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A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD

São aqui publicadas as crónicas de João Bénard da Costa no jornal “Público”. Esta semana: “Alfreda e os túneis”.

ALFREDA E OS TÚNEIS


por João Bénard da Costa


1.”A Alfreda precisa de mim na cama dela.” Esta simples frase – em post scriptum justificativo para uma nova falta desta coluna a 29 de Abril – escandalizou muito boa gente, ao que parece. Dito isto, logo assento que é bom guardar o sentido das proporções. Boa gente, talvez fosse ou talvez seja. Muito boa gente não foi certamente, que nem as massas me lêem nem eu escrevo para as massas. Digamos que foi uma historieta, com peso mas sem consequências. Mas, de facto, faltei porque a Alfreda precisava de mim na cama dela. Só que cada um faz a cama como nela se há-de deitar e a cama da Alfreda era estreita demais para dois. Que culpa tenho eu que quem ouve falar em cama se ponha logo a acamar? E se a Alfreda fosse um bebé que precisasse de mim para lhe dar a mão e lhe tirar os medos da noite? E se a Alfreda fosse uma velha que precisasse de mim para me olhar nos olhos, acabada de morrer? A minha ausência, de que tão mal pensaram, pode-se ter devido a desvelos avoengos ou a piedades finais. Que a mente costumeira não conclua, sobretudo quando não conhece a Alfreda e nada pode saber das razões que a levaram a querer-me na cama dela.


2. Para defesa da Alfreda – mais do que para minha defesa, que este é um mundo cão e um mundo macho, como não se cansa de dizer Inês Pedrosa – sou obrigado a explicar que a dita, não sendo de berço nem muito menos anciã, estava entre lá e cá ou mais lá do que cá. Ou seja, o leito era leito de agonia. Um dia o jardineiro viu-a, muita pálida, sentar-se no banco verde do jardim. Depois, caiu para o lado devagar. Umas horas depois – se não foi assim foi parecido – entrou em coma. Antes chamou algumas pessoas que ela amara ou que a tinham amado. Mandou-lhes dizer que precisava delas, junto à cama dela, para onde a levaram após o acidente. Uma dessas pessoas fui eu. Acham que não devia ter ido? Acham que, a pretexto de uma crónica para o PÚBLICO, devia ter ficado em Lisboa e tê-la deixado só à hora de morrer? Não me têm em tão má conta, pois não? E assim nos juntámos todos no quarto da Alfreda, junto à cama da Alfreda. Houve um padre que disse “com algum desalento” que “se alguma coisa não se pode ensinar é a sabedoria”. Alfreda concordou e acrescentou: “Nem o prazer.” Aquela associação surpreendeu-me, até porque nunca tinha pensado quanto era exacta e quanto nunca o prazer se ensina nunca. Depois, eles calaram-se, segundo Agustina porque temiam ter ido longe demais. Segundo mim, essa referência ao prazer foi a sua derradeira palavra.
O padre deu-lhe a extrema-unção e tinha lágrimas nos olhos, lágrimas que ninguém viu porque ele estava no lado mais escuro do quarto. Voltando a Agustina: “A luz do quarto era de um azul opaco e ela parecia irreal, como a Branca de Neve no seu leito à espera de um beijo de amor.” Um beijo não lhe dei, mas fiz-lhe uma festa desajeitada na mão, mão que ela tirara para fora dos lençóis, talvez exactamente para essa festa e talvez para que essa festa fosse assim. Depois, olhei os outros homens e tive a certeza que todos a tinham amado, sem que ela se apercebesse disso. Éramos os espaços em branco dela. Pouco depois, entrou em coma.


3. Hoje, as pessoas nascem e morrem quase sempre sozinhas, ou rodeadas por profissionais. Mas é costume recente. Não é preciso ir ao Louvre ver La Mort de Sardanapale de Delacroix, La Mort du Père de Greuze, ou as muitas mortes reais documentadas para a História. Não é preciso ir a qualquer outro museu ver os Nascimentos da Virgem, com dezenas de aias, e a celha com água quente para o banho.
Ainda quando eu nasci, ainda dez anos depois de eu ter nascido (ou mais) o quarto da minha mãe se enchia de cunhadas e amigas, rodeando e ajudando a parteira que ia a casa, até ao momento de se ouvirem os primeiros choros. Só nessa altura se ia chamar o Pai, pois que, até ao parto, o quarto conjugal era um espaço feminino, um reino de mulheres solitárias na dor, no ciúme ou na alegria. Entrava-se neste mundo, consoante as hierarquias, em cerimonial e etiquetas, regidos por rigorosas normas. Entrava-se e saía-se. Morrer sozinho era a última das desgraças, para os que não podiam esperar mais do que prisão ou hospital. Os outros eram acompanhados pela família (no sentido mais vasto da palavra) que os confortava e, em casos de maior fé, lhes dava recados para serem transmitidos a mortos mais antigos. “Não te esqueças de dizer à tia B… que se continua a fazer a compota de alperce exactamente como ela ensinou.” “E diz à tia C… que ainda anteontem consegui fazer a paciência da rainha e não fiz batota.” Não inventei recados destes. Ouvi-os de quem os ouviu, nessas noites de agonia em que ninguém se deitava. Depois – se era a dona da casa quem morria – apagava-se o fogão da cozinha, apagava-se o lume. Era o lar que se apagava. Lembrei-me disto tudo, durante a agonia da Alfreda, quando a irmã dela, essa tão branca Noémia de olhos tão claramente azuis, tanto mandava sair do quarto os circunstantes que mostravam pouco respeito, como os chamava do corredor, porque agora é que lhe parecia que ia ser. 


4. O que é o estado de coma? Os médicos – disseram-me – não sabem muita coisa sobre ele. O cérebro pode estar ileso e com funções perfeitamente normais. Só os nervos estão paralisados como pelo efeito dum veneno. É certo que Alfreda não tomou veneno nenhum, nem foi mordida por nenhuma mamba negra, como protestou a irmã e com bastante razão. Mas a simples ideia de uma pessoa estar meses ou anos com funções normais e nervos paralisados é mais terrífica do que a concepção prevalecente que o moribundo já de nada se apercebe e nada ouve, vê, cheira ou sente. Essa imagem de uma pessoa lúcida e paralisada guardo-a, no máximo do horror, da Thérèse Raquin de Zola, que li quando ainda não se pensa na morte. Farta de aturar o marido e a sogra, Thérèse mai-lo amante decidem dar cabo deles. Só tiveram que acabar com um. A velha teve tal choque ao ver o crime que ficou cega, muda e paralítica. Os assassinos decidiram deixá-la assim. Não podia testemunhar e vingavam-se melhor. Ninguém suspeitou de crime. Passado o conveniente período de nojo, Thérèse e o cúmplice casaram-se. E toda a gente gabava “a santa da rapariga”, que tratava com tanto zelo da ex-sogra, como se mãe dela fora. E a velha Mme. Raquin, a única que sabia tudo, tinha que ouvir impávida esses elogios, ver o casal de assassinos sorrir docemente e deixar que, todos os dias, a deitassem, levantassem e sentassem. A Alfreda sofreria algo de semelhante no coma em que caíra? Como posso eu saber, como podemos saber? Também há quem diga que a pessoa se sente como num fundo de um túnel. Para outros, essa imagem do túnel – e da luz ao fundo dele – é a reminiscência do momento do nascimento, recuperada à hora da morte. Agustina em A Alma dos Ricos – e embora seja natural que não tenham percebido, não tenho estado a falar doutra coisa, doutro livro e doutro filme – chamou ao último capítulo Para que saibam o que se passou no túnel. E diz: “O estado de coma simplificou tanto a vida de Alfreda que o tempo deixou de existir. A infância fazia parte da juventude e esta da idade adulta. Tudo era tão claro e interessante, fora de qualquer complexidade, que o prazer de decifrar todas as coisas invadia todo os seu ser. Um ser vivo e resplandecente, à parte dos outros.” Fala do “dilúvio imparável do tempo. Tudo em ligeira confusão, em brando passo, o medo e as intenções maliciosas eram-lhe extraídas como se extrai um dente podre. O mal não existia, só uma passagem de vidas, sem fraude e sem destino”. Essa visão é quase uma visão de céu, mas não é compartilhada por todos. Havia quem visse nela o Mal. E havia quem dissesse “que ela tomara um caminho tão solitário como o das estrelas e não havia uma fórmula para o descrever e compreender”. Seja como for, a mulher que me chamou para a sua cama a 29 de Abril “era uma mulher fora de série” e tudo o que me aconteceu, nessa semana em que andei perdido, foi bastante fora de série. Mas estou a falar da Alfreda. E, como a Agustina também diz, “os homens sempre inventam quando se trata das mulheres. Uns mais, outros menos”. Eu, que nem sequer inventei uma cama, eu que nem sequer inventei uma coma, andei a percorrer um túnel sem achar luz no termo dele. Do que nele encontrei, é muito cedo para falar. Mas de vez em quando sabe bem divagar ao fazer desta, sabendo que ao correr da pena se aperta o coração.


6 de Maio 2005 in Público

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