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A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD

São aqui publicadas as crónicas de João Bénard da Costa no jornal “Público”. Esta semana: “A casa encantada, Arrábida minha”


A CASA ENCANTADA


ARRÁBIDA MINHA
por João Bénard da Costa


“Antre Sintra, a mui prezada / e serra de Riba-Tejo / que Arrábida é chamada”.
Acredito na predestinação, como ainda outro dia recordei ao M. S. Lourenço, singularmente esquecido. Se não acreditasse, como conseguiria explicar-me, antre Sintra e a Arrábida, que essas sejam as moradas do meu viver?


Sintra aconteceu já crescido, por vias conjugais (mesmo assim já lá vão 44 anos bem contadinhos). Mas a Arrábida aconteceu ainda antes de eu acontecer. Não me lembro de mim sem me lembrar dela. Não me lembro dela sem me lembrar de mim. Vivi por lá em muito remotas encarnações, à Arrábida voltarei em vésperas do terceiro milénio, se não for antes.


“Paisagens extremas fazem no espírito um efeito devastador”, escreveu Agustina, precisamente a propósito da Arrábida, a que começou por chamar Pedra de Toque, num trocadilho um tanto ou quanto obsceno e a que chamou depois Terras do Risco. E muitos riscos situou e sitiou na Serra, nesse romance depois levado ao cinema por Manoel de Oliveira. Havia gente estranhamente perdida nos seus atalhos, abalos que alteravam o traçado florestal, todas as maneiras de excitar e delapidar o amor. E diz ela logo no princípio do livro – não sei onde o foi inventar – que ” Arrábida quer dizer lugar de oração”, oração necessária para que a luxúria não “tome conta de todo o espaço habitado”.


Falei de remotas encarnações. Para quem não me siga em tais  metempsicoses, dou noticia que os meus tetravôs tiveram irmãos que foram guardiões do Convento da Arrábida, o chamado Convento Novo, mandado edificar por D. Álvaro, 3º Duque de Aveiro, cerca de 1620, quando,  no monte vizinho, as covas já eram poucas para os arrábidos poderem continuar a habitar, na “suave compostura” de que falou Frei Agostinho da Cruz, o primeiro convento, o Convento Velho (1542).


Duzentos anos viveram no Convento os monges (nunca muito numerosos), até que as leis do “mata-frades” baniram as ordens religiosas do País, em 1834. Mas é da tradição familiar que alguém se apiedou do último guardião, esse meu tetra-tio, e o deixou continuar a viver por ali, ensandecido ao que também parece.


As raízes da família começaram a crescer na Arrábida, arrematada por baixo preço por Palmella numa das várias hastas dos bens monacais. Os meus bisavós paternos – aliás irmãos – desciam frequentemente do Barreiro, onde viviam, a Vila Nogueira de Azeitão, onde tinham parentes e compadres, para subirem a Serra pelo Painel das Almas e São Caetano, até à “Confeitaria” ou às Matas do Lobo ou do Vidal. Depois vinham jantar ao Convento, deserto e muito arruinado. O costume continuou na geração dos meus avós, e os meus pais, que passaram a lua-de-mel na Arrábida, a ela subiram pelo mesmo percurso, já que, até aos anos 40 do século XX, nenhuma estrada dava acesso à Serra, só atingível a pé, de burro ou mula, ou, por mar, vindo-se de Setúbal.


Umas das minhas mais antigas recordações da Arrábida pinta-me uma longa fila de carroças e muares, pejada de objectos e de alguns humanos, uma das quais me levava ao colo. Chovia muito, o chão era lama e o que lembro assemelhava-se bastante a uma retirada de foragidos medievais. Era apenas o fim das férias e o regresso a Lisboa pelo Vale do Solitário, entre a densa mata de medronheiros, urzes e carvalhos.


Nessa altura, quantas casas havia na Arrábida, para além do Convento, já guardado por um servidor da Casa Palmella, que o mantinha liberalmente fechado? Incluindo aquela de onde então eu era, mandada construir por meu Avô paterno, em 1906, para um filho tuberculoso, na vã esperança de o salvar, eram sete casas, só habitadas em Agosto ou Setembro, erguidas nas duas primeiras décadas do século em que nasci,  a norte da fortaleza setecentista, que então ostentava o nome de Pousada. No Portinho, ou à volta dele, cerca de dez, contando com uns casinhotos de pescadores e com uma taberna onde se vendia de tudo e era o único lugar de comércio por aquelas paragens.


Toda a gente conhecia toda a gente, o que não quer dizer que toda a gente falasse a toda a gente, porque, à boa portuguesa, já havia ódios incansáveis, embora novos (questões de terrenos). Puxadas as redes, à noite, os pescadores vinham vender salmonetes e linguados vivos às casas raras. Pela manhã, dos Casais da Serra, chegavam as mulheres da hortaliça ou da fruta, com os figos ainda molhados (“figos só na Arrábida”) e as maçãs reinetas. Pelo meio-dia, o Chico Alface (julgo que ainda é vivo) chegava de carroça, vindo de Azeitão, carregado com todas as encomendas feitas na véspera. As criadas iam esperá-lo à estrada e subiam, depois, os socalcos da Villa Raúl, com o arroz e a massa, o azeite e o vinagre, a carne e os enchidos, o correio e o jornal, e sobretudo o pão, o pão fresco com que, no dia seguinte, nos faziam as melhores torradas do mundo. Cada um se levantava às suas horas e berrava para a Silvina – chamava-se mesmo Silvina – por torradas quentinhas, que as da mesa estavam frias. Havia um jarro de água amarelo em forma de porco. Depois, ia-se para a praia. Alportuche, entre a Lapa de Santa Margarida, igreja de rocha para o Andersen da sereia ou vulva gigantesca para a Catherine Deneuve de O Convento, e a muito menos marchetada Lapa dos Pombos, Alportuche era então uma série de praias com dunas de areia grossa e branca, exclusivamente habitada por nós e pelos nós de nós.


Foi muito, muito tempo, antes da Revolução. Mas quem não viveu a Arrábida desses anos também não sabe o que foi a doçura de viver. Havia a guerra no mundo e a descalma suave na Arrábida.


Passava-se isto a 40 Km de Lisboa? Passava. Havia um imenso areal branquíssimo, a Pedra da Anicha, o melhor peixe do mundo, as lapas profundas e escuras, na serra e no mar, capelas e fontes, atalhos infindáveis, caminhos de cabras e de raros conhecedores.


Não havia luz eléctrica (não a houve até aos anos 80), não havia água canalizada (não a houve até ao ano 2000). Alumiávamo-nos a petróleo e a estearina, bebíamos água das cisternas.


Nos anos 50, construíram, no Vale de Alportuche, mais umas quantas casas. Mas nada mudou. Depois, muito mudou, mudou muito, até começar a ser comida a um lado por cimentos e lixos tóxicos e a outro pela pedreira da Brecha. Era para falar de tudo isso,  e do Parque da polémica, que eu vinha hoje. Mas perdi-me. Acontece-me muitas vezes. Menos na Arrábida. Na Arrábida nunca me perco.


in Público 26 de Julho de 2002

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