ESCREVER E TRANSFORMAR-SE
Tenho uma especial estima pessoal por Mário Cláudio, como o próprio bem sabe. Sou um seu leitor fiel, de há muito, e não esqueço a sua hospitalidade, em outubro de 2010, em Paredes de Coura, com Manuel Villaverde Cabral e Maria João Avillez, quando também pudemos falar dos edifícios desenhados por Joaquim Pedro Oliveira Martins, graças à influência do Conselheiro Miguel Dantas, sogro de Bernardino Machado. E, falando do Centro Mário Cláudio, não esqueço a longa evocação que fizemos dos nomes da literatura galaico portuguesa cuja memória encontramos dos dois lados da fronteira do Rio Minho: Aquilino Ribeiro, com a Casa Grande de Romarigães, Tomaz de Figueiredo, com a casa de Arcos de Valdevez; e do outro lado da fronteira, Camilo José Cela, Rosalía de Castro, Ramón del Valle-Inclan, Emília Pardo Bazán. Poderá, pois, compreender-se que a minha admiração por Mário Cláudio tenha raízes fundas…“Escrever é transformar-se continuamente. Não só escrever. A vida é uma constante transformação. Digamos que a escrita é mais o espelho dessa mutação em que nós estamos inseridos e que nos acompanha ao longo de toda a vida, e é um espelho onde se reflete uma imagem que, inclusivamente, não pode ser proveitosa, porque nos dá conta da dinâmica dessa evolução e nos permite corrigir determinados caminhos, aqui ou além, e enveredar por aquilo que nos parecer mais adequado, também de vez em quando” (JN, 19.7.17). Isso é evidente, quer quando o romancista descobre uma personagem histórica, quer quando se debruça sobre si mesmo, criando figuras imaginárias, que beneficiam da sua própria experiência. Lembramo-nos de Tiago Veiga e compreendemos como muitos leitores ficaram perplexos, com uma tão grande soma de elementos reais. Se Tiago Veiga não existiu, poderia ter existido; e se existiu é composto de vários elementos concretos, que encontramos nos meios literários e em figuras que resultam de vários elementos que se associam de modo verosímil, numa recriação notável da realidade humana.
AUTOBIOGRAFISMO…
Se lermos “Astronomia” (2015) é, no entanto, a perspetiva claramente autobiográfica que prevalece, no sentido propriamente dito. Mas também deparamos com as verdadeiras biografias romanceadas de personalidades marcantes reveladoras não apenas de figuras reais, mas também de uma descrição rigorosa dos ambientes e da vida quotidiana – como nos casos de “Amadeo” (1984), “Guilhermina” (1986) e “Rosa” (1988). Como prosador dotado, Mário Cláudio faz da literatura um modo de compreensão da vida e da sociedade. Daí partir nestes três casos de perspetivas diferentes da criação artística – desde o modernismo erudito de Amadeo de Souza Cardoso à uma dotadíssima expressão popular de Rosa Ramalho, passando pelo talento único que tinha Guilhermina Suggia. E a aura da genial intérprete fica enriquecida com a prosa de Mário Cláudio. E sentimos que estamos a participar numa ação parcialmente verídica e imaginosa, que sentimos como possível. “Camilo Broca” (2006) é a invocação da genialidade de Camilo Castelo Branco através do meio em que viveu desde a sua infância. Mais do que a história é também uma subtil homenagem ao universo de Agustina, com que Mário Cláudio tanto se compara e que admira (com cuidosas distâncias), em estreita relação com o romancista de “Estrelas Propícias”. Quando lemos “Triunfo do Amor Português” (2004), prefaciado por Agustina, vemos como a culpa assume papel fundamental no intenso fundo lírico desta cultura aberta ao Atlântico, com a presença de Pedro e Inês, Leonor Teles e Andeiro, Camões e a Infanta D. Maria, Mariana Alcoforado e o Conde de Chamilly, D. João V e Madre Paula, Tomás António Gonzaga e Marília de Dirceu, a Severa e o Conde de Marialva, Camilo e Ana Plácido, D. Pedro V e D. Estefânia, António Nobre e Alberto Oliveira… E assim a imaginação do romancista resulta da capacidade de associar elementos aparentemente contraditórios que procuram fazer sentido, como no caso de “Memórias Secretas” (2018), no qual recorre à “banda desenhada” e reinventa personagens – Corto Maltese, Bianca Castafiore e o Príncipe Valente aproximam-se de nós e descobrimos relações inesperadas. E falando, por fim, do “Tríptico da Salvação” (2019), em que intervêm figuras históricas, como Lutero e Lucas Cranach, não é tanto o romance histórico que interessa, mas a consideração das personagens envolvidas. Lutero é o homem inconformista, a um tempo conservador e reformista, que interessa ao romancista, até porque entra em choque simultaneamente com o Imperador e o Papa. Por outro lado, a admiração de Lutero por um grande pintor como Cranach, leva-o a evoluir na reflexão sobre o sentido da representação de imagens contra o entendimento inicial.
ESCRITOR E PEDAGOGO
A propósito de “Astronomia”, Mário Cláudio afirmou: “Quando digo que sou escritor incluo nisso todas as dimensões de atividades da minha vida. A docência é a continuidade da minha atividade de escrita. É como se estivesse a escrever a vida com outras pessoas ou a escrever na alma delas e elas na minha alma. Aprende-se muito através da docência. Aquilo que se recebe é talvez mais do que aquilo que se dá. Não era um professor facilitante, era bastante exigente, muito austero. Havia pessoas que se davam bem, outras não. Sempre validei as pessoas que trabalhavam mais. Não há que fugir a isso. E isso às vezes cria atritos. Mas devo dizer que olhando retrospetivamente, nos encontros com ex-alunos, tenho consciência que ficou uma réstia de amizade e afeto com todos eles”. É muito importante esta afirmação, de quem faz da sua escrita um caminho permanente de aprendizagem, vista como uma permanente troca de experiências. Longe da ideia do “magíster dixit”, o escritor, como o educador e o romancista têm de ganhar autoridade no modo como exercem o seu magistério – e o escritor que assim se apresenta refere a exigência como algo de natural e necessário, e o certo é que literariamente encontramos a mesma preocupação, bem evidente numa escrita rigorosa e atraente… Nesse ponto, apesar de admirar a figura e a obra e Agustina, põe as distâncias que o levaram naturalmente a trilhar caminhos diversos, nalguns pontos convergentes mas menos filosofantes, que um dia testemunhei, quando pudemos, de algum modo, partilhar um extraordinário convívio, com a própria Agustina, num memorável jantar portuense.
Guilherme d’Oliveira Martins
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