquele que os cães conheceram e a irmã não conheceu. Ela, que dissera antes que, mais do que do próprio sangue de Agamémnon e de Orestes, “era” o sangue de Agamémnon e de Orestes (“ich bin dies Blut! ich bin / das hündisch vergossene Blut des Königs Agamemnon” e se não sabem alemão, eu também não sei) não reconheceu o sangue de qualquer deles e fica “off” quando é derramado o sangue da mãe e do padrasto, à porta, sempre, nesse palácio sem portas. Ela que dá à mãe o remédio para os sonhos (“Quanto mais velhos, mais sonhamos”) é a que fica sempre acordada na vigília de um nome.
“Allein! Ganz allein!” está finalmente na dança irremediável do final: “Quem pode viver sem amor?” pergunta-lhe a irmã. E Elektra responde: “Ah, o amor mata! Mas ninguém pode morrer sem ter conhecido o amor.” E no fim, é o fogo, o sangue e o gelo. Princesa de todos, princesa de nenhum.
(13 Fevereiro 2004 in Público)