CULTURA E LIBERDADE (I)
Por João Bénard da Costa
1. O passado, às vezes, salta-nos às canelas, quando menos esperamos e onde menos esperamos. Passa mais de ano e dia, recebi uma carta de Roselyne Chenu, com quem trabalhei de muito perto cerca de oito anos (66-74) e não via há mais de vinte e cinco. Eu, sempre a jurar-me fidelíssimo, também sou assim e detesto voltar aos lugares dos crimes. Ela vinha falar-me de coisas de antanho. Andava a procurar no passado e queria saber se eu a podia ajudar. Teria eu papéis desses oito anos? Rasgara as cartas e as fotografias ou conservava-as em qualquer canto? Algumas peças do puzzle estariam comigo ou o que eu lembrava, como as mulheres e os amigos de Kane, eram coisas minhas e não coisas dela? Rosebud era ou não era palavra de que eu me lembrasse?
2. Tendo citado Citizen Kane, não se admirem se se seguir um flash-back.
Lisboa, Dezembro de 1965. Eu tinha 30 anos e dividia o meu tempo legal entre O Tempo e o Modo (uma revista de pensamento e acção, para quem não saiba) e o Centro de Investigação Pedagógica da Fundação Calouste Gulbenkian, onde me formava em T grupos (essa inicial T serve para palavras suspeitas e sentimentos insuspeitos) e pedagogia não-directiva, o que ia a calhar com o meu feitio. O António Alçada Baptista, que inventou O Tempo e o Modo, as edições da Moraes e andava a precisar de dinheiro como de pão para a boca, viu finalmente coroados de algum êxito esforços para convencer católicos italianos ou franceses mais desempoeirados a ajudarem-no um bocadinho. Jean-Marie Domenach, director da Esprit (revista que era o mundo da ideia de O Tempo e o Modo) apresentou-o a Pierre Emmanuel, poeta e resistente. Dele (dele, Pierre Emmanuel) tinha eu decorado uns versos em tempos idos: Toute la nuit dans sa gorge / il mourût à midi / et sa dernière parole / fût un soleil inouï. Pierre Emmanuel dirigia então o Congrès pour la Liberté de la Culture, organismo fundado em 1950 por Raymond Aron, Arthur Koestler, Salvador de Madariaga, André Malraux, Jacques Maritain, Bertrand Russell, Robert Oppenheimer, Denis de Rougemont, etc. Era uma organização subsidiada por várias fundações americanas e que apoiava revistas bem conhecidas como a inglesa Encounter e a francesa Preuves.
Em 1960, após dez anos em que o Congrès se irradiou, sobretudo nos países chamados socialistas, Pierre Emmanuel pensou na Península Ibérica e nos países que, nela, não gemiam sob o comunismo, mas atabafavam com o franquismo e com o salazarismo. Primeiro criou um comité espanhol, depois, quando conheceu o António Alçada, pensou num comité português.
Em Dezembro de 1965, na presença de Roselyne Chenu, assistente de Pierre Emmanuel e particularmente encarregada dos povos ibéricos, teve lugar a primeira reunião do Comité Português, que adaptou o púdico nome de Comissão para as Relações Culturais Europeias. Dez membros: Adérito Sedas Nunes, António Alçada Baptista, João Pedro Miller Guerra, João Salgueiro, Joel Serrão, José-Augusto França, José Cardoso Pires, José Ribeiro dos Santos, Luís Filipe Lindley Cintra e Mário Murteira. Estava representado quase todo o espectro político e quase todas as áreas do saber, com um leve favoritismo para as ditas ciências humanas (sociologia, economia, história), o que à época dava seriedade. Tudo acabou (em Dezembro de 1965) com um festivo jantar em casa da Zezinha e do António, onde conheci melhor Roselyne Chenu. Ela tinha 33 anos (“l”âge du Christ”) olhos muito azuis e cabelo louro cortado à Jean Seberg. É a imagem que ainda tenho diante dos olhos.
Passou meia dúzia de meses. O Comité reunia-se mensalmente mas tardava a passar das palavras aos actos. Começou a ser voz corrente que fazia ali falta um “profissional”. Eu, chefe de redacção de O Tempo e o Modo e sem muita vontade de continuar a investigar pedagogia após a morte do prof. Delfim Santos em 1966, estava à mão de semear. Juntava o útil ao agradável, trabalhando sob o mesmo tecto (Av. 5 de Outubro, lá mesmo ao fim, em frente donde era a Feira Popular) para O Tempo e o Modo e para o Congrès.
Faltava-me a bênção de Pierre Emanuel. Surgiu em Setembro de 1966, quando o Congrès organizou em Aix-en-Provence um encontro entre membros do comité espanhol e do comité português, ou gente próxima. O tema era subtil: Pensamento renovador e sociedades estagnadas. De Portugal, além de mim, foram o António Alçada, o Nuno Bragança, o Cardoso Pires, o Lindley Cintra e o Mário Murteira. Na minha comunicação, citei, de Bernanos, uma frase que já citei mais de 66 vezes na minha vida: “Il faut témoigner pour ce qui dure contre ce qui fait semblant de durer.” O Pierre Emamnuel gostou muito e convidou-me. Pedi três meses para arrumar as gavetas da Gulbenkian e prometi que em Dezembro lá estaria (lá era um magnífico e espaçoso andar do Boulevard Haussmann), para tomar posse e ser introduzido por Roselyne Chenu aos meus deveres de secretário executivo de um comité. Lá estive e de lá segui para Madrid, para juntar à aula teórica uma aula prática com o meu colega espanhol Pablo Martí Zaro. Depois, o Congrès mobilou-me um gabinete na 5 de Outubro (castanho muito claro, cores do Duarte Nuno Simões) pagou-me um ordenado de seis contos mensais (o prof. Cavaco deve saber quanto seria hoje, mas não havia nem 13.º nem 14.º mês) e transformou-me no 11.º membro da Comissão. Para esta, entraram ainda, entre 1967 e 1972, João de Freitas Branco, José Palla e Carmo, padre Manuel Antunes S. J, Maria de Lourdes Belchior, Nuno Bragança, Nuno Teotónio Pereira e Rui Grácio. Chegámos a ser 18. Em 1970, quando saí de O Tempo e o Modo, mudámos da Av. 5 de Outubro para a António Maria Cardoso, para o Centro Nacional de Cultura. Aí tive casa e pucarinho quatro anos e picos. Veio o 25 de Abril, a nossa luta não continuava. Foi cada um para as suas casas. Eu trouxe para a minha todo o arquivo do Congrès, que nela jazeu (num sótão húmido) vinte e dois anos. Em 1997, propus a Mário Soares e à sua fundação receberem esses arquivos e os de O Tempo e o Modo. Apesar do péssimo estado de conservação, Mário Soares aceitou.
3. Acabo aqui o flash-back. No regresso ao presente (presente do ano passado), eu respondi à ressuscitada Roselyne Chenu que não tinha nada, que me deserdara em vida, como dizia a minha Avó, a favor da Fundação Mário Soares.
Mas palavras não foram escritas, entrou-me pela porta dentro o Nicolau Andresen Leitão (que eu não conhecia) a contar que o Centro Nacional de Cultura também andava à busca de origens, no ano do seu 60º aniversário. E estava intrigado com os anos 70-74, que se sucediam às direcções de Sophia e de Francisco Sousa Tavares e antecediam a de Helena Vaz da Silva. Resultado: tinham-no encarregado de estudar o Congrès e o Congrès em Portugal. Já tinha andado pela Fundação Soares a vasculhar os “meus” arquivos. Queria saber mais coisas. E queria dedicar um dia de 2005 a discutir com os sobrevivente do Congresso (de 18, restamos só 7) e com os beneficiários do Congresso o que fora essa história toda. Escrevi logo a Roselyne a dar-lhe as boas novas. Depois, eles entenderam-se entre eles. Roselyne Chenu foi justamente convidada a voltar a Portugal. A 21 de Junho, na Fundação Luso-Americana, falaram Guilherme Oliveira Martins, em nome do Centro, Roselyne Chenu, eu e Nicolau Andresen Leitão. Dos antigos membros, depuseram António Alçada Baptista, João Salgueiro, Mário Murteira e Nuno Teotónio Pereira. Dos antigos contemplados José Medeiros Ferreira, José Pacheco Pereira e Manuel de Lucena. Foi um dia cheio de fantasmas e com o meu fantasma de cabeceira.
4. Durante oito anos, dúzia e meia de portugueses ajudaram revistas e cooperativas, associações de estudantes e estudantes desassociados, investigadores dispersos pelo exílio ou pela clandestinidade, grupos de teatro e uma antologia musical (sim, o primeiro disco da antologia de Lopes Graça e Giacometti foi subsidiado por nós), gentes das mais diversas famílias políticas, a sentirem-se um pouco mais livres e a terem oportunidade de ser mais cultos.
Houve muitas peripécias (delas falarei em próxima crónica) mas não houve nem zangas nem rupturas. Nem entre nós, nem com quem velava e zelava por nós e, num plano discreto, como assistente de Pierre Emmanuel, nos deu os meios e a força de poder ajudar um bocadinho. A pouco e pouco, recuperei a memória e lembrei-me que foi graças ao Congresso, num encontro organizado em Senanque, numa bela abadia românica, que, conversando com poetas búlgaros e escritores romenos, eu percebi a diferença entre um “sonho mau” (o sonho que então se sonhava em Portugal) e um “pesadelo” (o que então se vivia no Leste europeu). Percebi a diferença entre viver sob um regime autoritário ou sob um regime totalitário. Um dia escrevi a Roselyne Chenu – foi ela quem agora mo lembrou – que se algum dia duvidasse do sentido da vida dela, pensasse no que fez por Portugal. No dia 21, o Presidente da República de Portugal conferiu-lhe o grau de comendadora da Ordem da Liberdade. Demorou 40 anos. Mas o passado não perdoa e renasce quando menos se espera. Por muitos motivos, nunca esquecerei o 21 de Junho de 2005.
(26 de Junho 2005 in PÚBLICO)