Na década emblemática de 1930, devemos chamar à colação Vitorino Nemésio de um modo talvez inesperado, mas depressa compreensível. Refiro-me à dissertação de doutoramento “A Mocidade de Herculano até à volta do Exílio”, defendida em 1934, que constitui muito mais do que um documento académico, já que é uma obra-prima da ensaística portuguesa. E se falo desta referência é porque não é despicienda a escolha do tema e o seu tratamento. Pode dizer-se que é o romancista e o poeta que aqui se anunciam, o que nem sempre foi bem entendido no claustro académico. Bem assinala David Mourão-Ferreira “o rigor da minudência erudita e a certeira intuição de quem sabe sondar, a um século de distância, toda a complexidade de um grande destino que se vai construindo”. Herculano surge como uma grande personagem, como um defensor da liberdade, num caminho de dúvidas e incertezas, mas um verdadeiro símbolo de um pensamento que estava em perigo quando o investigador o escolheu. Sente-se no jovem Nemésio uma especial identificação, subtil é certo, mas evidente – sobretudo por contraponto a um tempo em que o panorama político se apresentava como adverso relativamente à defesa e preservação dos valores queridos pelo historiador. Quando lemos “A Mocidade de Herculano” sentimos que o rigor historiográfico permite a construção de um quadro narrativo de uma grande riqueza, em que a singularidade se junta à necessidade de compreensão do contexto social e político – que será de grande utilidade para a riqueza da obra romanesca do autor. “Tenho pensado e vivido tanto com Herculano, que agora sou assim uma espécie de seu neto póstumo. Neto, não!, que o meu avô mais velho nasceu em 1841 (…) e Herculano é de 1810. E, mesmo para o meu bisavô, talvez fosse velho de mais. Como seria meu bisavô? Sei ou julgo saber como foi Herculano: não sei de meu bisavô senão por vagas memórias”. E o escritor lembra, ao menos, que em 1832, quando Herculano desembarcou na Terceira, o historiador e seu bisavô respiraram o mesmo ar, qualquer que fosse a distância a que tivessem estado. Estamos perante um verdadeiro romance, mas é o “abalo do poeta” que está na raiz do biógrafo. Perante a massa enorme de elementos sobre a emigração portuguesa existente no Museu Britânico, Nemésio restringe-se ao exílio de Herculano, “não sem investigar manu diurna et nocturna (como diziam nossos mestres), em três anos de full time, todo o âmbito da operosidade e da espiritualidade do escolhido. Interessava-me o homem inteiro (…) sempre e em tudo indistintamente filósofo, poeta – homo sum, nihil humanum a me alienum…”. A leitura dos dois volumes é apaixonante, porque neles deparamos com o feliz encontro de uma irrepreensível análise histórica e literária, que enriquece um percurso acidentado de carácter pessoal, com uma magnífica ilustração do contexto cultural europeu e nacional. Sentimos a presença desde a comum mediania à emergência de uma perceção elevada das mais relevantes personagens do tempo. “Emigrei da idade de vinte anos em consequência da infeliz tentativa da revolução do 4º Regimento de Infantaria, tentativa conduzida com tanto valor pelos meus honrados amigos o capitão Albino Francisco de Figueiredo e tenente-coronel Bravo…”. E assim Herculano foi cúmplice de um “agente incógnito” e teve de fugir para a fragata “Melpotmène” e depois para bordo de um paquete inglês que o levou ao litoral da Mancha. E por muito que Inocêncio (o dicionarista) se afadigasse em referir as origens miguelistas de Herculano, a verdade é que encontramos o percurso natural de um português num tempo de contradições, cuja coerência determinada é feita de um percurso sempre sério e refletido…
AINDA O SIGNO DA LIBERDADE
Se a liberdade é o pano de fundo na prova académica de Nemésio no tempo em que o horizonte se enchia de nuvens totalitárias, na década seguinte Mau Tempo no Canal é a obra-prima, escrita nos anos de início da Guerra, a partir de 1939, na qual encontramos também o elogio da liberdade, na personalidade de Margarida Clark Dulmo, num tom original a superação dos limites do psicologismo “presencista”, bem como da lógica social neorrealista. É algo de próprio e de original, que podemos aproximar do rigor da “Mocidade de Herculano” de uma extraordinária dimensão poética. Trata-se de uma narrativa que concilia o genuino sabor local e uma reflexão universalista, relaciona a singularidade e o destino, o mistério e o presságio, o sonho e a tragédia. David Mourão-Ferreira classificará, com justiça, a obra romanesca como «a mais complexa, mais variada, mais densa e mais subtil em toda a nossa história literária». Margarida e João Garcia protagonizam, de início, um namoro contrariado pelas relações tensas entre as famílias de ambos, no contexto da sociedade açoriana plena de ressentimentos, medos, angústias, contradições, uma família de raízes aristocráticas, mas em situação difícil, e a ambição de um novo-riquismo desejoso de legitimação. E a grande metáfora é a da melancolia das ilhas e do mar oceano, da distância, mas também da liberdade e da esperança, da incerteza e da dúvida sentidas, em especial, entre o Faial e o Pico, entre o anfiteatro da cidade da Horta e o majestoso Pico, referência mítica do tempo que permanece inexorável, belo e ameaçador. Fica lembrada a carta de Antero a Oliveira Martins: “Aqui nos Açores, há um provérbio que reza: ‘S. Miguel, burgueses ricos; Terceira, fidalgos pobres; Faial, contrabandistas espertos’. Com efeito, a Terceira é uma terra essencialmente portuguesa e peninsular: fidalguia, pobreza, toiros, insouciance sóbria e filosófica, entusiasmo, bizarria e parlapatice: numa palavra os defeitos e as qualidades correspondentes do idealismo peninsular, que V. tão bem conhece e não menos bem descreveu já”… Margarida é a figura marcante do romance, forte e sensível, inteligente e arguta, livre e determinada, uma personalidade que não nos pode deixar indiferentes, porque compreende como ninguém a terrível teia em que está envolvida, entre sonhos e augúrios. Como é insondável o destino. Mas, no final, sente-se cega…”cega como a serpente do anel que nenhum ventre de peixe levaria a mesa humana e que àquela hora jazia, como a cucumária dos abismos, no mais secreto do mar”… E entre a força destas duas obras maiores da cultura portuguesa, lembramos o que Nemésio considera ser a sua existência. “Toda a vida estudei de tudo e o mais que podia para o que desse e viesse. Não me preparava dia a dia para amanhã e depois ou racionando, como a formiga, do verão propício ao Inverno rigoroso. Mas talvez não fosse apenas leviano, como a cigarra, pois tive de dançar no Inverno e cantei sempre”.
Guilherme d’Oliveira Martins
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