ANTIGAMENTE, A ESCOLA (I)
Por João Bénard da Costa
1 – Não, antigamente a escola não era risonha e franca, como no pré-histórico poema (“O Estudante Alsaciano”) que, em versão portuguesa, aprendi com a minha Avó e galhardamente recitava – ao que me contaram – empoleirado num banco do Jardim da Estrela, para pasmo dos basbaques e vergonha da minha Mãe, que me surpreendeu, aos cinco anos, em tais preparos. Nessa altura, ainda nem sequer sabia o que escola fosse. Quando soube, talvez usasse muitos adjectivos, mas não seguramente os que a associam ao riso e à franqueza. Mas descansem que não venho para ajustar contas nem para louvar o ensino de outras eras. Também não venho para execuções sumárias. Apenas me lembrei, por razões que mais adiante explicarei, que nunca disse de minha justiça sobre um personagem muito maltratado. Refiro-me ao dr. Sérvulo Correia, reitor do Liceu Camões entre o ano lectivo de 1950-51 e o de 74-75, a que não resistiu.
2 – 1950-51. Eu tinha de 15 para 16 anos e repetia a secção de ciências do 5º ano do liceu (actual 9º). Nesses tempos, até ao dito 5º ano (do 3º ao 5º, leiam do 7º ao 9º, e não vou prosseguir com actualizações), segundo a reforma de 1947 do ministro Pires de Lima (uma entre tantas), havia nove disciplinas, arrumadas entre letras e ciências. Letras: Português, Francês, Inglês e História. Ciências: Geografia, Ciências Naturais, Físico-Químicas, Matemática e Desenho. Se eu era bom aluno em letras, e por isso passei o exame do 5º ano com uma perna às costas e um 19 a História, péssimo era em ciências, sobretudo em Matemática e Desenho. Por isso chumbei e por isso fui condenado a repetir as cinco disciplinas das tais ciências. Foi um ano negro, sem sombra de dúvida o ano mais negro da minha existência. Tinha grandes “buracos” nos horários (as horas em que os não-repetentes aprendiam letras) e vagueava entre casa e o liceu para repisar “matérias” que odiava. Lágrimas e suspiros? Pouco mais ou menos e não exagero muito. Se a palavra auto-estima já tivesse sido inventada, a minha andava muito por baixo, o que aos 16 anos não se recomenda. O pior de tudo era o Desenho. Por dislexia congénita ou adquirida (havia a tese da fatalidade e a tese da preguiça ronhosa), eu nunca fui capaz de fazer um traço direito ou uma curva torta. Felizmente, os professores que tive do 1º ao 5º ano (o santo Mendes Costa e a beatíssima Maria Marinho, que, segundo as minhas contas, ainda é capaz de estar viva) sustentavam mais a tese do “coitadinho” do que a do “fiteiro” (tese paterna) e foram-me “passando”, como nessa altura se dizia, mesmo se os meus “desenhos geométricos” se pareciam com bilhas “desenhadas à vista” e as bilhas com “geometria no espaço”, não desfazendo na geometria e muito menos no espaço.
Tive a sorte (graças à citada reforma) de escapar ao exame do 3º ano, que, quando lá cheguei, retroactivou para o 2º. Mas do exame do 5º não escapei. Como já disse, não escapei mesmo. Foi nesse ano, escolarmente bissexto, que Sérvulo Correia foi nomeado reitor do Camões. Vinha precedido pela fama de “animal feroz” (como diria o eng.º Sócrates) e não a deixou por mãos alheias. O liceu, habituado às cãs brancas e à bonomia de um simpático velhinho coxo, mudou do dia para a noite. Professores e alunos tremiam à passagem daquela cabeça, que, devido a uma acentuada dolicocefalia, logo lhe valeu o cognome de “cabeça de martelo”. Eu tinha outras razões para tremer e, como ia pouco ao liceu, não me achei envolvido nas histórias dickensianas que se contavam. Lá chegou a altura (ah, quando eu contar esse Verão de 51!) de fazer o segundo exame do 5º ano. Prova escrita, que dava direito a dispensar da oral, em caso de média de 16, e dava direito ao chumbo, se a média fosse inferior a 8,5. No ano anterior, ainda tinha chegado à oral. À segunda vez, nem isso. Uns dezitos e uns novezitos em quatro disciplinas não “taparam” o 2,8 (dois vírgula oito) em Desenho. Poupo-vos à descrição do meu estado de alma diante daquela pauta, em que a seguir ao meu nome estava encarnadamente escrito: “Reprovado”. A simples ideia de imaginar (isso mesmo: “ideia de imaginar”) que, no ano seguinte, tudo se passaria pela terceira vez punha-me a alma e o corpo em rebuçados desfeitos. À minha volta, colegas manifestavam-me a tradicional comiseração lusa: “Coitado do Bénard”; “Chumbou outra vez por causa do Desenho”; “Ele não tem culpa”. Por aquelas horas, passou por ali o tal São Mendes Costa. Ao ver-me em tal estado, quis saber a razão. Logo lha disseram. Passaram mais horas (eu não me atrevia a voltar para casa e a enfrentar a família). Apareceu um contínuo, que, a mando do Senhor Reitor, me disse para ir ao gabinete dele. Lá fui, tão fora de esperar bem. Recebeu-me secamente e ordenou: “Vai para casa e diz ao teu pai que venha cá falar comigo.” O meu Pai, engripado e de cama, não foi. Pediu à minha Mãe para o fazer. Quando voltámos, o Senhor Reitor recebeu-nos logo. Não mandou sentar a Mãe. De pé, disse-lhe: “O professor de Desenho do seu filho informou-me da nota dele e da reprovação. Se ele é inapto, o encarregado de educação devia ter pedido dispensa dessa disciplina, como está previsto na lei. Agora, tudo é mais difícil. Mas ainda se pode tentar. O marido de V. Exa. deverá fazer um requerimento ao Senhor Ministro da Educação, solicitando a anulação da prova, o que lhe permitirá ter acesso ao exame oral. Não prometo nada – a decisão não me compete -, mas a informação que darei, com base no que o professor de Desenho me transmitiu, será favorável.”
Transmitida a mensagem, o meu Pai mostrou-se muito céptico. Mas o prazo para recurso era curto e tentou. Fui levado a várias consultas médicas, onde ouvi o meu Pai fazer dele a tese do “coitadinho” (muito me espantou essa conversão, mas o amor de pai obriga a muito) enquanto eu me sumia pelo chão abaixo a cada novo exame, teórico e prático. Fez-se o requerimento. Na dúvida do despacho, uma prima minha, bastante mais velha e que cursava Económico-Financeiras, deu-me explicações intensivas de Físico-Químicas e Matemática, num Julho ardente e inquietíssimo. Um belo dia, chegou a notícia. O ministro deferira o requerimento. Já em Agosto, “fui à oral”. O mês de férias, que a minha prima sacrificou a cultivar-me minimamente em matérias em que eu era ignaro, fez o resto do milagre, bendita seja ela! Fui aprovado com 10 valores e deficiência a Matemática, o que era irrelevante para quem, obviamente, se destinava às letras. Dois anos depois, concluí o Liceu (no Pedro Nunes) com média final de 18.
3 – Na altura, abençoei o Prof. Mendes Costa, o Ministro e a Prima. Tinha toda a razão. Mas esqueci-me de abençoar o Reitor. Só alguns anos depois (quando eu próprio vivi, do outro lado, a época dos exames e o trabalho imenso que ela implicava para os examinadores) me dei conta do que o gesto dele teve de extraordinário. Em vez de juntar mais uma reprovação às estatísticas, com um aluno que nem sequer era aluno dele e que ele nem sequer conhecia, arrancou-me à autocomiseração e às lágrimas quentes, accionou os mecanismos legais que tanto os meus Pais como eu desconhecíamos, venceu o cepticismo paterno e anulou os efeitos devastadores de uma segunda reprovação consecutiva num adolescente em crise. Tivesse ele sido indiferente (como era legítimo e normal que fosse) e talvez o meu futuro fosse bem diferente. Tive ocasião de lho dizer. Dez anos depois desse trágico 51, voltei ao Camões, como professor de História, Filosofia e Organização Política e Administrativa da Nação. Professor eventual, ou seja, fora do quadro. Ensinei nessa qualidade três anos lectivos. Poucos meses depois de começar, dava uma aula de História e estava virado de costas para a porta aberta, ouvi um silêncio pesadíssimo e vi os alunos todos a levantar-se como se um alfinete lhes picasse o rabo. Entrara o Senhor Reitor. Não disse nem bons dias nem boas tardes. Avançou para a “minha” secretária, sentou-se, mandou sentar os alunos e disse-me: “Sr. Dr., faça favor de continuar a dar a aula.” Eu continuei. Lembro-me que era sobre as origens do cristianismo (3º ano, pois). Quando tocou a sineta, mandou sair os alunos e disse-me para ficar. Não falarei de piropos, que é uma palavra que vai mal com ele. Mas raras vezes ouvi elogios tão expressivos. Daí para diante, tomou-me sob a sua protecção. Um dia, levou mesmo a afectividade mais longe e justificou a sua imagem. Não tinha – disse-me – qualquer prazer em fazer de “papão do liceu”, mas entendia que aquele era o único modo de lidar com rapazes que os pais, na sua maioria, não seguiam e com professores genericamente incompetentes. Discuti com ele abertamente e ele ouviu-me com atenção. Lembro-me que acentuou duas vezes a expressão “formar os melhores”. Num desses anos, propus-lhe dar, em regime aberto, depois do horário normal, um curso de iniciação ao cinema, já nessa altura paixão minha. Não suponho que fosse cinéfilo ou sequer que fosse ao cinema. Mas sem hesitação me autorizou e seguiu, interessadíssimo, os resultados. Doutra vez, pôs-me uma reserva: nas minhas aulas, tinha notado pouca participação dos alunos. Vinda de quem vinha, a observação espantou-me. Disse-lhe que era o meu estilo e que, além disso, na presença dele, o acentuava, pois que os ditos ficavam manifestamente muito pouco à vontade. Pareceu-me perceber, embora me notasse que, com a minha idade (eu tinha vinte e tal anos), devia estar mais aberto à “pedagogia moderna”.
Em 1964, resolvi trocar o liceu por outra oferta de emprego, aparentemente mais tentadora. Falei com ele e só me encorajou. “Com as condições do ensino de hoje, uma pessoa como o Sr. Dr. deve seguir outros caminhos.” Já fora do liceu, tive ocasião de lhe escrever uma carta a contar a história do exame do 5º ano, que ele evidentemente esquecera. Respondeu-me emocionado: “A sua carta chegou num momento muito difícil da minha vida e foi um bálsamo.” Um ano depois, estava de novo a bater-lhe à porta. Muito mais aberto à “pedagogia moderna” (hoje, acho que escancaradamente aberto), propunha-lhe voltar para fazer experiências de pedagogia não-directiva, à Rogers. Acreditem ou não, disse-me logo que sim. Só que nesse ano a PIDE mudou as regras para a admissão de eventuais. Até aí – o que me valera -, os contratos destes, contratos a prazo e sem garantia de quaisquer direitos, não iam ao visto prévio da polícia política. Nesse ano, passaram a ir. A informação era fortemente negativa. Chamou-me, comunicou-mo e disse-me que iria ele próprio à PIDE, para os tentar demover. Aí falhou. A experiência não-directiva vim a fazê-la no Colégio Moderno do Dr. Mário Soares. Deus escreve direito por linhas tortas.
4 – Nunca mais o vi. Mas, de cada vez que leio, em memórias de ex-alunos dos anos 50, 60 e 70, o retrato de Sérvulo Correia como arquétipo do reitor policial ou do reitor fascista, que transformou o Camões numa prisão, penso no dever de contar esta história. Chegou a altura. Por “razões que mais adiante explicarei”? Sem mais espaço, ficam para a próxima crónica. Se nunca aprendi a ser “não-directivo”, também nunca aprendi a ser sintético.
(20 de Agosto 2004 in Público)